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Contos-->Máscaras no País dos Desencantos -- 21/11/2003 - 22:14 (Luísa Ribeiro Pontes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Máscaras no País dos Desencantos


Era uma vez um pais do mundo das fábulas onde as pessoas não tinham rosto próprio, mas apenas uma massa informe e branca com dois buracos para ver, umas narinas para captar os cheiros e uma boca de lábios curvilíneos donde nasciam as palavras. Tudo com o mesmo tom terroso, a mesma capa fértil de reprodução industrial numa arrojada antecipação da moderna clonagem.
Por serem tão iguais, sobretudo as mulheres, aquele organizado punhado de gente começou a perder os sonhos, pois até as palavras pareciam sempre as mesmas, bastando para tanto o facto de terem procedência da mesma boca, palatos e lábios idênticos, cordas vocais com a mesma dimensão e grau de afinação. Criança que estivesse para nascer, fazia-o no meio da maior solidão, já que mãe e parteira mais não viam que o sexo do nado-vivo e nem havia um sequer um débil sorriso de encantamento pois cada traço novo repetia o velho e em nada o novo ser surpreendia.
Mas havia no reino alguém cujo negócio esmorecia, por falta de clientela interessada, desnecessárias que eram as maquillages, tintas e unguentos, já que mesmo maquilhadas as pessoas mantinham o mesmo enfadonho padrão estético e nada que pusessem no rosto, sobretudo as mulheres, faria esvoaçar a imaginação mais aguçada.
Por isso o feiticeiro do reino, temendo a falência, resolveu investir na modernização do visual daquele povo e em rápida e discreta viagem que fez ao reino vizinho, para lá do lago dos encantamentos, pôs à disposição da população ensimesmada na sua profunda depressão, a possibilidade de variar, encantar, surpreender e encontrar novo interesse pela vida: máscaras!!
Logo no primeiro dia, o sucesso ultrapassou todas as expectativas do velho feiticeiro e as vendas dispararam astronomicamente na euforia das manhãs da Bolsa, em dias de alta. Brevemente viu que teria de se expandir, começando a criar ele próprio as suas máscaras, rudimentares que haviam sido as do reino vizinho.

Criou a sua linha eternamente jovem, a linha sóbria dos mais retentivos às modas, e a linha sofisticada, inspirada nos maiores galãs e estrelas de cinema do país distante onde dizem que se fabricam os sonhos e abriu lojas por todo o reino com empregadas risonhas ostentando os rostos mais encantadores que a memória colectiva do país dos sonhos pudera reter. Não foi preciso muito tempo para as suas más caras adquirirem um tom mais natural que o autêntico, numa sábia mistura de ervas, barro e pétalas de flores. As ruas dos burgos e aldeias enfeitavam-se de seres siderais, mulheres flutuantes e de atraentes homens cuja juventude só era traída por um andar menos ágil...
Todos passaram a sonhar e acreditar na vida e o mundo ganhou em interesse e espanto, aquilo que antes perdera em alegria e desafio quotidiano. Tudo agora se resumia ao negócio das máscaras e a economia conheceu aquele falacioso apogeu das cidades assentes em estacas apodrecidas...
Havia, porém uma nota dissonante... acabou para sempre a fidelidade e contensão daqueles homens e mulheres tão recatados e ninguém já se abstinha da sua segura aventurazita com máscara que no dia seguinte até podia desaparecerno fundo do lago encantado. Algumas decepções, porém podiam ocorrer, mas até isso deixou de ter importância. Nem sempre a máscara correspondia em beleza à frescura e firmeza das carnes ocultas por sobre as roupas. Mas valia a pena o risco, porque o corropio continuava e cada decepção anunciava o novo desafio da descoberta. Além disso, a aquisição de novas e mais insinuantes máscaras só fazia progredir a economia aquele país esquecido e que agora conhecia fama mundial pelas suas máscaras de sonho, importadas muito para além-lago. Contudo...

Contudo... havia um homem que se recusou a aderir àquele festival de garridez e se transformou no céptico do reino, bardo que ninguém queria ouvir, porque a sua voz trazia o inconforto da verdade e o seu rosto lembrava os antigos tempos de desencanto.
Procurava este homem por todos os cantos do reino algum eco para a sua voz, mas sempre lhe respondia o canto das sereias emplumadas e dos homens com elas embevecidos. Aspirava a um mergulho breve nas águas da autenticidade e era vê-lo noite a dentro, de vela em punho, pelas ruas iluminando rostos e decifrando traços para encontar atrás deles alguém com o velho padrão da pureza inicial. Mas só via perfeição, tanta perfeição que preferiu refugiar-se nas cavernas mais recônditas do reino, onde passava dias à fio a mirar a sua própria sombra em frente a um muro pleno de lagartixas e outros bichos rasteiros.
Os anos foram passando e o nosso eremita foi envelhecendo, ganhando esbranquiçadas cãs, a palidez dos hospícios e também uma poeira interior feita das teias amargas, que a solidão nele foi lentamente tecendo. Recordava o insano cheiro das fêmeas, a doçura das carnes, a magia dos seus sorrisos, sempre iguais embora, os seus paços ondeantes, a vertigens dos corpos esbeltos, onde o desejo se fincava, por ser tudo o mais igual.
E foi então que desceu à cidade, na demanda de uma mulher que, sem atavismos o fizesse reencontrar o sonho...

Mas ao aproximar-se do burgo, deparou com um autêntico festival carnavelesco de ruas enfeitadas de máscaras, de festões de máscaras, de árvores ostentando figurações de máscaras e lojas repletas de cartazes promocionais de... máscaras. Perante o seu espanto, pelas ruas divagavem imagens enchovalhadas de pessoas com máscaras, lágrimas secas à sua superfície encardida, mulheres dançando nuas as cantigas de outros tempos e das casas pouco limpas escorria uma nostalgia sem tréguas...
Pisando máscaras, pontapeando os destroços e excrescências da humana dissipação, vai contra o corpo franzino de uma criança, votada a um choro manso e cadenciado, a máscara abandonada à sua beira. Limpa-lhe uma lágrima e reencontra na doçura do seu rosto o cunho do padrão inicial e, sem mais dizer, leva-a para a sua caverna onde a provisão de frutos secos ainda perdura. Reconfortado o estômago de calor humano e de humano sustento, a pequenita adormece. Então, o eremita desce de novo à cidade e tira a máscara ao primeiro homem que encontra, vê outro e tira-lha também, abraça uma mulher e retira-lha com toda a doçura e vai de rosto em rosto desvendando e libertando um a um daquela carga. As pessoas ficam a olhá-lo despertas do seu sonho desencantado e quando a chuva começa a cair, diluviana, a enchurrada arrasta consigo o mar de máscaras e o que delas resta para as entranhas do lago do desencanto...
Depois, o homem rumou para a sua caverna e preparou-se para dormir e sonhar finalmente o seu sonho de pureza, consubstanciado na esperança daquele respirar doce de criança.


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