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Contos-->Histórias De Acasos e Tristezas -- 02/12/2003 - 13:58 (Márcio Scheel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A Casualidade Do Amor
(De uma Conversa com Isadora Borges)

Nunca acreditei no Acaso, essa justificativa infundada para todos os imprevistos, acidentes ou quaisquer tipos de atentados inexplicáveis contra a ordem natural das coisas, que, de uma hora para outra, nos altera o Destino, essa Caixa de Pandora a guardar todos os sortilégios e misérias que ainda não nos foram dados a conhecer, mas que nos esperam, inexoravelmente, na inevitável curva do Futuro, esse abismo de sonhos e expectativas no qual nos precipitamos a cada dia, porque, diante dele, nem os deuses podem quedar-se absolutos e satisfeitos da decisão de não cair.
Preferia acreditar no mote dos filósofos Iluministas, afirmando que tudo no mundo é passível de explicação racional. E que a crença no Acaso é uma deficiência do espírito. Mas qual o quê? Dia desses, conversando com Isadora Borges, uma argentina adoravelmente loura e impossível, amiga querida desde os tempos de infância, acabei surpreendido por uma frase sua: O amor é um Acaso notável! Ri indiferente, que o riso de indiferença é o caminho mais curto pelo qual chegamos às controvérsias e aos enganos.
Ela continuou: O que mais pode explicar o fato de que duas pessoas distintas, de lugares, realidades, anseios e desejos tão diferentes, após tantos desencontros, acabam por se encontrar um dia, se olhar, se descobrir e se reconhecer, se apaixonar assim, gratuitamente, senão o Acaso? Desconfio que Isadora já era romântica - coisa que ela nunca reconheceu - naquele inescrutável e doloroso momento em que os seres são concebidos meio contra a vontade, sem poder de escolha ou renúncia!
Respondi que as pessoas estão sempre a buscar algo, o que quer que seja, capaz de aplacar a solidão e o tédio que, no fundo, são a mesma e indistinta coisa; que o encontro com o Outro não passa, então, do resultado natural de uma busca motivada; logo, não pode haver Acaso que determine aquilo com que primeiro se sonhou.
Isadora calou-se por alguns minutos, e não fez senão olhar-me fixamente. Sempre me impressionaram seus grandes olhos azuis a calcularem a distância exata das coisas, a precisão dos gestos, o abandono do outro, como quem procura neutralizar as paixões interiores a favor de uma serenidade contida que acaba por se revelar sua mais secreta e suave complexidade. Isadora entretecendo parábolas, me enganando e convencendo sempre; a mesma e desconcertante Isadora de minha infância, a que se divertia ao me explicar as vantagens de ser caracol, e porque as borboletas amarelas não gostam de girassóis. A mesma estrangeirinha que se mudou, de repente, na casa ao lado para, anos mais tarde, ir-se embora tão inesperadamente quanto chegou. Isadora, a mesma voz pausada e seca, cortante feito o frio aço das navalhas argentinas, o mesmo tom sereno, o mesmo desconcerto urgente, impreciso e vago.
Depois de um silêncio cortante e dissimulado, saiu-me com esta:

"A busca motivada e seu natural encontro, necessidade e liberdade para buscar, é o que Breton chamava de Acaso Objetivo... Não fosse a casualidade com que Filêmom e Báucis, marido e mulher, acolheram, em sua modesta casa, Zeus e Hermes, não teriam descoberto nunca a felicidade de morrerem juntos, tornados árvores frondosas na entrada de um magnífico templo, cujo mármore guardaria para sempre o reflexo mítico do primeiro Amor Eterno...
Não fosse o Acaso do primeiro homem cedendo aos caprichos e vontades da primeira e indefectível mulher, e seríamos ainda a sombra perpetuamente guardada, para sempre esquecida, nas rubras fronteiras de uma insípida maçã. Isso porque Adão amou Eva no mais casual e originalíssimo de todos os pecados...
Não fosse o errante Acaso de um cavaleiro medievo sem destino ou paragem, o confronto dele com um rei cuja nobreza de coração nunca mais se verificaria pelos séculos dos séculos, rei que, mesmo vencido, receberia o outro em sua morada, e a belíssima Guinever não teria descoberto o gosto primaveril de um Amor feito de urgência física e doação incondicional...
Não fosse a Fortuna adversa que Netuno fez abater sobre o blasfemo Ulisses e este não teria levado dez anos para retornar à casa nem derramado, em nome da vingança, o sangue maldito que os tempos de paz lhe proibia, apenas para punir aqueles que atentaram contra seu trono e contra o Amor de Penélope...
Não fosse o beijo santificadamente casto e casual do mais obscuro de todos os traidores, numa remota noite de sexta-feira, e o escolhido das arcanas revelações não teria cumprido seu compromisso Amoroso para com a humanidade toda, sacrificando-se, corpo e alma, em nome dos impenetráveis e misteriosos desígnios da fé..."

Isadora, suavemente pagã, terrivelmente cristã, a iluminar meu ceticismo de gauche, falando nos Acasos notáveis que aproximaram Romeu e Julieta, Quixote e Dulcinéia, Tristão e Isolda, Hamlet e Ofélia, Riobaldo e Diadorim, Otelo e Desdêmoda, Dante e Beatriz, Laura e Petrarca, Camões e Dinamene... A me dizer que não há explicação racional que valha o momento mágico, a revelação e o alumbramento de saber-se vítima inconfessável da casualidade, do acidente, do inexplicável e do fortuito que é o não-tempo e o não-lugar, espaço etéreo, em que o Amor se faz como uma luta, e nenhum lance de dados seria capaz de abolir esse Acaso.
E era com o mesmo olhar preciso, exato e azul que Isadora me dizia, com uma certa tristeza, que para nós, infelizmente, o amor não seria nunca. Nem com todos os acasos deste mundo. Culpa desse seu ceticismo de gauche, Scheel... Quem manda já ter sido cínico antes da puberdade?

P.S.1 - Isadora, incrivelmente loura, adoravelmente impossível. Estava de passagem, veio apenas visitar os avós. Voltou para Portugal semana passada. Vive lá agora. É estudante da Universidade de Évora. Muito aplicada, diga-se de passagem.
P.S.2 - Você tem razão, querida, o amor é mesmo um acaso notável. Um beijo, Isadora!
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