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Contos-->Transfiguração -- 21/01/2004 - 22:58 (Barbara Amar) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Caminhamos na areia refrescante do deserto. Caminhamos saídos do ontem e avançamos a lugar nenhum. Tudo é areia, montes e montanhas de areia.
Nossa aparência, completamente mudada. Magia. Meu cabelo castanho agora negro resvala na cintura e a pele, de tão alva, parece bloquear a luz do sol. Contorno meu rosto com os dedos, aliso as sobrancelhas, tento adivinhar como sou:
- Qual a cor dos meus olhos?
- Negros, iguais ao cabelo.
- Sou bonita?
- Exótica.
- Então não sou bonita.
- Claro que é. Sua roupa (hesita). Sua roupa é estranha, lembra as estátuas gregas. Sensual, completa, a voz traindo o desejo.

Meu corpo, meu novo corpo, está coberto por túnica transparente, amarelo-ouro, sem nada por baixo. Morro de curiosidade para conhecer esta nova mulher. Fábio também não é o mesmo; rejuvenesceu, seu cabelo grisalho alourou. Veste calça “jeans” desbotada e camiseta preta, sem mangas, como os rapazes “sarados” das academias de ginástica. Eu o prefiro desse jeito, com a musculatura desenvolvida e bronzeada. Ombreamos em altura e aspecto físico, dois belos espécimes da raça humana gerados sabe-se lá por quem e porquê. O mais incrível é preservarmos a memória dos acontecimentos.
- Cadê Míriam?
- Morreu, sinto muito.
Não diz nada e andamos algum tempo em silêncio.
- Veja querido, um farol esbranquiçado brotando no meio da areia.
- Onde?
Aponto com o dedo um local afastado, surpreendo-me ao ver que desapareceu.
- Miragem.
Há algo frio e cortante no seu tom de voz, uma chicotada a me deixar aflita. Que culpa tenho se ela morreu? E de onde me vem esta certeza? O caso é que aqui estamos nós dois; ótimo para mim.
O sol ao se refletir na areia é um vasto espelho dourado. Frio, porém. Devemos estar em outro planeta.
Em um devaneio danço descalça sobre ouro em pó. Brisa amena beija-me o rosto, ondula o tecido translúcido e exalta minha nudez. Os dedos de Fábio mergulham, peixinhos abissais, na gruta úmida e quente de paredes nacaradas. Abro-me toda, deixo que me use. Ah se pudesse retê-lo dentro de mim.

- E água? Morreremos de sede neste deserto.
Meu amante traz-me de volta ao mundo real. Irreal.
- Não estou com sede. Acho tudo tão bonito e agradável.
Olha-me como se eu fosse louca e balança a cabeça censurando minha inconseqüência. No íntimo reprimo uma risada; apesar do físico jovem reage como o homem idoso que é.
Mais tarde, noto um ponto brilhando ao longe. Outra miragem? Melhor calar-me e aguardar sua reação. Pelo canto dos olhos o vigio, tenho certeza que viu mas teme falar.
- Você está vendo, não está?
- Sim, Áurea. Um ponto em movimento. É bom nos apressarmos.
- Por quê?
De novo, fulmina-me irritado.
Na dimensão em que nos encontramos o tempo demora a passar, portanto, só no dia seguinte surge a nossa frente uma jovem e linda mulher. Temos alguma semelhança, a princípio difícil de distinguir pois em tudo ela diverge de mim. Pequena e frágil, exala meiguice e inocência. O cabelo é louro, embora longo e anelado. Já sei; a coincidência está no traje diáfano diferindo apenas na cor, branca. Fábio a interroga. Confusa, não sabe explicar sua presença.
- Quando vi estava correndo, impelida pela necessidade de procurar alguém.
Sinto raiva da sua beleza mal dissimulada pela veste. Os pelinhos claros cobrindo o sexo dão-lhe um aspecto virginal. Tenta ocultá-los, desajeitada. Seu nome é Layla e tem olhos de boneca, arredondados, mistura indefinida de azul e verde.
Seguimos viagem os três. Fábio, no meio, separando-nos, claramente interessado na desconhecida. Andamos sem rumo, à procura de água e alimentos. O ciúme e o despeito circulam em minhas veias como a peçonha inoculada pelo escorpião. Estou sobrando. Sei que sou demais.
Passamos a primeira noite neste lugar vazio de frutas, plantas e água. Água. Só toleramos sua falta graças à temperatura amena. É um deserto incomum, sem frio noturno nem calor escaldante. Sem água.
Examino o céu, mar de estrelas; parece-me idêntico ao céu de ontem, de todos os dias. Procuro meu homem, quero seu corpo, seu cheiro de macho. Dorme estendido a meu lado. Ao me acercar para tocá-lo vejo duas cabeças louras, bem próximas. Layla repousa aconchegada em seu braço bronzeado e musculoso. Ele a protege. A fúria e o recalque avolumam-se em meu útero e esmagam o cerne daquela que um dia fui eu. Nada sou, abandonada. No negror da noite e da alma acalento único desejo. Matá-la.

No passado perdido em algum ponto deste pesadelo, também éramos três. Fábio, a esposa e eu - a outra, a jovem assistente do afamado professor universitário. Uma coisa é certa: sempre me considerou sua verdadeira mulher. Míriam tinha conhecimento do nosso romance, não perdia a linha. Tratava-me com fria polidez e aceitava que os acompanhasse às reuniões sociais. E assim estávamos nós, naquela festa de fim de ano na faculdade, quando congelamos no tempo. Ainda ouvi o grito dela; mal consegui agarrar-me a Fábio, com quem dançava, antes de sermos transportados atravessando túneis de vento até esta mansidão arenosa.

É dia quando acordo. Fábio sustenta Layla nos braços. O jeito como se olham, nem percebem que os devoro com olhos de serpente. Um punhal, um punhal nas mãos para cegá-los. Ao levantar a cabeça ele me vê:
- Ainda bem que acordou. Vou procurar água. Você cuida de Layla, praticamente ordena. Está muito fraca, coitada.
Coitada? E eu, não existo?
Afasta-se em passadas rápidas, enquanto ela geme baixinho. Abaixo-me fingindo ajudá-la. Está deitada de lado e treme, seja pela febre que a consome ou por ter adivinhado minha intenção homicida. Faço com que se vire e, mantendo-a presa pelos ombros, cubro-a com meu corpo qual predador devorando a vítima para lhe extrair poder. É essencial incorporar-me a esta frágil criatura, única maneira possível de reconquistar meu homem.
Layla debate-se enquanto beijo seus lábios ressequidos embebendo-os com minha saliva. Debilitada, acaba por se entregar ao ímpeto da amazona que a domina. Uma lágrima umedece seus lábios, gema preciosa, não ouso enxugar. Fita-me como a pedir clemência.
- Não deixe doer, sussurra.
Beijo-a de leve na boca, afago seu rosto, o pescoço e aí minhas mãos se detêm. Assim a estrangulo, sem coragem de encarar seus olhos de boneca.

Quando Fábio retornou o sol ainda brilhava. Sorriu pela primeira e última vez:
- Achei um oásis! Venham antes que anoiteça.
Estava contente como um menino. Apesar de ter preparado várias histórias para justificar a ausência de Layla, sua alegria me desnorteou. Me condenei. Avançou contra mim, os olhos injetados de ódio:
- O que você fez com ela, Áurea?
Esbofeteou-me seguidas vezes, sem esperar resposta. Gritei, o sangue escorrendo pela narina.
- Pára, pelo amor de Deus.
- Deus, que Deus? rugia ele, segurando-me pelo cabelo e tornando a me espancar.
Bateu-me muito, até machucar as mãos. Só aí desabou na areia, chorando inconsolável. Tive vontade de abraçá-lo, preferi encolher-me a um canto. Doía-me o corpo. A alma, ainda existia?
- Onde você a enterrou? Sua voz era puro metal.
Estendi o braço ao acaso.
- Covarde, estertorou.
- Como podia amá-la tanto se nem a conhecia? berrei, revoltada.
Abanou a cabeça lentamente.
- Então, não percebeu?
Jamais esquecerei a dor incrustada em sua fisionomia.
- Você a matou duas vezes. A primeira, impedindo-me de salvá-la na festa e agora, depois dela ter vencido todos obstáculos e nos encontrar neste planeta diabólico.
Unhas afiadas, estiletes, esgarçam as rendas que me mantém obscurecida a memória. Sentada à mesa, a pálida mulher de meia idade observa seu marido enlaçar a cintura da jovem amante. Lembro-me do seu olhar mortiço. Layla Layla, você não passava de uma boneca.
Movi os lábios, a garganta ressecada, espremendo a voz lá do fundo da laringe. Fábio ignorou-me fixando as dunas.

Sou incapaz de precisar há quanto tempo permanecemos aqui. Décadas, creio. Nossa aparência mantém-se imutável. Estamos condenados a viver juntos; eu amando-o ele me odiando. Por vezes, me olha de forma assustadora. Nessas ocasiões me possui, torna a ser meu amante. Cessado o prazer, parece se envergonhar e volta-me as costas. Ou senão me apunhala com olhar rancoroso. Despreza-me, eu sei.
Peguei-o ontem, ou terá sido no ano passado?, como já disse o tempo demora a passar e a gente acaba por perder a cronologia dos fatos; pois bem, peguei-o inspecionando meu rosto (pensava que eu dormia), a expressão deslumbrada. Sei o que viu. Layla está viva, impregnada em mim, alimentando-se do meu corpo. Sinto-a faminta absorver minha força como esponja colossal. Dentro de pouco ou muito tempo, impossível calcular, Layla será eu.

Rio, 18/01/04
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