Usina de Letras
Usina de Letras
86 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62237 )

Cartas ( 21334)

Contos (13264)

Cordel (10450)

Cronicas (22537)

Discursos (3239)

Ensaios - (10367)

Erótico (13570)

Frases (50635)

Humor (20031)

Infantil (5434)

Infanto Juvenil (4769)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140808)

Redação (3307)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6192)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Uma história de pássaros -- 08/01/2004 - 19:15 (Barbara Amar) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Quando criança tio Nélio presenteou-me com um casal de canários: Cabecinha de Ouro e Espanholita. Nessa época morávamos no Grajaú, bairro residencial, cortado por canais e ruas arborizadas.
Gostava muito da nossa casa, de dois pavimentos, toda pintada em rosa, cor favorita de minha mãe. Na frente havia uma espaçosa varanda mobiliada com cadeiras e sofá de palhinha onde os adultos se sentavam, à noite, para conversar. Em geral, ficava por ali ouvindo-os agarrada no cotovelo da minha tia. Era meu hábito alisá-lo; outro era o de afagar a região macia situada entre o indicador e o polegar. Mamãe não tinha muita paciência pra essas coisas, mas tia Cecília, mulher do tio Nélio, talvez por não ter filhos, achava engraçado e lá ficava eu, uma garotinha de uns cinco a seis anos, a acariciá-la até cochilar chupando a língua. Outras vezes, isolava-me dos adultos e preferia me inebriar com o perfume do jasmineiro.
O terreno em que fora construída nossa casa era extenso. Circundado na frente por muro de ficus, abrigava um pequeno jardim, bem na entrada, ornamentado por rosas, dálias e violetas, onde sobressaía o capim espesso, verde escuro, tapete encorpado a proteger as flores. Na face lateral da casa tinha um espaço enorme para brincar; lá meu pai pendurou uma rede. Nas noites de verão, costumávamos ficar os três (eu, papai e mamãe) a nos balançar brincando de dar nome às estrelas. Nos fundos havia o quintal - espaçosa área quadrada dotada de tanque e dependências de empregada. Mais adiante, um morro íngreme todo plantado. Papai costumava subi-lo para colher araçá e goiaba e, eventualmente, trazia nas costas cachos de banana.
O casal de canários ficou alojado numa gaiola, próxima ao tanque, debaixo de uma cobertura de tijolos. Penso que eles se amavam muito (por que não?), pois viviam cantando sempre juntinhos no poleiro. Como a felicidade jamais é completa (naquela época eu desconhecia isso) mamãe, depois de colocar água e alpiste, esqueceu de fechar a porta e a sapeca da Espanholita escafedeu-se. Até hoje ignoro por que Cabecinha de Ouro não a acompanhou. Nós o encontramos sozinho, entristecido, com a porta da gaiola aberta. Daquele dia em diante o canário parou de cantar. Mal se alimentava, fenecendo a olhos vistos. Mamãe não se perdoava pelo esquecimento.
- Não sei como aconteceu. Tinha pena de vê-los presos, mas jamais faria uma coisa dessas.
Doía ver o passarinho sofrendo sem poder ajudar. Após uma semana a situação ficou insustentável. Meus pais conversaram e decidiram soltar o pobrezinho. Incrível. A porta ficou aberta três dias e nada do Cabecinha de Ouro se animar. Continuava na gaiola, mudo, como que pranteando a companheira, senão aguardando sua volta. Foi aí que papai resolveu soltá-lo no morro. Lá chegando, abriu a portinhola e insistiu, em voz alta, animando o passarinho a voar. Depois de certo tempo, Cabecinha de Ouro aproximou-se da saída, tomando pé da situação e, alvíssaras, voou. Vôo baixo, de pássaro cativo, pousando no araçazeiro.
- Vai, seu bobo, voa. Vai procurar sua mulher, dizia papai com seu tom de voz brincalhão.
Em baixo, mamãe, nervosa, torcia as mãos. Eu gritava, pedindo ao bichinho para ir embora. Afinal, ele tomou coragem. Planou alto; bonito. Nós aplaudimos, contentes. Vi quando mamãe disfarçou as lágrimas enxugando o rosto.
- Foi minha culpa, lamentava-se ela.
Abracei-a para consolá-la, eu também quase chorando. Mais tarde, perguntei ao meu pai se o casal de canários voltaria a se encontrar. Olhou-me com ternura.
- Não sei, minha filha. Eles vão procurar os outros canários, seus amigos.
- O senhor não acha essa Espanholita uma ingrata por ter abandonado o marido?
Ele sorriu com aquele seu jeito amigável e fez um carinho no meu queixo.

Jamais me contou que Cabecinha de Ouro havia sido morto pelo gato da vizinha, algumas horas após sua partida. Fiquei sabendo, já adolescente, quando Tio Nélio deixou escapar o segredo.
Naquela noite chorei muito. Foi minha primeira perda. E mais uma vez amaldiçoei a volúvel Espanholita.

20/04/03
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui