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Contos-->As sereias malévolas do leste -- 04/01/2004 - 07:38 (Evandro Carvalho da Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Os mares do leste representavam o que de mais temível existia naqueles dramáticos anos da concepção do mundo moderno, não havia homens com coragem o suficiente que os tentassem desbravar. Por muitos anos dezenas de embarcações das mais diversas origens tentaram conquistar a inverossímil fronteira oriental, mas nunca se teve notícia de todas elas; desapareceram para sempre nos abismos ameaçadores daquele lugar maldito e inóspito. Diziam os velhos anciões que nos mares negros do leste havia um arquipélago habitado pelas mais lindas, formosas e tentadoras sereias; criaturas que arrastavam os marujos para a morte de maneira que alimentassem a fome insaciável dos descomunais dragões que emergiam sorrateiramente das recônditas e absolutas abissais daqueles oceanos. “As tentadoras mulheres do arquipélago do leste são a encarnação do mal. Seus contornos divinos e esculturais fazem destas sereias malévolas o cerne do medo. Nem as hordas de Satanás ou a legião dos mais bravos e divinos anjos seriam capazes de resistir às tentações destas sereias; elas têm a soberba dos seres invencíveis. Pobres são os homens, iludidos pela nobreza e coragem, que partem na desventura de conquistar os mares do leste, serão para sempre esquecidos e arrastados para o infortúnio de suas virtudes”, era o que sempre dizia o homem centenário do vilarejo, que por inúmeras vezes recusou participar das aventuras.

Francis Drake preparou sua embarcação com o cuidado que era necessário. Escolheu a dedo os homens que iriam com o ele para o arquipélago das sereias, eram 20 em seu total. Homens de bravura inquestionável, participaram todos eles de campanhas vitoriosas pelos mais diversos mares; venceram batalhas que já eram consideradas perdidas, mataram feras do mar com a mesma facilidade que matavam escorpiões durante as rinhas das tabernas que freqüentavam. Mas um deles não seria mais um na carnificina que seria submetida à tripulação de Drake semanas depois da partida da nau. Chamava-se Mayernik e era de origem magiar. Cigano de hábitos transgressores, roubava como poucos, enganava de modo ímpar e tripudiava de maneiras mais sórdidas e intragáveis. Mayernik tinha dentes de ouro, tatuagens de demônios, cabelos negros e longos e fazia questão de ostentar e manter a barba cheia. Bebia rum como poucos, era exímio na queda de braço, apostava o fruto dos furtos na rinha do vilarejo e divertia-se com as meretrizes em orgias da mais pura imundice. Enfim, era uma tragédia como ser humano e ainda por cima, ateu. Sua única virtude talvez fosse o seu jeito ensimesmado, taciturno, centrado, calado e introspecto. Não incomodava ninguém, deste que não fosse incomodado. Sempre estava só, pensando e olhando para o vazio dos horizontes marítimos.

As meretrizes de Mayernik choraram muito ao ver a nau partir no cais do porto. Sabiam no íntimo de seus corações que o cigano não mais voltaria e que este estaria entregue ao sortilégio das tentações das sereias do leste. “Lá vai mais um a caminho da morte”, dizia o homem centenário com o pesar peculiar que o pesar dos anos lhe proporcionava ao ver a embarcação partir. Muita gente gostou do embarque, pois sabiam que no mínimo estariam livres daqueles corsários que na verdade eram gente da pior espécie. “De tempos em tempos essas sereias fazem a ‘limpeza’ para nós. É mais uma leva de vagabundos que os mares do leste engolirão com muito gosto!”, diziam as cândidas religiosas que prontamente estavam no cais para certificarem-se da ida dos piratas. Depois da partida passaram-se várias semanas com o mais absoluto silêncio. Os habitantes já sabiam em seu íntimo que a nau de Drake já não mais existia e entregaram-se a resignação, pelo menos aqueles que acreditaram, mesmo que só um pouquinho, no sucesso da jornada do pirata francês. Tudo já indicava que a expedição tivera o mesmo destino de todas as outras, mas numa manhã de muita chuva, depois de cinco semanas, algo fantástico haveria de acontecer, algo que mudaria para todo o sempre a vida de todos os habitantes do vilarejo.

A viagem dos piratas duraria três semanas, segundo os cálculos de Drake. Apesar dos desafios de vencer as sereias e dragões, os marujos estavam eram mesmo interessados nos dobrões da arca dourada, que segundo a lenda, ficava na última ilha do arquipélago do leste. A primeira semana no mar foi de pura festa, bebiam rum e cantavam aos berros até caírem no mais profundo sono. Mas aos poucos foram ficando preocupados e ao mesmo tempo curiosos. Na segunda semana já não mais bebiam e nem dormiam, ficavam horas cochichando uns com os outros, uns até rezavam. Eram atitudes que denotavam o que haveria de acontecer. Parece que já sabiam de sua sorte. A semana que antecedeu a chegada dos marujos ao arquipélago foi a mais dramática. Não mais amanhecia, as noites – sem estrelas – eram calmas e silenciosas, o mar – negro e pavoroso – causava calafrios em todos. Até Francis Drake, famoso por sua bravura, pensou em voltar. Mas seu orgulho falou mais alto e seguiu de encontro com as abissais repletas de dragões. Muitos marujos se enforcaram antes mesmo de chegarem ao arquipélago, vítimas do medo que as embarcações vazias e assombrosas lhe provocaram. Eram dezenas, moribundas e putrefatas, de várias épocas e origens. Estavam a deriva e boiavam literalmente mortas numa espécie de cemitério marítimo.

Apesar da escuridão, os marujos logo se deram conta das virginais sereias que começaram a aparecer nas praias desertas das várias ilhotas do arquipélago. Estavam ainda muito longe, não passavam de pontos alvos na penumbra reinante, mas se fizeram visíveis em virtude de suas virtuosas e sinuosas silhuetas. Mulheres de beleza incomparável, eram ruivas e de pele branca como a neve. Com os braços, e esplendorosamente nuas, gesticulavam chamando os piratas. O medo, o terror e as incertezas da tripulação de Drake não tardaram em se tornarem o mais puro encanto e desejo. Apesar dos gritos desesperados do capitão francês – que tentava dissuadir a tripulação – os marujos se lançaram ao mar, um a um, no afã de abraçar e possuir as sereias na maior brevidade possível. Drake, aos poucos, foi cedendo às formosuras que o chamavam com um canto magnífico; combalido e derrotado pela sua masculinidade, lançou-se ao mar depois de muito relutar. As sereias chamaram os marujos, as sereias encantaram os marujos, as sereias entregaram as cabeças de todos eles para saciar a fome dos descomunais dragões. Quase chegando na baía, felizes e cansados, depois de muitas braçadas, estavam muito próximos dos delírios de seus objetivos. Quase. Os marujos foram presas fáceis para os dragões. Os monstros surgiram de maneira espetacular, lançando-se do mar ao ar com a força titânica das grandes feras. Eram o dobro do tamanho da nau do corsário francês. Engoliram, mutilaram e despedaçaram todos os marujos, inclusive Francis Drake, em questão de minutos. O mar ficou vermelho de sangue e repleto de pedaços de carne humana; os dragões, saciados, submergiram às abissais e as sereias deitaram nas areias da praia para sentir o aroma da morte como uma luxúria necrófaga e ímpar.

Mayernick foi o único que resistiu aos encantos das sereias. Na verdade não fez esforço qualquer. Calejado das orgias com as meretrizes, pouco deu importância para as fabulosas curvas daquelas beldades nórdicas. Na popa, com o barco a deriva e em direção à praia, despiu-se de sua alma errante e vestiu-se prontamente com os paramentos, para ele paradoxais e intragáveis, da virtude e da moral. As sereias não tardaram em reparar no homem tímido e original e, uma a uma, lançaram-se ao mar em direção à nau, levadas pelo encanto e desejo. O cigano húngaro amou todas elas, as possuiu com a virilidade de seus 26 anos. Saciou sua impressionante libido com mais de 30 sereias. Dormiu como um monarca abraçado por servas fieis e saciadas. Quando despertaram, as sereias levaram Mayernick para última ilha do arquipélago e de lá, o húngaro, saqueou todos os dobrões da arca dourada. Em sua mente rondavam os espectros dos marujos que lhe beliscavam a consciência afins de dissuadi-lo de suas ambiciosas intenções. Não teve jeito. Ao ver seu rosto iluminado pelo voluptuoso brilho bronzeado dos dobrões, desabrochou num sorriso sarcástico e irônico. Por um breve instante o matreiro magiar pensou estar nos pedestais de seu ápice. Viu de muito longe, nas efemérides de suas lembranças, o convívio com a marginalia e as sucessivas derrotas de uma vida totalmente equivocada. Abraçou uma das sereias como que pedindo colo e esboçou uma crença em algum ser supremo que jamais houvera pensando em crer. Queria agradecer, sem saber como e a quem.


Diz a lenda que o último cigano húngaro chegou ao vilarejo numa manhã de muita chuva, mesmo assim fez questão de estar despido e encima de um monte de dobrões. As sereias, a mando de Mayernick, ficaram expostas na popa para que todos pudessem vê-las e os dragões, certamente uma centena, escoltaram docilmente a nau até o cais do porto do vilarejo. É bem da verdade que esta história aconteceu a mais de 300 anos, mas ninguém duvida que Mayernick, o cigano húngaro, esteja vivo até os dias atuais. Segundo relatos, ele é sempre visto perambulando pelas ruas da cidade, usando a mesma camisa verde e a mesma calça preta. Também se diz que o magiar trocou o rum por uísque barato e que em sua vida não cabe mulher nenhuma. Ser solitário e noctívago, Mayernick deve gastar seus dobrões até o último dia de sua vida. Aliás, sua vida – incondicionalmente – está ligada a estes dobrões. Cada minuto descontado de sua contabilidade fantástica deve-se ao fato dos gastos empreendidos com os seus dobrões. Sua próxima empresa é atravessar o tempo atrás das arcas de Noé e Gilgamesh e lota-las com as beldades da terra de Asgard. Assim – segundo ele próprio – estará findando o ciclo de sua vida. É ler para crer.



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