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Contos-->Estranhos -- 25/10/2000 - 21:32 (Iã Paulo Ribeiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Este desejo das horas, o subir e descer escadas de minha vida. Os passos comedidos da pressa e do horror de que isso seja vida. Olhar o relógio pendurado longe com seus ponteiros girando a eterna areia, o eterno grão. Mas o tempo e estes degraus que piso, esta correria nos terminais rodoviários, os ônibus partindo ofuscam o olhar que deixei na estrada e que busco a contragosto em algumas horas de conflito (vai ser sempre verde a minha estrada? Haverá sempre belas estradas?). Não fazer nada o que se deseja e pisar o ferro com o corpo preste a desmoronar.
O Terminal do Tietê ferve como um câncer, incansável movimento de células desvirtuadas que se encontram. Descer os degraus com algum jeito apressado, correr timidamente um pouco numa plataforma de aço. Pensar em Beatriz. Sentir os pés querendo flutuar. Sentir Beatriz. Vê-la na outra escada correndo. Parece que tudo vai se perder. Os encontros amolecem suas pernas. Ele pára. Beatriz é uma verdade que dura anos e agora, uma verdade que corre, salta para o ônibus, gesticula algo com suas mãos finas. A beleza acena novamente, mas triste. O espaço e o tempo já não mais lhe pertencem, nem Beatriz, nem seu nariz grego.
Ela se senta na primeira poltrona. Com cuidado ele abre a passagem que tem no bolso da camisa e olha os ponteiros do relógio. Como a água escorrendo da torneira, os ponteiros começam a cair do teto, líquidos. Da escada, ele estende a mão e tenta tocar Beatriz. Ela lê enquanto o motorista aguarda algum passageiro atrasado. Há sempre alguém assim, alguém que estorva, alguém que erra na hora de dizer boa noite, há sempre este presente errado dado na hora errada à pessoa errada; há sempre este fascínio de deitar-se com a beleza e a fatalidade de um dia ela renegá-lo.
Como havia amado Beatriz! Com suas mãos. E por dentro ainda sentia a pedra chacoalhando, com suas pontas fazendo pequenos furos no peito. Não podia dizer-lhe nada, não havia como olhá-la sem se perder no passado, não haveria palavras pois ele as jogou durante anos por cima dos prédios, das antenas, nas cartas não mandadas. Como posso vê-la sem dizer-lhe nada? O mesmo ônibus, o mesmo amor, a mesma pressa da redenção. Dizer-lhe: o pior é conviver com a dor sem sua pele. O pior é sonhar e acordar...
Dizer-lhe já não bastava mais. Tocá-la, sentar-se a seu lado e virar seu rosto como se ainda ela permanecesse lá, durante estes anos, com o mesmo sorriso, com o mesmo olhar. Para onde eu teria ido este tempo todo, Beatriz? Você ficou por aqui me esperando e tudo aquilo foi um modo estranho de ver o mundo. Achei que você não mais me pertencesse. E Beatriz sorriria como uma nuvem, diante de mim. Sempre tua! Quantos enganos que já saíram das bocas. Não há o que se ter. Ele parado, os minutos nos telhados, a água escorrendo como saliva dormente. A escada, os degraus infinitos se expandindo. Tudo foi ficando longe.
O motorista conversa e espera. Ele tem uma passagem nas mãos e seu pensamento é um balão solto, suas pernas são raízes de ferro presas aos degraus. Não há o que se fazer. Tudo é terra, poeira, o tempo, o espaço, o amor. Tudo é gás. O amor de Beatriz exala ainda nos seus sapatos, nas suas narinas. Ele pensa que tudo é agora e um grande vácuo se cria e o suga. Não há mais porque correr. Deixar os ponteiros caídos no chão sujo, as mãos caídas, as lágrimas da lembrança. Não há porque correr. As rodas do ônibus estão livres, os pneus tocam os papéis no asfalto, levantam uma poeira que esconde a história. A história dele, a história de Beatriz, os encontros e outras coisas que não dão certo.

Iã Paulo Ribeiro

*Este conto foi publicado no jornal Tribuna Impressa (Araraquara - SP)
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