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Contos-->O Jogo -- 26/10/2000 - 16:26 (Iã Paulo Ribeiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O Jogo da Amarelinha não estava mais na estante. Ele havia vendido ou trocado em um sebo. Cortázar desprezado, foi o que eu achei. Como podia fazer isso? Se bem que havia notado seus óculos novos de ampla visão comprado através de um anúncio de tv, assim como aquele confortável travesseiro contornando o pescoço que todos casais adoram. Sim, muita coisa tinha mudado. Contorceu-se quando comentei sobre o livro de Julio Cortázar. Não me serve mais, é uma frase que se pode esquecer. Seu nariz abriu-se numa negação, uma necessidade de negação. Não se entende quase nada, é puro pedantismo. Cortázar?, eu pensei. Tudo bem. A esteira grande com grades brancas e botões de controle na sala me confortou de uma certa forma. A morte. Enquanto ele ia me justificando sem querer justificar porque O Jogo havia se tornado obsoleto, sem graça, sem entendimento para o homem que caminha pela ciência, que busca atingir o monossílabo do céu, enquanto ia assim me enredando entre soluços, percebi que muito do resto da beleza humana havia ficado naquelas paredes. Os Trabalhadores do Mar, Crime e Castigo, O Processo, O Vermelho e o Negro, A Igreja do Diabo, Shakespeare, um livro verde escuro com riscos dourados imitando ouro e o título Tragédias, e outro escrito em letras grandes POE, Camus, Sartre, Assim Falou Zaratustra, Gogol e sua morte com a miséria. Mentes e palavras que me trouxeram a este novo mundo e que me largaram frente a portas infinitas, nu, como um ser nascente, porém com todos os preconceitos já instalados nas têmporas, na língua, nos dentes; conceitos mórbidos e sujos. Joyce, que era um livro, Retrato do Artista Quando Jovem, que não havia na estante, mas que A., sua filha, havia comprado para me dar e eu não entendera por ser um imbecil de vinte e poucos anos, um homem apaixonado, de mãos cegas. O amor e os resquícios dos sonhos, uma mistura insolúvel; as vontades como bandos de aves. Os olhos de F., as menores contas do espaço, o cigarro aceso como um meteoro entre seus dedos. O mundo está repleto de vagabundos como eu que sonham com a flor.
Quanto tempo eu tinha ficado a pensar na frente dos livros? Ele me olhava como se esperasse uma resposta, mas a pergunta não me atingira. O vazio que O Jogo da Amarelinha acrescentara nas madeiras deitadas suplicava que por ali se enchesse o universo destas estagnações da vida, destas pequenas bruxas desenhadas, destas senhoras negras escritas todas juntas a formar o ilógico, o abstrato. Eu tinha escolhido o caminho, nem mais fácil nem mais difícil; abrir a porta para o que vinha. Escolhera ver meu passado, que sempre sempre vinha descolorido, mudado, uma peça que fôra deslocada, uma cadeira nova, a falta de um relógio, a falta de Cortázar na estante, a falta de um pedaço de meu peito que eu havia deixado sobre um amontoado de papel; tudo mudado, óculos novos, geladeira nova, filhos, cabelos que crescem. Tudo transformado, e no entanto um senhor de bengalas dentro de mim exigindo que as coisas permanecessem, amaldiçoando as palavras, como aranhas, que eram elas que ficavam girando a manivela e colocando um novo risco, avisando os perigos, criando-os, eram elas ali no centro que faziam funcionar o tempo, que tanto amavam, o espaço, que tanto amavam.
Agora que já estávamos incomodados um com o outro, tantos minutos juntos, tantos tijolos, tantos muros entre nós, agora que ele me olhava como uma nuvem a ver um suposto buraco onde poderia estar O Jogo e insistia como um louco, como um filho espera na madrugada o fantasma do pai para que lhe diga segredos, agora que tudo voltava a ser a eterna mutação, o mundo dos ponteiros que correm em círculo, eu podia ir embora, neste exato momento. Mas fiquei olhando os olhos constrangidos dele, procurando neles outros olhos, e mais além, procurando uma árvore, uma raiz, um céu, um braço, um assoalho de madeira, um velho sofá rasgado, gritos de crianças, um sufoco de grama, as brincadeiras zunindo, procurando buscar um canto onde havia meu esquecimento. Ele abriu a porta já um pouco nervoso e enquanto eu passava pelo batente pensei que ninguém deveria morrer sem ter lido Julio Cortázar, e que deveria dizer-lhe isto, entre os dentes, rosnando como um animal.

Iã Paulo Ribeiro

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