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Contos-->Quando João desceu a serra -- 20/11/2003 - 16:51 (Paulo Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Dizem que as pessoas experimentam uma serenidade profunda na dor. São tomadas de uma lucidez e sensatez descomunal. Conseguem se desvencilhar dos pequenos pensamentos e atingem um nível mais elevado de pureza e certeza. Dizem ate que a dor nos deixa mais inteligentes, nem que seja por alguns segundos. Não falam da dor física, eh claro, e sim da dor da alma. Não sei se eh verdade, mas acho que foi isso que aconteceu com João naquele dia.
O céu era pesado e cinza quando João desceu a serra. Eram cinco horas da tarde e já parecia noite. O vento forte e frio que assolava o rosto de João na descida, prenunciava o dilúvio. E João desceu tranqüilo como sempre. Parecia ate mais resignado do que de costume. Na face as rugas, no coração as magoas e nos sonhos..... João já não sonhava ha muito tempo.
Na primeira condução para o trabalho seguiu em pé. Balançando ao sabor do freio e do arranque e viu a chuva começar a cair modesta. Na segunda condução sentou-se e admirou o caminho que conhecia ha anos. Admirou a sujeira da qual fazia parte e viu a chuva criar força, engrossando a voz e diminuindo os homens.
Chegou ao trabalho. Porteiro zona sul. Expediente madrugada. Já havia se acostumado a escuridão e a solidão daquele prédio de escritórios. Via a noite passar lenta e calada. Por vezes cochilava, não muito pois tinha uma responsabilidade intrínseca que não o deixava descansar, lhe parecia que quando dormia furtava alguém. Não gostava dessa sensação e brigava com o sono e geralmente vencia.
Naquela noite o barulho da chuva lhe ajudava na guerra diária contra o sono. O vento gritava por entre as frestas e a água cantava, feroz, no encontro com o asfalto lá fora. Incessante. Assim seguiu-se a chuva. Tréguas de minutos e horas de batalha.
A madrugada corria alta e João encostou o rosto na grossa porta de vidro que dava para a rua. Viu, por entre as cotas que escorriam, a chuva forte enchendo os bueiros, uma chuva cobre de um céu mais cobre ainda. Pensou que talvez fosse as luzes de mercúrio que coloriam a chuva. João sentiu medo, acuou-se em sua cadeira e fechou o agasalho como se a chuva lhe molhasse.
O relógio acusava o começo da manha, mas o céu não respondia. O sol perdeu-se na cortina cinza das grossas nuvens. João largou do serviço ainda em baixo da água que caia. Não tão forte quando a da madrugada. Agora caia lenta como um choro. E assim permaneceu durante todo o caminho de volta para casa.
João começou a subir a serra. O torpor do sono e a lentidão da chuva no rosto lhe deixavam tonto. De longe viu o tumulto. As pessoas vieram lhe falar mas ele não ouvia. Seguravam-lhe mas ele seguia. Um arrepio azedo tomou-lhe o corpo. Aproximava-se de casa. Que casa ?
Chegou lento e escuro como a chuva. Bombeiros e pessoa lutavam na lama que fora sua casa. Soterrado no barro jazia o reino de João. Olhou para os sapatos enlameados. Procurou localizar-se. Nada ouvia .
Acharam o corpo da mulher de João, negra de lama e de pele. As meninas deviam estar mais no fundo. Tudo que construiu na humilde vida fora enterrado. Na madrugada a chuva tomou-lhe o barraco e a família.
João assistia sonolento os homens que se enterravam no barro buscando algo que era seu. Lutando por algo que ele sabia perdido. Tomado de um vazio João tentou não chorar.
Os microfones e os gravadores, banhados pela chuva, cercaram João. Ligaram uma câmera de Tevê. João não os ouvia. Trancado na sua dor. De repente despertou com uma pergunta: “Seu João quais medidas devem tomar agora as autoridades competentes ?”. João não acreditou na estupidez da indagação. “Nenhuma” disse seco.
Olhou sereno para os repórteres que o cercavam: “Era só a minha casa. Era só a minha família” E perdeu o seu olhar na lama.


Paulo Lima
20.11.03


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