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Contos-->MARIA DOS PRAZERES -- 06/12/2003 - 14:34 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Naquele pequeno cemitério alentejano, as três tradicionais badaladas anunciaram a chegada dos restos mortais de Maria dos Prazeres. Maria, de 74 anos, que de prazeres só tivera o nome, pois em tudo o resto a vida lhe fora quase sempre madrasta.
Contemporânea de Catarina Eufémia, também ela nascida em 1928, começara a trabalhar deste criança.
Vivera todas as crises do proletariado alentejano. Desde os anos quarenta e cinquenta. Muito jovem, sofrera juntamente com a família e a generalidade dos alentejanos, as aviltantes condições de trabalho, a precariedade do emprego, as jornas baixas impostas pelos latifundiários e a repressão da GNR actuando segundo as directivas do regime fascista. Participou em manifestações e greves, de que o resto do País nem tomava conhecimento. Numa delas, um tenente da GNR assassinou Catarina com três tiros.
Quando o caixão de Maria dos Prazeres desceu à terra, viram-se muitas lágrimas a escorrer por faces rugosas tisnadas pelo sol. Mais uma que se ia… Depois da emigração dos novos, assistia-se agora à partida dos mais velhos. Uns partiam pela lei natural da vida. Outros abreviavam o fim do sofrimento e da miséria… Nem nesse último instante, lhes faltava a coragem para decididamente acabar com a vida, que já não valia a pena ser vivida.

Mal se começou a ouvir o ruído da terra caindo sobre o caixão, Jorge Manuel afastou-se num passo rápido, tão rápido quanto lhe permitiam ainda as pernas e a idade. Resolveu andar, andar sem destino, relembrando a vida de Maria dos Prazeres, mulher que amou e a quem nunca se declarou. Os acasos da vida aproximou-os umas vezes, afastou-os noutras e ele nunca lhe confessou quanto gostava dela. Nunca se sentiu capaz, porque sabia não ter um futuro risonho para lhe oferecer. Foram apenas amigos, com os mesmos ideais. Até ao fim. Até que a doença maldita a levou.
Como a generalidade das raparigas alentejanas, Maria do Prazeres habituou o corpo, desde miúda, a debruçar-se sobre o chão, mondando e sachando. Mais tarde aprendeu a ceifar, a lavrar e a carregar carros de trigo.
Era uma moçoila bonita, com lindos olhos castanhos, lábios carnudos, boca expressiva e cabelo farto. Cantava em ranchos e coros as cantigas tão peculiares do Alentejo.
No verão, o calor e a luz tornavam-se insuportáveis. Mas ela tudo aguentava, sofredora e pacífica. Os alentejanos talvez sejam, de todos os portugueses, aqueles que se sentem mais próximos do modo de viver dos grandes países quentes. Misto de solidão, planícies imensas, caminhos por onde se pode caminhar sem fim… Talvez isto viesse a ter importância nos primeiros passos de emancipação de Maria dos Prazeres.
Legal ou clandestinamente, os portugueses começaram a emigrar em massa na década de sessenta. Os salários de miséria, a falta de liberdade, as guerras coloniais, tudo encorajava esse êxodo.
A mão-de-obra passou então a escassear, também no Alentejo. Os agrários viram-se obrigados a pagar melhores jornas, mas nem por isso se passou a viver melhor. A miséria continuava. O trabalho era sazonal e havia sempre grandes períodos de desemprego.

Um primo de Maria dos Prazeres, que tinha abalado para Angola e com quem ela se correspondia, convenceu-a a tentar também a aventura africana e ela lá foi. Jorge esteve anos sem a ver, mas não deixou de ter notícias suas através da família.
Ficou em Luanda a trabalhar e residia com o primo e respectiva família nos arredores da capital. A guerra colonial já tinha começado mas, nas cidades principais e em grande parte do território, ela nem sequer era sonhada. Nas horas vagas, para matar saudades e para «pagar» a seu modo a maneira como havia sido acolhida, tratava de uma pequena machamba situada junto da residência.
Trabalhou em vários locais todos ligados ao ramo alimentar e ganhou bom dinheiro pois, na qualidade de metropolitana, os patrões davam-lhe sempre lugares de responsabilidade e bem remunerados. Para além de tudo relacionava-se muito bem com a população local, fosse ela branca ou negra.
Os anos foram passando e Maria dos Prazeres habituara-se facilmente à vida angolana. Espaços mais largos ainda que no seu Alentejo natal. Chegou a abrir um comércio em parceria com o seu primo, onde vendia de tudo um pouco. Segundo o que ela descrevia nas cartas para a família, tratar-se-ia de um pequeno super-mercado. Nunca namorou, apesar de conquistar amizades com muita facilidade.
Em 1974 deu-se o 25 de Abril em Portugal, com imediatas repercussões em Angola. Sentiu-se feliz pelos angolanos e até participou em manifestações locais. Nem por um momento pensou em regressar a Portugal. Tudo o que tinha ganho estava lá investido, a casa não era sua e não era ambiciosa. Deveria ser bom viver num país, cuja população vivia em liberdade e em breve seria independente. Infelizmente, a vida não é sempre tão fácil quanto deveria ser. Os portugueses oriundos da metrópole, à medida que os militares iam partindo, começaram a sentir-se inseguros. Outros porventura com a consciência pesada. E, rapidamente, começou uma verdadeira ponte aérea de Luanda para Lisboa. Partiam com as coisas de primeira necessidade e o resto, quando havia, seguia mais tarde por barco. Segundo Maria dos Prazeres, no entanto, aquele êxodo era uma «organização perfeitamente desorganizada». Juntamente com aqueles, negros e brancos, que queriam, por variadíssimas razões, deixar o solo angolano, começaram a partir pessoas quase sem saber porquê… Mal-entendidos, má comunicação ou intenção deliberada? Um belo dia, viu-se metida num avião com destino a Lisboa. Chorou pela vida que deixava para trás mas, curiosamente, ela que chegara sem nada, com nada partia e sem que a ideia a chocasse. Sempre o seu modo de aceitar a vida. O «destino» assim queria, assim teria de ser!
Durante a viagem, e ao ler os jornais portugueses, sentiu-se logo numa nova fase da sua vida. A alegria e a liberdade andavam nas ruas, havia manifestações por todo o lado, a tropa estava com o Povo e, no Alentejo, nasciam cooperativas, havia ocupações de terras, alterava-se a relação servos/senhores que vigorara até então.

Assim Maria dos Prazeres regressou à terra natal. Em plena «reforma agrária». Os próprios militares colaboravam em «sessões de esclarecimento» em que incitavam os camponeses a ocupar as terras, principalmente as que estavam ao abandono. «A terra a quem a trabalha!». As leis viriam depois, mas agora era tempo de avançar depressa e em força!
Foram tempos de trabalho e de euforia. Não faltava emprego para ninguém. Já não havia medo, usufruía-se de liberdade, valor até então desconhecido, e não se era explorado pelos agrários. Todos trabalhavam para o colectivo. A situação cimentava-se e parecia irreversível. Os governos apoiavam pelo menos por omissão; os partidos de esquerda estavam ao lado dos trabalhadores e os partidos de direita só se iam manifestando timidamente e, claro, rotulando-se a si próprios de partidos do centro ou de centro-direita.
Maria dos Prazeres vivia sozinha na casa que havia sido de seus pais, entretanto falecidos. Quantas vezes se deitava, com o corpo arrasado mas com um luarzinho nos olhos, pensando nos dez anos que vivera em Angola, desejando um futuro feliz para o novo País, e vendo que tantas coisas que considerara utopias se tinham tornado realidades. Mal adivinhava ela que muitas nuvens negras se iam amontoando no horizonte.
Uma certa Democracia é possível, uma certa Liberdade é permitida, mas a democracia social e económica é difícil de alcançar de forma sustentada. Os diversos fornecedores começaram a falhar, o crédito começou a ser difícil se bem que a banca tivesse sido nacionalizada, a produção era boa mas o escoamento era difícil por falta de estruturas de distribuição. Finalmente, os governantes tardavam em publicar leis e, quando o fizeram, elas não foram mais que o preâmbulo do desmantelamento da Reforma Agrária.
Houve resistências aqui e ali, mas a correlação de forças já não era a mesma. Algumas Cooperativas foram aguentando, agonizando lentamente. As terras começaram a ser devolvidas aos antigos agrários. O sonho bom desfazia-se e Maria dos Prazeres, cada vez mais tristonha, começou a definhar. Ainda não tinha cinquenta anos, mas parecia bastante mais velha. Dificilmente encontrou trabalho. Ganhava o mínimo para subsistir. Os salários agora eram mais elevados, mas o emprego continuava a ser precário e via-se obrigada a amealhar um pouco, quando podia, para aguentar os dias mais difíceis.

Várias vezes Maria dos Prazeres e Jorge Manuel se encontraram, nas andanças de terra em terra, de patrão em patrão. A amizade aumentou. Jorge continuou a amá-la em silêncio. O tempo exacto já tinha passado. Nunca lho confessou, mesmo nos momentos mais críticos que viveram mais tarde, mas o modo especial de olhar para ela não terá passado despercebido a Maria dos Prazeres. Pode afirmar-se, com pequena margem de erro, que se amaram com os olhos mas que nunca o quiseram confessar.
Alguns anos depois, os médicos diagnosticaram a Maria dos Prazeres uma doença grave, porventura incurável. Passou a viver do subsídio de desemprego e, mais tarde, de uma pequena pensão social.
Jorge passou a visitá-la quase todos dias. Quando era hospitalizada também a ia visitar nos fins-de-semana. Apesar das suas dificuldades económicas, sempre arranjava modo de lhe levar qualquer coisita. Um petisco, um bolo… Quantas vezes, porque o dinheiro faltava, apenas lhe levava uma qualquer flor colhida pelo caminho.
Falavam sobre tudo (menos sobre eles próprios…). Os assuntos andavam sempre à volta da pobreza, da emigração, da recuperação da liberdade, de tantos sonhos frustrados e de tanta desilusão. Muitas vezes, quando davam por isso, já era muito tarde. Jorge despedia-se invariavelmente com um «até amanhã, se puder».
E tentava poder sempre!
Com os tratamentos que fazia, caiu-lhe o cabelo. Ela brincava dizendo-se parecida com determinada artista de cinema que vira num filme em Luanda. Levava dias completamente prostrada, outros com a esperança renovada.
Os meses, muitos meses, passaram e ela cada vez ficava mais magra. Mal se alimentava. No hospital já não a aceitavam, pois não havia nada a fazer a não ser os tratamentos periódicos. A solidariedade das vizinhas ajudavam a tornar menos penosas certas tarefas que ela já não conseguia executar. Como verdadeira mulher alentejana, habituada a todas as adversidades, ela bem queria, mas as forças já não lhe permitiam continuar por muito mais tempo aquela luta desigual.

Uma noite, quando Jorge chegou para mais uma visita, encontrou-a em estado de aflição sentada numa cadeira. Disse que estava completamente esgotada e que não conseguia sequer deslocar-se até à cama, com medo de cair. Pegou nela e colocou-a no leito. «Estou no fim, Jorge Manuel!» – disse ela com uma voz quase sussurrada. Olhou-o muito fixamente com ternura e a cabeça descaiu lentamente para o lado. Jorge Manuel aproximou-se titubeante e deu-lhe um beijo na testa. Não se conteve e gritou: «Não partas! Sempre te amei!». Declaração tardia, triste, solitária, sem testemunhas e inútil… O Mundo esboroava-se à sua volta.
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