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Contos-->O Jardim da Desilusão -- 15/11/2003 - 19:10 (Dulce Baptista) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O Jardim da Desilusão
Dulce Baptista

Arcadas brancas davam para o exterior. Cortinas de samambaias choronas tomavam toda a extensão da ampla varanda mobiliada com junco e lona estampada. Degraus de pedra conduziam ao jardim, cujo gramado se estendia por um terreno retangular de grandes dimensões. À esquerda havia uma piscina redonda cercada de flamboyants. Mais adiante, um pequeno bosque de mangueiras, ipês amarelos e acácias estabelecia os limites da propriedade. A casa tinha hortênsias por toda a volta.

Assomando à varanda, Gilson procurava reter cores e luzes na retina. Deixou-se ficar em pé, imóvel, o copo de uísque na mão, contemplando o entardecer. Festa e melancolia mesclavam-se lentamente. Passado algum tempo, resolveu caminhar. Os passos lentos levaram-no até a piscina, onde se deteve talvez pela última vez antes de se ir para sempre daquele lugar.

À distância, sempre lhe parecera uma gigantesca turquesa engastada no solo. Pelo menos era assim todas as vezes que se via dentro de um avião. Considerava-se um privilegiado. Entretanto constatava novamente que aquilo não passava de um tanque contendo água clorada. Por que teria que haver sempre a insuperável diferença entre o longe e o perto das coisas?

Involuntariamente lembrava-se da infância pobre em Minas. O pai, dono de armarinho, morrera cedo, deixando para sua mãe as prestações da pequena casa que conseguira comprar em Paracatu. Agarrada dia e noite à máquina de costura, Dona Laura saldaria tudo. Entrementes, o menino Gilson vendia jornais e panos bordados. As brincadeiras eram as de todo garoto do interior, poucas e simples como subir em árvore, jogar bola de gude e futebol com os companheiros da rua. Devagar e sempre, conseguiria terminar o primário e o ginásio, e para seu extremo orgulho - quem diria - a própria faculdade, já mais tarde, em Belo Horizonte.

Não gostaria de voltar a nada daquilo, com certeza, embora tudo lhe parecesse de repente tão idílico. A universidade fora outro capítulo de sacrifícios, consumindo-lhe as energias que sobravam depois da jornada de trabalho numa gráfica.

O reflexo da folhagem na água evocava cenas esparsas. Revia a contragosto um outro jardim, em Minas ainda, onde estivera por uma tarde na companhia da namorada. Era um sábado e eles se despediam. Filha de fazendeiro, Marta era ativista na faculdade e só não tinha sido presa porque o pai agira em tempo. Havia uma ditadura no país, e ela iria para a França no domingo para não voltar tão cedo. Apaixonado, Gilson tentara convencê-la durante meses que o mais lógico seria concluir o curso e arranjar um bom emprego. No caso dela, então, seria facílimo, com todas as relações e conhecimentos que o pai possuía. Que se danasse a política.

Marta chamou-o de reacionário deixando-o profundamente magoado. Nas intermináveis discussões que passavam a ter, ela argumentava que não era com trabalhinho de escola que se mudava o mundo. Ele rebatia dizendo que dava duro para viver e que essa história de mudar o mundo era conversa fiada. Ainda assim, haviam sido unha e carne no último ano de Economia. Só mesmo no final, ficaram sem saber o que faziam um com o outro. Uma mistura de sentimentos contraditórios e de mágica atração - seria isso o amor - mantinha-os ligados a despeito de tudo. Mas aquela era a despedida: chorando muito, sentiam que os sonhos diferentes de cada um estariam para sempre desfeitos.

Nos fragmentos da memória, Gilson revia os anos que passara como professor. Aulas concorridas, suas explicações para o problema do endividamento externo do Brasil eram acompanhadas com curiosidade crescente por parte dos alunos. Mas foi só com o tempo que pôde expor com tranqüilidade a teoria de que o déficit público era uma falácia enquanto justificativa para a inflação. Segundo ele, o que ocorria era a concorrência de grupos na defesa gananciosa de seus próprios interesses. Financiavam-se os setores especulativos em detrimento dos produtivos. Dessa forma, a renda ficava mais concentrada a cada dia, e a população cada vez mais pobre.

Respirando fundo, caminhou pela grama. O copo na mão suscitava-lhe dúvidas quanto a reforçar a dose. Precisaria entrar na sala, no quarto...Teve preguiça. Preferiu sentar-se no banco de pedra que havia próximo a um canteiro.

O destino das pessoas parecia-lhe fantástico a despeito de toda a previsibilidade. Como poderia imaginar que ele mesmo, um simples mineiro de Paracatu, acabaria nas altas esferas do poder, encarregado de conceber uma utopia para o país?

O casamento foi um equívoco. Quando conheceu Tania, conciliava a atividade docente com uma firma de consultoria. Tania era irmã de seu sócio e quando foram apresentados, sentiram que haveria uma relação maior entre eles. Ela era expansiva, bonita, e Gilson achou agradável a companhia. Ficara solteiro por tempo demasiado, reconhecia, pois Marta seria sempre uma saudade. Por isso mesmo talvez, e por várias outras razões, a união acabou não dando certo. Ocorre que nos quatro anos em que estiveram juntos, o entusiasmo foi sendo gradualmente substituído pelo aborrecimento. A exuberância revelava-se fútil; a beleza, superficial. O gosto obsessivo dela pelas noitadas contrastava com a preferência dele pelo isolamento. No fim, ele respirou aliviado quando Tania enamorou-se de um compositor baiano que andava em turnê pela cidade. Foi a gota d água de que ambos precisavam para se libertarem um do outro. Sem drama nem comédia.

A ausência de filhos o incomodara durante certo tempo, mas consolava-se ao recordar a frase de Brás Cubas: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria". O pouco que lera de Machado impressionara-o sempre. Carências familiares não haveria de ter - conseguira, com muita insistência, trazer a mãe para Belo Horizonte, onde ela residia agora na companhia de uma irmã solteira e octogenária. Gilson dava-lhes assistência.

As mulheres fariam parte de sua vida. Preferia contudo manter a independência. Havia épocas em que gostava de estar só em seu apartamento, até que uma nova amizade surgisse no horizonte. Divertia-se com quem queria, dava asas à libido, sempre porém respeitando sentimentos e usando de grande gentileza. Contanto que cada qual ficasse em sua casa e Deus na de todos. Vez por outra sonhava com Marta. Por onde andaria?...

Aos poucos, tornara-se figura obrigatória não só nos círculos acadêmicos como nos políticos. Suas opiniões eram respeitadas, principalmente por causa dos artigos que publicava, onde advogava uma espécie de síntese entre liberalismo no plano econômico e socialismo no terreno político. O país fora redemocratizado, por fim, e a liberdade de expressão voltara a vigorar.

No turbilhão dos acontecimentos que se seguiram, Gilson acabou sendo chamado para compor o ministério do recém-eleito presidente da república. Recebia o convite com naturalidade, pois acreditava haver chegado o momento privilegiado para propor uma reorganização drástica nas finanças públicas, a qual tivesse como ponto de partida o apoio popular obtido nas urnas. Ingenuidade ou mosca azul? Não importava, ansiava por fazer sua parte.

O céu avermelhava no ocaso. O frescor da hora e a quietude do jardim produziam uma estranha paz. Gilson sabia que era uma paz aparente. Paz de fachada, circunscrita ao pequeno universo das mansões do lago, dos gabinetes, tapetes vermelhos e regabofes palacianos. O país encontrava-se, a bem da verdade, mergulhado numa desordem sem precedentes - algumas pessoas achavam que era a própria guerra. O gigante adormecido via-se às voltas com uma sucessão de desgraças de tal magnitude que, de norte a sul, leste a oeste, a vida ia-se tornando insuportável.

Tais desgraças compreendiam fenômenos naturais e catástrofes, além de ações deliberadas contra o semelhante. Como pano de fundo, a fome e a miséria cresciam, e o resultado mais visível de tudo isso era uma violência latente em todos os cantos, a qual explodia com mais freqüência nas metrópoles, deixando saldos assustadores de mortos e feridos. O medo rondava os lares.

Sentindo a brisa no rosto, Gilson revia o inacreditável final de banquete que culminara com a deposição do presidente. No caleidoscópio da memória, desfilavam imagens de povo, bandeiras, revolta contra a grande mentira em que toda a nação fora envolvida. Sentira-se então particularmente ferido com o festival de corrupção que fora obrigado a presenciar na qualidade de integrante do malfadado governo. Seu projeto jamais seria posto em prática. Tal como a população inteira, considerava-se ludibriado, até mesmo lesado.

A noite caía quando entrou em casa. Acendeu a luz do quarto que incidiu diretamente sobre a mala aberta na cama. Roupas espalhadas, a passagem separada na mesinha de cabeceira, chaveiros. No canto da cômoda, a garrafa de doze anos. Pensou na primeira alternativa: tomaria o maior porre de sua vida. Viu-se no espelho. Era estranho como ainda estava em forma apesar de tudo - talvez fosse até um homem bonito. Dona Laura ainda o contemplava do porta-retrato com o mesmo olhar altivo de sempre.

Dobrava camisas, guardava coisas, fechava a mala, lembrando-se que teria de entregar a casa antes de viajar. Pendurou o terno da viagem do lado de fora do guarda-roupas, sentindo falta, de antemão, de um ser humano que o conduzisse carinhosamente ao aeroporto. Uma saudade funda fê-lo recordar-se de alguém.

Marta voltara ao Brasil casada com um jornalista e morava no Rio de Janeiro. Viram-se, Gilson e ela, certa feita, ao participarem de um congresso de economistas na cidade. Foram quinze minutos de emoção contida, de parte a parte. Ela trabalhava numa entidade de classe e tinha uma filha. Deu-lhe um cartão de visita. Os cabelos curtos e os óculos traíam a passagem do tempo, mas o olhar era ainda terno e sincero.

O novo chefe do governo era conterrâneo de Gilson e reconhecendo seu valor, convidou-o a assumir o escritório de uma empresa brasileira em Londres. Àquelas alturas, é evidente, não poderia haver prêmio maior.

O avião decolava na manhã. A uma certa distância a janela deixava entrever a paisagem de eucaliptos e construções simétricas. Fixando um pouco a vista, Gilson enxergou ao longe uma turquesa redonda abandonada ao sol.

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