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Contos-->À Sombra do Jatobá - XXX - A morte de Dalva -- 03/12/2003 - 01:36 (Christina Cabral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
À Sombra do Jatobá – XXX – A morte de Dalva

Delfina fazia o percurso da cidade para a fazenda e, fora do seu costume, aumentava a velocidade do carro. Um mau pressentimento a preocupava. Habituára-se com esses “avisos” que, sem motivo algum aparente, a martirizavam.

Dalva, apesar das noites mal dormidas, assediadas pelas crises de tosse e asma, andava alimentando-se melhor.

Como sempre, ao sair de casa logo depois do almoço, ela a havia deixado pronta para um bom sono reparador. Miloca ficaria ao seu lado porque tinha o hábito de armar a sua rede ao lado da cama da avó. Conversavam um pouco, a moça abria o jornal, ia lendo em voz alta as principais notícias, fugindo dos assuntos desagradáveis. Dentro em pouco as duas adormeciam e o casarão entrava em total silêncio.

Desde a morte de Chora, Marina, sobrinha da rendeira Sinhá, havia tomado o seu lugar, tanto na cozinha como nos cuidados com a família. Estaria, Delfina tinha certeza, com a atenção voltada para a sua santa. Entretanto, era enervante sentir que algo não ia bem, sem querer imaginar com o quê. Talvez a doença prolongada de Dalva estivesse lhe desgastando os nervos.

A partir da morte de Otávio, Dalva deixara de se importar com a vida, ou melhor, havia dado a sua missão por terminada. Para Delfina isso era inaceitável, visto o amor que lhe dedicava, amor-idolatria por sua santinha e ficava profundamente triste por esta apegar-se à idéia de partir, de juntar-se ao marido. Era como sentisse saudades antecipadas.

Dr Januário já a havia avisado que o coração de Dalva estava por um fio, um acesso mais forte de tosse ou asma...

Delfina acelerou, mais ainda, a marcha da caminhonete.

O vento quente do cerrado afogueava seu rosto e embaraçava seus cabelos.

Quando chegou na fazenda, durante um dia de verdadeira guerra, que foi interrompido pelo mau pressentimento que a atingia, obrigando-a a voltar para casa, sentiu verdadeiro remorso por não estar o tempo todo ao lado de sua mãe que, sem tomar conhecimento das tragédias da família, suportava com resignação a sua doença - distribuira amor e gentileza durante toda a sua vida e, agora, queria partir, lentamente, como o sol se apaga. Deixaria de iluminar o cantinho costumeiro de sua presença. Assim foi encontrá-la Delfina: a face pálida, os olhos cerrados, como se dormisse, os braços em repouso.

Partira simplesmente, sem sustos, sem rezas, sem lamentos. Apenas o pranto corria, silencioso na face da Miloca, Marina e as cunhãs, ainda aturdidas com aquele momento com o qual não se conformavam.

Ajoelhada junto da cama, Delfina sussurrou, com toda a tristeza do mundo:

- Oh! Minha santa! Por que não esperou por mim? Eu queria tanto participar deste seu momento! - Afagava os cabelos sedosos de Dalva e seus pensamentos buscavam o seu Deus de força e dinamismo. Ela jamais poderia morrer assim, sem arrematar, bem arrematada a sua passagem por esta vida, apregoando: “Venham! É por aqui! Não temam!”

Dr. Januário chegou-se mais perto e murmurou:

- Ela foi como um passarinho; não sofreu nada. Apenas partiu, enquanto dormia.

Agora, no lado positivo de seu pensamento, Delfina visualizava Otávio e Dalva que voltariam a se reunir, lado a lado, no pequeno cemitério da Ribeira do Curú e, com certeza, livres do peso da velhice, alcançariam a amplidão. Delfina podia imaginá-los: ele, readquirida a imagem dos seus cento e vinte quilos de músculos, a caminhar, faceiro, na frente, enquanto ela, frágil e mimosa, cheia de orgulho, seguia em seu encalço. O Céu? – perguntava-se Delfina – deve ser assim, prolongamento do amor e das coisas boas da Terra. Amorosamente, abraçou-se com Miloca, no sentimento profundo que as unia.

Este ambiente de paz e respeito foi, violentamente quebrado pelos gritos de Elvira que, ao entrar no quarto, depois de tanto tempo sem ver a mãe, a encontra morta. Revoltou-se por ter sido proibida de sentir o carinho que sua mãe sempre lhe transmitiu. Agora era tarde. Jamais poderia sentir a ternura com que Dalva a mimara, durante toda a sua vida. E justamente agora, quando estava conhecendo as maiores angústias de todos os tempos! Todos estes sentimentos emergiam, desordenadamente, em sua mente já desequilibrada.

Miloca correu para ampará-la e, carinhosamente, abraçou-a e esperou que ela se controlasse e passasse apenas a chorar.

Depois, providenciou que todos os familiares e amigos mais chegados fossem avisados, especialmente os tios.

Os momentos, os dias, têm a cor dos nossos sentimentos. Que dia tão triste e cinzento para a família Costa Lagedo. Os filhos foram chegando, e silenciosamente se abraçavam.

Manfredo e Ema vieram de Sobral, com os filhos Marcelo e Renato. Tobias e Marluce chegaram de Fortaleza, mas deixaram os filhos com os avós. Eram dois meninos levados e brigões, que poderiam perturbar o momento de tanta dor e respeito.

Todos aguardavam a chegada de Vadico, do Rio de Janeiro.

Filó e Sinhá atendiam com chás calmantes aos mais chorosos, e entre eles, destacava-se Elvira que, como sempre, não se punha dentro da situação, apenas sofria as suas revoltas e remorsos.

Miloca havia providenciado para que Ana - pesadona e aguardando seu filho – não viesse ao velório. Temia confrontá-la com Elvira.

Ao entardecer levaram Dalva, em seu caixão, para a capela, onde padre Jesuíno rezaria a missa.

Dr. Januário, como sempre, deixava-se ficar a um canto, compartilhando,com sua presença e atenção, de mais um momento dramático na vida de Delfina. Como gostaria de abraçá-la, de dizer-lhe que ele estava ali, com seu carinho, o seu amor. Cristo! Há quantos anos estava ali, com seu carinho, com seu amor! Tinha a impressão de que Delfina já o sentia como parte dela mesma; já contava com ele como contava com os próprios braços, sem reverenciá-los, sem precisar dizer-lhes o quanto eram importantes para ajudá-la a carregar a sua cruz.

A premonição de Delfina fora aliviada porque sabia que Dr. Januário estaria lá; no fundo do coração, ela sabia que Januário estava lá...

Cansativo e deprimente é fazer o quarto a um defunto. O pranto, os soluços, os suspiros profundos, as velas tristonhas derramando lágrimas de cera; o cochichar, o não ter o que falar, apenas considerações: “Tão boa que era ela” – “Uma santa!” – “Ainda ontem disse que estava com saudades do marido...” – “É, parecia que se despedia da gente...”

A noite se alongava, pesada, envolta num véu de silêncio e espera. A fumaça das velas, o cheiro intenso e enjoativo das flores que já feneciam, e a emoção, empalideciam as pessoas, tornando-as verdadeiros espectros. Os olhos afundados em olheiras, a pele macilenta e os dedos cansados de rolar as contas dos rosários.

Quando o sol surgiu, na mais comum das madrugadas, todos foram voltando para suas casas. Teriam tempo para um descanso, porque o enterro estava marcado para as dezesseis horas.

Junto ao corpo de Dalva os familiares se revezavam.

Miloca e Delfina supervisionavam os trabalhos das cunhãs e, lá na cozinha, Marina e Sinhá preparavam o almoço.

Padre Jesuíno e Dr. Januário almoçariam com a família. Os olhos do médico buscavam, com piedade, a figura de Delfina que, mesmo desconsolada em seu sofrimento, mantinha-se atenta com os cuidados e o bem estar dos irmãos e suas famílias.

Logo após o almoço chegou Vadico; a sua chegada, depois de tantos anos de ausência e num momento tão triste, aumentou a emoção que envolvia a todos. Seguiu imediatamente para o lado de sua mãe e demonstrou tal sofrimento que ninguém teve oportunidade de dar-lhe as boas vindas. Somente Ema procurou cumprimenta-lo, mas foi rapidamente impedida por Manfredo.

Às quinze horas padre Jesuíno rezou a missa de corpo presente e, enquanto o sino chorava no campanário, Dalva seguiu para o cemitério, para ficar ao lado de Otávio.

Abraçando Delfina, muito amoroso, Vadico comentou:

- Este momento parou! A vida parou! Nossas raízes estão aí, enterradas para sempre, Delfina!

- Que benditas raízes, meu irmão – sacudindo lentamente a cabeça, murmurou – que privilégio Deus nos concedeu!

Depois, foram abraçados por Miloca e Vadico comentou, ao sentir, pela primeira vez, a presença da sobrinha.

- Como você é linda, menina, herdou toda a beleza e o vigor de sua mãe. Só espero que não tenha herdado a sua braveza – e nos seus olhos tristonhos brilhou uma fagulha brejeira.

De volta à fazenda, o silêncio separava a todos, como se houvesse um abismo entre eles. Um cafezinho servido por Sinhá parece que despertou-os para a nova realidade, quando a presença de Vadico passou a ser o ponto alto das conversas e indagações. Mesmo assim, o cansaço e o profundo vazio que parecia existir em cada canto do casarão, fez com que todos se recolhessem mais cedo para seus quartos.

De manhã a família foi acordando e se encaminhando para a copa. Marina e Sinhá já haviam posto a mesa, onde recendiam o cuscus com leite de coco, as tapiocas branquinhas, os bolinhos-de-chuva salpicados com açúcar e canela e os pãezinhos de cará, preferidos por Vadico e Tobias.

Provando o perfumado café, Tobias suspirou:

- Quanta saudade!

Olhando o cuscus amarelinho, Manfredo lembrou:

- Parece que foi feito pela Chora. Numa das minhas visitas, quando ainda estava na Faculdade, eu disse que se eu me casasse iria levar a Chora, pelas coisas gostosas que fazia, mas papai respondeu, rápido: “Só se passar por cima do meu cadáver!”

Filó, que havia ficado na fazenda para aproveitar a reunião dos irmãos, comentou carinhosa:

- A Marina também cozinha muito bem!

- Pudera, - disse Miloca – ensinada por Sinhá!

E assim, numa conversa amena, onde a saudade falava mais alto, eles foram terminando a refeição e passaram para a varanda. Depois de todos acomodados, Manfredo disse:

- Voltaremos ainda hoje para Sobral. Sinto muito não poder aproveitar esta reunião.

Tobias e Marluce, preocupados com os filhos, resolveram que também partiriam para Fortaleza.

Vadico informou que ficaria mais uns dias, pois queria matar a saudade da fazenda, do convívio das irmãs, visitar Teobaldo e conhecer as sobrinhas Ana e Miloca.

A conversa foi se desenvolvendo calmamente, como se cada um estivesse procurando reminiscências agradáveis. De repente, sem mais nem menos, Ema preparou-se para falar. Delfina, sentada junto a Filó, percebeu a intenção da cunhada e, horrorizada, pensou: “Meu Deus! Ela não vai tocar no assunto, agora! Eu não posso acreditar!” Mas Ema, que havia pranteado a sogra como se pranteasse a própria mãe, entre soluços e gemidos, e que havia ficado ao lado de Filó que, resignadamente rezava o terço e, volta e meia acariciava os cabelos de Dalva, deu, naquele momento, um verdadeiro espetáculo de egoísmo, insensibilidade e ganância:

- Eu creio, - disse sem constrangimento – que devemos aproveitar, antes da nossa partida e por estarmos todos presentes, herdeiros da fazenda, para resolvermos como serão distribuídas as nossas partes...

Delfina acordou do seu espanto, não podendo acreditar no que ouvia.

- Não! – pensou também Miloca – não é possível que ela esteja falando isso!- Analisou a face da tia, fria como uma pedra, a sua boca-de-chupa-ovo, a desfaçatez com que passara a choramingar: “As dívidas de Manfredo, a construção da casa em Sobral, a educação das crianças e, afinal de contas, o que lhes pertencia por direito, o que lhes era devido”.

Delfina juntou-se mais à Filó e, silenciosa, completamente aturdida, fitava a cunhada,.

Vadico explodiu:

- Ema, isto parece um dramalhão barato! Nem a mãinha esfriou na campa! Além do mais, este assunto vai ser resolvido entre os irmãos, como você disse, os herdeiros! Eu, de minha parte, já abro mão para Delfina! Uma fazenda que ela desenvolveu, que aplicou aqui as economias do Roberto, que administrou a duras penas e, corajosamente assumiu – olhando em volta ele continuou – assim como assumiu os escândalos da família...

Ema gritou, desvairada:

- E nós, meus filhos e eu, temos culpa? Somos cargas, também para Dona Delfina?

Vadico continuou com o mesmo tom:

- Não são agora, mas foram, ou a senhora tem memória fraca? Quer que eu lembre?

Tobias se juntou ao irmão:

- Eu também não quero ver a fazenda dividida. Ela é de Delfina.
A discussão chegou ao ponto final com Vadico negociando com Manfredo a venda da sua parte para Delfina e propondo a sociedade desta com Filó e Elvira.

Quando, três dias depois Vadico partiu, elogiando o trabalho da irmã, Delfina sentiu-se totalmente abandonada, sozinha. Toda a tragédia dos últimos dias e as de toda a sua vida, ruíram sobre seus ombros. Mais uma vez, das poucas que ocorreram, Delfina chorou, chorou. Miloca amparou-a, incentivando que ela desabafasse.








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