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Contos-->Nunca Mais -- 29/11/2003 - 18:29 (Dulce Baptista) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Nunca Mais
Dulce Baptista

É o tal negócio. Falta de homem mais falta de grana, igual a: cara feia. Tal é a conclusão nunca explicitada, porém presente na cabeça dos colegas. E cara feia todo dia acaba virando doença. Um dia tem dor de cabeça, no outro falta de ar, no outro dor de barriga, e por aí vai.

Não raro, o desepero se traduz em gritos: "Traz o grampeador!", "Tira dez cópias!", "Chefe imbecil!"...O que chama a atenção , no caso, são os decibéis. Tem-se a impressão de que atravessam toda a Esplanada dos Ministérios e voltam ricocheteando nos tímpanmos de quem está mais perto.

Afinal, essa é Nilza, grande Nilza, há vinte e quatro anos no Ministério da Fazenda. Vinte e quatro anos lidando com compras e aquisições as mais variadas possíveis, de clips e carimbos a computadores de última geração. Por conta disso, passa também, com todo respeito, a ser chamada de "rainha do almoxarifado".

Uma rainha e tanto: morena bem fornida e já passada dos quarenta, traz o cabelo impecavelmente retocado nos tons avermelhados da moda. A roupa sempre nova revela o gosto preferencial pelas cores fortes e estampas graúdas. A presença jamais passará despercebida, seja pela voz estridente ou pela indumentária inconfundível.

Em priscas eras havia se deitado com homens de diversas raças e credos. As pessoas sabem disso porque ela não faz cerimônia em partilhar episódios de sua vida pessoal com quem quer que seja. Especialmente aqueles relacionados ao sexo oposto. É com mal disfarçado orgulho que os narra, como se de cada um deles tivesse resultado uma credencial a mais em seu currículo de "femme fatale".

Mas o tempo passou, e já são anos que Nilza se encontra desacompanhada de qualquer amor. Cansou de esperar que alguém se transformasse no ser definitivo de sua existência. Desistiu com o tempo de correr atrás desse tipo de felicidade que depende do outro, do cara-metade imaginário, idealizado. Conforma-se agora com a solidão, ou melhor, com a penca de amigas com quem costuma falar mal dos homens, se queixar do emprego, ir ao cinema de vez em quando, e se esquecer da vida tão cheia de liberdade e solidão. Liberdade, de fato, nem tanto, já que precisa assinar ponto todos os dias. Já a solidão, pensando bem, só pesa mesmo entre as quatro paredes do apartamento. É lá que a arrumação perfeita do quarto e sala trai a ausência de crianças ou de mais alguém, seja quem for. A televisão continuamente ligada é a companhia infalível até que adormeça.

Tudo começa novamente às primeiras horas da manhã. Pega carona com Renan, da seção de pessoal. Moram em quadras próximas, trocam impressões pelo caminho. Sabem tudo um do outro: os filhos dele estão na faculdade, a mulher fez plástica. Gostam de cachorro, principalmente da raça pastor alemão, mas concordam que é difícil criar um bicho desses em apartamento. Vez por outra conversam sobre dívidas. Assunto delicado, Nilza intui com alguma preocupação que um pedido de dinheiro pode estar a caminho.

Já no escritório, o telefone toca, o chefe reclama da fatura que ainda não foi assinada, da compra do ar condicionado que passou do prazo. A veterana funcionária vai aos poucos ficando irritada. Pousando o fone, relanceia divisórias e arquivos metálicos parecendo não ver as seis pessoas presentes no recinto, e, fiel a si mesma, exclama em alto e bom som: "Sujeito cretino!"

Passo a passo a rotina segue. Arquiva recibos, carimba pedidos, discute orçamentos.

Junto a uma das mesas, Zezé, a copeira, narra com detalhes as peripécias do último parto, ocorrido antes do previsto numa viatura de polícia. Do Gama ao hospital da Asa Norte, a maratona de gritos e contrações só teve fim quando o soldado Iranildo aparou o bebê com as mãos. O motorista, de tão nervoso, quase atropela o povo no estacionamento.

Papel por todo lado. A informática não eliminou a papelada e Nilza constata com desgosto o sumiço da nota de compra. Se o ar condicionado não for instalado nos próximos dias, o chefe vai brigar feio... A garganta fica seca, o suor escorre pelas têmporas, o braço esquerdo parece dormente. Pensa em pedir as contas, mas só por um segundo; sabe pela milésima vez que isso é impossível, seria o mesmo que jogar uma vida inteira pela janela.

Não saberia começar tudo de novo em outro lugar, e nem quer. Sua vida sempre foi naquela sala, com aquelas pessoas, ainda que uma ou outra eventualmente mude de pouso. O olhar aflito cruza com o de Zezé, que após o relato da aventura, recolhe copos e xícaras. A moça toma um susto. "A senhora está bem?" pergunta, solícita.

Só então Laís, João Carlos, Paulo César, Maria e Silvana se voltam para ela. O que seria dessa vez? A veterana funcionária não consegue se fazer entender. Nunca mais conseguirá. Nunca mais.

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