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Contos-->A revolução silenciosa de Joãoo -- 05/01/2004 - 22:22 (Evandro Carvalho da Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A revolução silenciosa de João
João olhou para a foto dos tempos do curso de antropologia e amargou a restante de cachaça que para seu azar insistia em ficar no fundo do copo. Ficou estático. O não sei que de lembranças dançavam de maneira melancólica em sua frente, o chamando para as entranhas de sua decadente existência, chamando-o para o outro lado, o claro, da lua. Lágrimas escorregaram suavemente pela face carcomida pelo tempo e a cachaça escorreu como uma lâmina pela garganta e despencou como um soco no estômago; despediu-se de Maria com um olhar paciente e dirigiu-se para porta afins de iniciar sua particular insurreição. Disse consigo mesmo: “Vou ao Shopping Center”.
João resiste aos homens da segurança
Atravessou as ruas de sua periferia com passos trêmulos e claudicantes, atravessou um sem números de pântanos de dúvidas até finalmente chegar à avenida Principal, até finalmente chegar ao inicio de seus propósitos; sentar à porta do Shopping Center. Era madrugada quando se sentou no degrauzinho da entrada. Dali sairia cinco anos depois quando finalmente estaria deflagrada a revolução de João.
Os homens da segurança que faziam a ronda de madrugada foram os primeiros a perguntar o que João fazia ali. Não se incomodaram muito, pois estavam certos que João dali sairia nos próximos minutos. Ledo engano. O sol já afastava as sombras com sua inesgotável vontade de emergir e João viu o primeiro de muitos limiares de um dia sentado à porta do Shopping Center. Os homens da segurança mais uma vez vieram interpelar João; estavam mais curiosos do que contrariados. “O que o Sr. faz aqui? Qual é seu nome?”, perguntaram a João. O operário da fábrica de motores lhes respondeu com uma das mãos coçando pacientemente a barba: “Meu nome é João e quero que esta construção imunda seja demolida e que o parque de Rio dos Véus seja reconstruído da mesma maneira que o era antes de ser destruído, meus dois filhos sentem a falta dele e só sairei daqui quando as máquinas de demolição reduzirem a pó esta imundície que propaga a diferença, espalha o ódio, semeia a discórdia...” Os homens da segurança riram da cara de João e por puro deboche o deixaram lá e foram tomar café da manhã.
O Shopping Center abria suas portas às 10h e a presença de João perturbara de vez os homens da segurança. Estes se aproximaram decididos do operário e com expressões de pouquíssimos amigos foram logo falando: “Sr. João, gostaríamos que o Sr. se retirasse da porta deste estabelecimento, não queremos o forçar a isso.” João da Silva ficou estático e por alguns segundos ficou olhando para os rostos daqueles homens, depois falou de forma serena: “Os senhores não podem usar a força, pois nossa essência não permite o expediente da violência; não saio daqui enquanto as máquinas não chegarem”. Os homens da segurança olharam encabulados uns para os outros e não conseguiram levantar um dedo contra João.
As crianças procuram o operário
Passou-se uma semana e João resistia como uma rocha sentado no degrauzinho da entrada do centro de compras. As pessoas que freqüentavam o local ignoraram em princípio a presença do operário, mas depois começaram a achar curiosa a figura esquálida sentada bem no meio da entrada. João bebia água quando sentia sede, mas não comia nada quando sentia fome, pedia vez ou outra para que as pessoas lhe dessem água, estas o atendiam prestativas, pois já o encaravam como um infeliz ou um desvalido. Suas roupas ainda estavam limpas embora já cheirassem mal. Na terça tomou uma chuva titânica e ardeu de febre na quarta e na quinta, mas não arredou o pé do lugar. Crianças gostavam de conversar com ele. João passava horas contando as incríveis histórias de Rio dos Véus, dos tempos em que estudava antropologia e da jornada de trabalho com quatro horas diárias. Também falava sobre Maria e de seus dois filhos e da felicidade e ternura que os rodeavam. “Quando vocês crescerem, não deixem de serem crianças”, era a frase que mais falava aos pequenos.
“O Sr. não pode ficar aqui. Peço que se retire ou chamarei a polícia”. O diretor do centro de compras foi incisivo, mas João deu-lhe as costas. Dez minutos depois, um carro da polícia municipal, recheado com quatro homens truculentos, desceram armados até os dentes e dispostos a retirar João não importasse de que maneira. O diretor falou em alto e bom som: “Srs. Policiais, este vagabundo está a um mês importunando meus clientes sentado neste degrau. Por várias vezes tentamos o tirar de maneira cortês, mas este se recusou. Tirem este farrapo humano do portal de meu estabelecimento agora!” Os policiais um a um foram retirando-se sem saber como e por que. Jogaram as armas ao chão e antes de irem embora ouviram as palavras do operário: “Somente as bestas devem utilizar a força bruta. Homens de bom coração, vão para casa e para os seios de suas famílias. Sairei daqui quando as máquinas chegarem.”
Maria ouve o marido pela tevê
Um ano depois João era bem mais que um farrapo humano; cadavérico, fedorento, barbas e cabelos enormes e de uma determinação nunca jamais vista. Tinha virado uma espécie de atração. Jornais redigiam matérias sobre ele, grupos de estudantes vinham para conversar e inúmeras personalidades tentaram, em vão, convence-lo e sair dali. Certa vez foi entrevistado pela televisão local e falou sobre suas pretensões: “O centro de compras deve ruir, os homens não merecem tal antro, sabemos da permissividade deste lugar e do mal que este provoca naqueles que tem bom coração e que são sustentados única e exclusivamente pelo âmago de sua vida. O centro de compras remonta o ser estético/externo. A busca do eu puro deve demolir tais locais de putrefação sociológica. Maria e meus filhos, preparem-se. Pois vamos passear no parque tão logo a monstruosidade do centro de compras vire pó”.
Os anos foram passando e João foi ficando. Já estava quase convencido de que fora derrotado. Ninguém se interessou por sua causa e resignou-se. Ficaria na porta do centro de compras até o fim de suas forças. Dali só sairia morto. Depressão profunda sofreu João, chorava copiosamente lembrando-se de Maria e dos filhos. Despencava em tristeza ao saber que da outra forma, a hipócrita, se vivia melhor e que o fingimento era o sustentáculo daquela estrutura de relações que matavam silenciosamente a estirpe humana. Olhou para os céus e orou: “Pai, por que me abandonastes? Sua ausência me faz mal. Este cordeiro carece de orientação, ele está morrendo por simplesmente querer ser ele mesmo, querer um parque no lugar do centro de compras. Pai...”
Os filhos de João ouvem sobre as colunas gigantes
Quatro anos se passaram e João estava no fim. Sentou-se ao seu lado um moço chamado José e este lhe disse as palavras que queria ouvir: “Vou partilhar de seu ideário, ficarei com o Sr. até as máquinas chegarem”. Daí em diante tudo mudou. Depois veio Joaquim, depois veio Helena, depois veio Carla, mais tarde surgiu Humberto, Regina, Amadeu, Ronaldo, Felipe, Silvestre, Vanessa, você que agora lê e um sem número de pessoas que se aglomeraram apaixonadamente na fachada do centro de compras. Uma multidão em silêncio (boa parte da população de Rio dos Véus) aguardava a chegada das máquinas. Aquele povo provocara um cisma em Rio dos Véus; fábricas fecharam, comércios faliram, famílias inteiras foram embora. O governador da província não teve outra alternativa.
Cinco anos, dois meses, sete dias e três horas depois que João sentara-se no degrauzinho da entrada do centro de compras, as máquinas chegaram para derrubar o antro. Então João se levantou e ouviu maravilhado o estrondo que as paredes faziam ao estatelarem-se no chão. O povo ia ao delírio; pulavam e dançavam, se abraçavam mutuamente. João chorava como uma criança e não acreditava que de suas entranhas uma força emergira e derrubara uma construção inteira como se fosse um castelo de baralhos. Naquela noite caminhou de volta para casa. Tomou banho, fez a barba e cortou os cabelos, vestiu roupas novas e alimentou-se fartamente. Três meses depois levou Maria e os filhos para passear no parque que naquele final de semana haveria de ser inaugurado. Para os filhos, enquanto alimentava um mico com bananas, disse num dos passeios do parque: “Suportem as colunas que tentam nos espremer. Quando as trevas fizerem-se totais, haverá de aparecer à luz que dissipará a escuridão. Sempre”.



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