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Artigos-->Islamismo, Mulher (Xerazade), Orientalismo... -- 13/07/2002 - 15:02 (Dante Gatto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Islamismo, Mulher (Xerazade), Orientalismo...



A Arábia pré-islâmica, chamada pelos árabes a djahlia, época da ignorância e da barbárie, deu origem, ao islã que, além disso, retomará características ancestrais (mais precisamente o cristianismo e o judaísmo), continuando-as e transformando-as.



O profeta Mohammad (as outras pronúncias, Maomé, Mafoma, Mofamede, Tavergan, conforme Haddad [1981, p.5], são depreciativas e racistas) aparece no século VII da nossa era, inaugurando o islamismo.



Tratava-se, quanto a ética, um povo que relacionava honra a virilidade. O homem tinha de ser forte e combativo, saber conduzir-se na paz como na luta contra o inimigo. A característica física predominante na península arábica é o deserto. Este ambiente inóspito interfere na conduta do indivíduo. Se, por um lado, esta condição de vida impunha, como exigência quase sagrada, a hospitalidade, por outro lado, este homem é rude e arredio. Mesmo a hospitalidade é limitada uma vez que, dado ao nomadismo, hospeda-se para ser hospedado. Reforça-se a um tempo e paradoxalmente o individualismo e a solidariedade.



As várias famílias, cada uma ocupando uma tenda, constituem o clã. Os vários clãs, por sua vez, formam a tribo. Todos ligados por um forte espírito de grupo, que é um traço marcante da mentalidade árabe. Ninguém é nada quando sozinho. O indivíduo desaparece uma vez separado da tribo. E a honra desta sobreleva a do indivíduo, e este a segue, mesmo quando discorda da orientação do chefe. A exteriorização mais profunda de solidariedade e do companheirismo residia na lei do talião: “Ó crentes, fica prescrita a pena de talião para o assassínio, um homem livre por um homem livre, um escravo por um escravo, uma mulher por uma mulher” (ALCORÃO, p.15). Como também: “Aquele que matou um homem que por sua vez não cometeu violência, é como se tivesse morto todos os homens, aquele que salva um homem só é considerado como se tivesse salvo todos os homens” (ALCORÃO, p.18). E neste sentido define-se o ideal de igualdade: “Os homens são iguais entre si como os dentes do pente do tecelão. Nenhuma diferença entre o árabe e o não árabe, entre o branco e o negro a não ser o grau da crença em Deus” (ALCORÃO, p.22). Portanto, a estrutura social é estabelecida pela obediência à vontade divina.



O talião leva à vingança de forma implacável e modernamente se projeta no Código Penal: um homem, na Arábia Saudita, deu um tiro no olho de um chofer. A sentença foi arrancar um olho do agressor.



O árabe pode, por todo o norte da África e largas extensões da Ásia, encontrar pontos de atrito nos mais diversos setores da vida, mas Allah é o grande motivo de união. Tudo está transcendido pela Divindade, tudo tem um alto sentido, nada por si mesmo existe nem tem em si mesmo valor: “A Deus pertence tudo o que está nos céus e tudo o que está na terra. Perdoa a quem Lhe apraz e castiga a quem Lhe apraz. Deus é clemente e misericordioso” (ALCORÃO, p.34).



Dado a este poder terrível e absoluto da religião vai haver (e isto é inevitável) um reflexo direto na psicologia coletiva marcando assim diferenças essenciais em relação ao comportamento ocidental. Essas diferenças de maneiras de ser revelam-se em todos os gestos da rotina diária, a começar pelos mais íntimos: o muçulmano só sabe urinar de cócoras. Poder-se-ia encher várias páginas citando diferenças, não é o nosso objetivo aqui. Basta sabê-las muitas e profundas. Interessante observar, no entanto, o fato da completa ausência de psicanalistas em Beirute como observa Haddad (1964, p.11): “Ela é, em última instância, uma justificativa da violação do tabu, e no Oriente, como nas sociedades primitivas, esta transgressão é injustificável, e, por isso mesmo, deve trazer consigo inapelavelmente, como sombra, o castigo”.



O Deus único é Allah e Mohammad, o seu profeta. O monoteísmo faz parte da ideologia islâmica. É verdade que também do judaísmo e do cristianismo. Este é condenado pelos muçulmanos porque admite a Santíssima Trindade e os santos, o que se configura como politeísmo. Dentro da ortodoxia islâmica, ainda, Deus não engendra nem é engendrado, não sendo aceitável a idéia de uma mãe de Deus. No entanto, o tratamento dado no Alcorão à Cristo e Maria e exemplarmente reverente, conforme Haddad (1981, p.12) ao mesmo tempo em que coloca que o cristianismo, em troca, não fez mais que ir imputando, através dos tempos, os mais ordinários insultos que denotam absoluta falta de inteligência e fanatismo.



“A imagem islâmica vem sofrendo vicissitudes através dos tempos, a islâmica e mais amplamente a oriental, e esta imagem é imposta pela visão do Ocidente, sua incapacidade de ver o outro; o oriental só é” engolido” se se ocidentalizar segundo a visão imposta pelo imperialismo, pelo racismo e, romanticamente, o amor ao exotismo, este último forçando o oriental a se tornar mais diferente do que de fato é, conferindo-lhe uma realidade que apenas decorre da projeção de fantasmas inconscientes ocidentais sobre ele (o oriental é misterioso, as mulheres orientais... a sabedoria oriental. Uma forma esperta de disfarçar a discriminação e o racismo é o elogio). O misticismo. E tirando qualquer máscara, o fanatismo, com tudo o que a palavra encerra de irracionalidade”. (HADDAD, 1981, p.13-4)



Esta visão ocidental do oriente, bem como o ódio recíproco são frutos de um processo histórico. A península ibérica expulsa os mouros conquistadores e invertendo as posições parte para a conquista o que vai culminar com a expansão do império português, espécie de resposta aos árabes, pois foi contra eles que o império lusitano irrompeu pela África e pela Ásia. O resultado literário foi um poema épico, Os Lusíadas, em que Mohammad é tratado como o “vicioso Maoma” o “torpe Mofamede”, o “vil ismaelita”, imagem, portanto, desde cedo transferida para o Brasil. As cruzadas, querendo libertar os lugares santos, serviram também para completar a alquimia do antirabismo. Mais tarde o califado passa a ser otomano e os turcos chegaram ameaçadoramente às portas de Viena. Ser turco transformou-se mesmo num grande insulto que até hoje, por todo o mundo, persegue árabes e descendentes. Depois, a questão do petróleo, os petrodólares ... tornaram-se os bodes expiatórios de todo o processo inflacionário. O sionismo e Israel, gerando no árabe um antijudaísmo progressivo e cruel, só comparável em intensidade ao próprio antirabismo dos judeus.



A função do islamismo foi em grande parte eliminar desavenças intertribais e em buscar um caminho no sentido de constituir uma unidade ou, ocidentalmente falando, uma nação. Em árabe se diz UMMA, que seria um misto de solidariedade política e religiosa e ainda a filiação a UMM , que quer dizer mãe. A mãe-Pátria? Haddad (1981, p.17) reconhece a dificuldade da tradução deste termo. Mas a partir desta homogeneização pôde partir para a aventura da criação de um dos maiores impérios da Terra.



Outro aspecto imprescindível a ser tratado aqui é a condição da mulher dentro do mundo islâmico. Sociedade eminentemente masculina, a mulher constituía-se num bem da família de que o pai dispõe, cedendo-a a um pretendente que a leva em troca de um dote. A mulher inferiorizava-se, estava relativamente excluída do círculo da produção e não servia para a guerra.



Prega o Alcorão (p.42):



“Os homens têm autoridade sobre as mulheres pelo que Deus os fez superiores a elas e porque gastam de suas posses para sustentá-las. As boas esposas são obedientes e guardam sua virtude na ausência de seu marido conforme Deus estabeleceu. Aquelas de quem temeis a rebelião, exortai-as, bani-as de vossa cama e batei nelas. Se vos obedecerem, não mais a molesteis. Deus é elevado e grande”.



É verdade que a condição da mulher melhora consideravelmente, isto é, vão se aproximando das condições ocidentais.



Esta rápida visão do Oriente, se bem que se resumiu perigosamente temas controvertidos e complexos, permite que se aproxime, com alguma segurança, à personagem Xerazade.



Os contos serão contados por volta dos séculos XI e XII e tratarão de um tempo economicamente mais organizado, século XI, período do Califa Harum Al Rachid. O povo árabe é um povo de contadores. A poesia lhe é inerente. Fixam em letras de forma, o que, sem isto, seria oralidade pura. O que consiste afinal a vida de um árabe senão repouso e descanso? Não há alegria maior (ao não ser, é claro, o amor), do que um conto cheio de toda espécie de paixões e aventuras. A reputação daquele que fala, para o árabe, e muito maior da daquele que escreve. Mesmo Mohammad era analfabeto, no entanto, era o homem da pregação e encarnava a própria onipotência da palavra. Uma civilização oral, portanto, uma literatura anônima em que as obras não são assinadas pertencendo a todos e a ninguém. Assim, uma cultura difusa. Como na idade patriarcal da epopéia (etimologicamente: o que se exprime pela palavra), da lenda (o que se conta), da balada, do conto, do mito...



Faz-se suficiente, para atender aos objetivos propostos, empreender uma breve análise apenas no conto que inicia e termina a obra. Consiste o conto em questão no acontecimento desencadeador das Mil e uma noites. Far-se-á um breve resumo, tentando preservar, o mais que possível, as qualidades da narração. É fato, por outro lado, que não foi utilizado aqui a tradução de Galland, a qual o epíteto mileumanoitesco tem tudo a ver, segundo Borges (1993, p.78), mais do que qualquer outra tradução. A obra utilizada foi traduzida do texto original para o português por Eduardo Dias. Este, na apresentação dos seis volumes que constitui a obra, observa que, como Galland e seus continuadores, evitou-se a orientação de Mardrus, em conseqüência do erotismo dos trechos incluídos na tradução deste. Sem demorar nesta questão das traduções que, no caso, não interferem no objetivo em questão, é interessante observar que Borges (1993, p.79) refere-se às restrições de Galland como mundanas - “inspiradas pelo decoro, não pela moral”. Cita-se a nota do tradutor: “Foi direto aos aposentos dessa princesa que, não esperando revê-lo, recebera em seu leito um dos últimos oficiais de sua casa.” Burton detalha este nebuloso oficial: “um negro cozinheiro, rançoso de graxa de cozinha e de fuligem”. Ambos, conclui Borges, deformam, de maneira diferente, uma vez que “o original é menos cerimonioso que Galland e menos ensebado que Burton”. Eduardo Dias omite integralmente o amante, inclusive refere-se ao adultério de maneira indireta. Mas vamos, finalmente, ao conto.



O monarca Xarriar, Rei da Pérsia, advertido pelo irmão Xarzenão, simula uma partida venatória e regressando inesperadamente para a casa constata a triste realidade que o aproximava da sorte do irmão: a traição conjugal. Xarriar começou então a executar o que jurara. Explica-se: retornemos um pouco a seqüência narrativa. Xarnezão, Rei da Tartária, havia confidenciado-lhe sua dolorosa experiência. Tivera que matar a Rainha da Tartária e um oficial da guarda real, porque, não obstante o imenso amor que sempre consagrara à esposa - ou talvez por isso mesmo - tornara-se imperioso desagravar a sua honra de homem e de Rei, iniludivelmente ofendida. Xarriar, apesar de estarrecido, louvou a atitude do irmão, de castigar os abomináveis traidores e se posicionou menos clemente afirmando não se contentar em tirar a vida de uma só mulher e do seu cúmplice, mas sacrificaria mais de mil até acalmar a raiva ocasionada por tal afronta.



A cruel vingança do Rei da Pérsia foi sistematizada logo que o irmão despediu-se e regressou à Tartária. Ordenou ao primeiro alvazir que lhe trouxesse a filha de um dos generais do seu exército. Após a noite de núpcias a jovem foi entregue ao mesmo alvazir para ser degolada. E foram muitas as vítimas, pobres e inocentes vítimas, da alma atormentada e despótica do soberano, de tal forma foi que em breve a população da cidade estava abalada pelo coro lancinante dos que choravam os entes queridos. E assim os louvores e bênçãos que o rei granjeara até então, converteram-se em imprecações e ameaças dos vassalos indignados.



O alvazir, este mesmo que fora rebaixado a verdugo oficial, cumpria tais ordens com horror e consternação. Estes sentimentos acentuados, talvez, por ter duas filhas da mesma idade das desgraçadas esposas do Sultão. Chamavam-se elas Xerazade e Dinarzade. A primeira, a primogênita, a heroína em questão, “era uma criatura de ânimo invulgar no seu sexo”, um espírito superior desenvolvido por muita penetração e servido por grande talento. A essas qualidades juntava-se uma prodigiosa memória, graças à qual retinha o que estudava de filosofia, história, medicina, artes, versos dos melhores poetas - além das próprias composições literárias em que superava os mais afamados escritores do seu tempo. Por outro lado, fora dotado pela natureza com rara formosura e excelsa virtude.



Xerazade, é claro, estava também impressionada e compungida pela tragédia nacional a ponto de rogar ao pai que propiciasse o seu encontro com o Sultão. Como forma de por fim à medida bárbara que apavorava a todos, casar-se-ia com ele.



O alvazir desesperou-se, encolerizou-se. Usou de todos os meios para dissuadi-la desse verdadeiro suicídio. No entanto, a obstinação da moça fê-lo afinal conceder-lhe o atroz desejo.



Xerazade arquitetou um plano que incluía a participação de Dinarzade. Quando anoiteceu o alvazir dirigiu-se com a filha ao palácio e introduziu-a na alcova do Sultão. Xarriar, perplexo pela estranha coragem, experimentou ainda um enorme assombro diante da beleza daquele rosto, depois, é claro, que ela levantou o véu tradicional com que as muçulmanas cobrem as faces. Havia indícios de lágrimas naqueles lindos olhos. Indagada o porquê, Xerazade contou-lhe do entranhado afeto que a prendia à irmã Dinarzade e, neste sentido, confessou-lhe o desejo de que esta passasse a noite junto dela ... o último adeus ... a última prova de carinho. Xarriar concedeu deslumbrado tanto pela beleza física como pelo amor fraternal.



Uma hora antes de amanhecer, Dinarzade solicitou que Xerazade lhe contasse um daqueles maravilhosos contos que só ela sabia, lembrando, novamente, que seria a última vez. Xarriar consentiu.



Xerazade calou-se quando viu que já era dia e também porque sabia que o Rei gostava de se levantar cedo para fazer suas orações e presidir o Conselho de Estado. Dinarzade então, conforme combinado, elogiou o conto ao que Xerazade insinuou que o que se seguiria seria ainda mais extraordinário. O soberano decide aguardar o final do conto e assim adia a execução para o próximo amanhecer.



Depois de mil e uma noites, mil e uma vezes é adiada a execução inevitável, Xarriar confessou sua perplexidade tanto com os prodígios dos contos como também com a manobra do encadeamento sem fim que o fizeram adiar o jurado desígnio que seria efetuado a cada manhã após uma só noite de núpcias. Por fim revoga o tétrico propósito, confessando sua admiração pelo denoto com que Xerazade expôs voluntariamente a existência para evitar o sacrifício de outras mulheres.



Qual a conclusão, em largas passadas, que se pode tirar deste conto? Edward W. Said, em seu livro, um ensaio erudito sobre o tema: Orientalismo, o oriente como invenção do ocidente, faz a seguinte consideração:



“Não se deve nunca supor que a estrutura do orientalismo não passa de uma estrutura de mentiras ou de mitos que, caso fosse dita a verdade sobre eles, partiriam com o vento. Eu mesmo acredito que o orientalismo é mais particularmente válido como um sinal do poder europeu-atlântico sobre o Oriente que como um discurso verídico sobre o Oriente (que é o que, em sua forma acadêmica ou erudita, ele afirma ser). Apesar disso, o que temos de respeitar e tentar apreender é a força nua e sólida do discurso orientalista, os seus laços mais íntimos com as instituições sócio-econômicas e políticas capacitantes, e sua temível durabilidade”. (SAID,1996, p.18). O grifo é nosso.



Xerazade seduz não só pela beleza ou pela suposta sensualidade. Encanta principalmente pela força da palavra. E o sentido desta afirmação só a temos com a visão adequada da realidade islâmica, onde floresceu a personagem. Fica claro, pois, o pathos xerazadiano, digamos assim, que escapa, em muito, a visão, do descuidado leitor ocidental.



Referências Bibliográficas



ALCORÃO. Trad. Mansour Challita. Rio de Janeiro: Record s.d. 358p.

As Mil e Uma Noites, Trad. Eduardo Dias. 3.ed. Lisboa: Clássica, 1949, 6 vol. Original árabe.

BORGES, J.L. Os tradutores das 1001 noites. In: ___ História da eternidade. 3.ed. São Paulo: Globo, 1993. p.75-97.

HADDAD, J.A. O que é islamismo. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. 98p. (Primeiros Passos, 41).

HADDAD, J.A. Introdução ao conto árabe. In: HADDAD J.A.(org.) Maravilhas do conto árabe. 2.ed. São Paulo: Cultrix, 1964. p.9-30.

SAID, E.W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 370p.



Dante Gatto

Professor da UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso)

gattod@terra.com.br

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