Regresso breve cerca de sessenta anos atrás e eis-me de memória afinada para remontar num ápice o percurso na distante viagem da minha vida. Tenho a sensação que gozo e sofro tudo muito melhor do que então em activo exercício real.
Sinto-me nítido a conduzir o meu descapotável encarnado a pedais, meu porque o meu padrinho César mo ofereceu no dia 4 de Junho de 1943. Estou agora mesmo a ouvi-lo em diálogo com minha mãe: "Quatro anos... Quatro rodas..." = "Ele vai matar-se, compadre...". E riam ambos enquanto eu ensaiva as primeiras voltas na àmpla cozinha forrada a mosaico preto e branco.
Dali, quando os rodeios e volteios me extenuavam o corpo todo, encostava o nariz à vidraça da janela e aguardava que algum automóvel a sério passasse, de hora a hora se tivesse sorte nos olhos.Que estranho, os Toninhos que iam lá dentro não mexiam as pernas!...
Que fascínio, que deliciosa loucura quando ia à rua contemplar ao vivo o movimento, deslizando os dedos nos DKW, nos Citroen arrastadeiras, nos Ânglias... "Ena, Raúl, vai ali um Hudson!" = "Torre, Torre, olha, um Dodge!".
A Dona Corina, dama cinquentona toda rendada, tinha um Rolls Royce. Parecia um galinheiro a correr, com o senhor Serafim muito erecto a tomar a roda, vestido à cavaleiro da tropa.
Volto de novo aqui, estou aqui. Quiçá dez mil volumes não chegassem para exprimir o pormenor das minhas recordações. Absorvi tudo, tenho tudo aqui à flor da pele, indizível em tão curto espaço de tempo, a explodir, o bom e o mau, amálgama em avaliação única...
Aqui, concebo que mais sessenta anos de humanidade darão para considerar decididamente a metamorfósica fusão do bem e do mal, o que permitirá que tudo esteja bem e em aliada vivência, sem a confrontação permanente dos polos da existência, sem repentinos "geberismos acciolíticos".
E continuará a chover e a relàmpejar com a terra a deixar e a entrar no sol metade por metade. Então os humanos fruirão a harmonia do pleno beMal... Quem sabe?!
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