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Contos-->O HOMEM QUE VIROU TCHAIKOVSKY -- 25/01/2004 - 21:39 (adelay bonolo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O HOMEM QUE VIROU TCHAIKOVSKY (1)


Frederico voltou para casa excitado naquela tarde. Mal cumprimentou a esposa e os filhos que o esperavam para o almoço e foi abrir sofregamente o pacote que trouxera sob os braços. Era um aparelho de som, um “sonzaço”, como acabava de apelidar o artefato. Trancou-se na saleta de música, onde também ficava a televisão principal da casa, não dando ouvidos aos insistentes chamados de sua mulher.
—Fred, tá servido o almoço, não demore!
Mas ele não dava bola para os apelos da dona Zenaide, nem dos filhos famintos.
— Papai, Fred! Papai, Fred!
Cansados, findaram almoçando sozinhos.

***
Escrevente de cartório, Frederico conseguiu amealhar razoáveis economias, à custa de muito trabalho e horas-extras sem conta. Não raro emendava semanas sem descanso, o que lhe rendeu, ao fim de alguns anos, uma excelente casa localizada num dos melhores bairros da cidade e uma terrível úlcera no estômago.
O curso de Direito e os tempos de faculdade deixaram-lhe o gosto refinado pela música erudita. Naqueles tempos, nunca perdia temporada lírica, concertos sinfônicos, nem mesmo pequena récita amadorística. Coisa que ninguém fazia, cantarolava e assoviava constantemente trechos mais conhecidos das óperas italianas, sua paixão. Ainda relembra com saudade dos bons espetáculos então encenados. “Hoje já não se fazem como aqueles!”, suspirava. É verdade! A cultura musical de que se trata, antes reservada aos teatros e casas de concerto, migrou para a eletrônica. Poucos teatros se animam a produzir uma ópera hoje em dia. O pequeno público não compensaria o grande custo de produção.

Mas não só a ópera entusiasmava Frederico. A música erudita em geral, de Bach a Villa-Lobos, o empolgava, levando-o às lágrimas. Quantas vezes sua mulher pilhou-o chorando ao som de alguma das sonatas para piano e violino de Beethoven ou de Mozart. A música parecia que o arrebatava, deixando-o fora de si. Boa parte de seu salário gastava com discos, fitas, CDs e aparelhos de som. Possuía coleção completa de todas as gravações de Beethoven, Debussy, Chopin, Tchaikovsky.

Igual ao “de la Mancha”(2), que, de tanto ler livros sobre a Cavalaria, acabou virando um Cavaleiro numa época em que cavaleiros de há muito não existiam mais, ao nosso Frederico a música como que lhe dominava a razão.

Ultimamente vinha sentindo coisas estranhas. Um dia, ouvindo trechos do Lago do Cisne, do compositor russo, se viu de repente num palco de teatro, vestido como bailarino, dançando um pas-de-deux apaixonante... quando, num salto mais arrojado, sentindo-se um legítimo cisne, caiu de mergulho no lago. Um tremor ligeiro, de menos de um segundo, acordou-o, dando-se conta do que lhe acontecera: “Nossa! Que coisa mais estranha!” Outra vez, ao emergir de um desses lapsos de consciência, viu-se ajoelhado, com os braços levantados em direção a montanha imaginária, em atitude de prece profunda, como lhe sugeriam alguns acordes fortes dos metais do primeiro movimento da 6ª Sinfonia, a Patética, do mesmo compositor.

Tais sensações vinham se repetindo amiúde, somente com músicas de Tchaikovsky. Impressionante como e quanto essa música transtornava Frederico! Outros compositores não o transportavam àquelas loucuras.

***
Naquela tarde, além do som, havia trazido para casa um novo CD com a Abertura 1812, de Tchaikovsky. Nessa música, composta para comemorar o aniversário da vitória russa sobre Napoleão, a orquestra narra os lances da batalha com acordes do velho hino nacional russo, alternando-os com os da Marselhesa, numa descrição melódica dos avanços e recuos de cada exército.

Conectadas as peças do som e posto o CD para tocar, Frederico sentou-se no sofá de couro da saleta de música, cuja porta trancara a chave. Logo nos primeiros acordes adveio-lhe aquela sensação estranha. Como que em transe, se viu vestido à moda do compositor; portando uma batuta na mão direita, tentando com a outra afastar a horda de soldados que vinha em sua direção.

—Voilà quelle figure bizarre! — Apontou para ele um soldado francês, dirigindo-se a seu companheiro mais próximo, admirando-se da esquisita criatura que lhe ameaçava cortar o caminho.
— Qui êtes-vous — perguntou-lhe — quem sois?
—Tchaikovsky! Sou o autor da música e do cenário desta batalha em que você é apenas figurante! — Respondeu o compositor, num francês sem sotaque.
—Louco! — Redargüiu o soldado, afastando-se.

E o exército francês avançava, avançava, enquanto o russo ia recuando, destruindo tudo, numa estratégia que a História registra como uma das principais causas da derrota de Napoleão.
Frederico, ou melhor, Tchaikovsky se encontra de repente no meio da batalha. Ruídos ensurdecedores de sabres e espadas se chocando, gritos de dor misturados aos de regozijo, cavalos, poeira e imprecações por toda parte, e pairando sobre tudo aquela música... vibrante, que havia criado. Sua batuta inexplicavelmente se transforma numa espada longa e reluzente. Seus trajes parecidos com os do compositor se confundem com os da farda do exército russo e brandindo a espada, desfere aqui e acolá golpes e mais golpes nos soldados franceses.

É ferido. Um francês lhe enfia sem dó a espada no ventre indefeso. Tudo escurece e ele cai no meio de uma grande poça de lama e sangue. Os exércitos se batem ferozmente e a música chega ao clímax. Ouve, na escuridão de seus olhos, o ribombar de tiros de canhão. O exército russo venceu. Os sinos das igrejas de todas as Rússias ecoam em seus ouvidos. A banda de música e a orquestra, entrecortadas por tiros de canhão, invadem o campo de batalha e estremecem, em altíssimos decibéis, o ambiente da batalha e da casa, com acordes e estrondos ensurdecedores.

***
—Frederico! Papai! — gritaram todos, assustados, arrombando a porta. A música havia terminado.
Frederico estava imóvel, sentado no sofá de couro. Sua mulher se aproxima, cuidadosa, mas apavorada. Apenas o toca e ele tomba de lado, hirto, deixando ver, no local onde estava sentado, uma enorme poça de sangue.

O atestado de óbito para o funeral dizia que a morte dele se dera por causa desconhecida: os médicos não souberam explicar por que o sangue se lhe tinha esvaído totalmente, sem que houvesse a menor perfuração em seu corpo...

Brasília
setembro/2001

(1) Desde que comecei a gostar de música erudita, — e faz tempo! —, sempre ouvi dizer que a pronúncia correta do nome desse célebre compositor seria “tchaicóvisqui”. Todavia, num programa radiofônico da emissora Brasília Super Rádio FM, de Brasília (DF), patrocinado pela Embaixada da Rússia, o locutor, russo verdadeiro, pronunciava “Tchicóvisqui”. Estranhei, mas deve ser assim por lá. Aqui continuará sendo “Tchaicóvisqui”...

2) ”Dom Quixote de la Mancha”, o Cavaleiro da Triste Figura, obra imortal de Cervantes.
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