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Contos-->A LENDA DO BAMBU -- 29/01/2004 - 21:48 (adelay bonolo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A LENDA DO BAMBU (*)


É inegável o surto de desenvolvimento que a migração interna trouxe para o País, notadamente para as grandes áreas do Centro-Oeste e do Norte, graças à fundação da cidade de Brasília e à abertura de estradas ligando-a a todas as capitais dos Estados.

A exemplo do que ocorrera a partir da década de 30 com o norte do Estado do Paraná, famílias inteiras (avôs, pais, netos, bisnetos), atraídas pela facilidade de aquisição de terras, transferiram-se para essas regiões, consideradas novos “eldorados”.

O Sul do País, o chamado “sul maravilha”, em termos de novas fronteiras agrícolas, estava praticamente esgotado. As terras eventualmente disponíveis atingiam preços astronômicos.

Os povos dessa região, em grande parte originários da Europa, trazem dentro de si a força atávica do gosto pela terra. Muitos nunca possuíram palmo de terra; outros, apenas pequenos sítios, com os quais, nos tempos mais antigos, sustentaram a família, criaram e educaram os filhos. Outros, ainda, grandes proprietários, vislumbravam ampliar suas posses, coisa difícil de ser feita por ali.

A possibilidade de aquisição de terra farta, boa e barata, impeliu-os em direção do Estado de Goiás e das terras onde hoje ficam os Estados de Tocantins, Mato Grosso e Rondônia, fundando ali inúmeras cidades, que se transformariam em pólos de desenvolvimento.

Ninguém se atreveria a negar hoje a pujança agrícola de Mato Grosso, de Rondônia e de Goiás, sobretudo na produção de soja, arroz, algodão e milho, além do rebanho bovino, no campo da pecuária.

Tal migração teve a grande vantagem de levar para essas regiões gente cheia de esperança, afeita ao trabalho, empreendedora e de mentalidade aberta a novas idéias. E lá se foram, deixando tudo para trás.

Os recém-chegados contrastavam fundamentalmente com a maioria dos nativos, de índole bonachona, pacata, fiel às tradições e meio arredia a mudanças.

Numa rápida vista d’olhos pela região, o espectador mais atento descobre logo quem é dali e quem nunca foi. O nativo, via de regra, embora proprietário de muita terra, geralmente a melhor do lugar, tem pasto sujo, pouco gado, automóvel nenhum, veste-se mal e mora pior, em casa antiga de chão de terra batida, coberta de telha tipo Eternit. Já o migrante cuida bem das pastagens, enche-as de gado branco (nelore), constrói boa casa sede e currais de alvenaria, com telha colonial ou francesa, e anda de camioneta novinha. A razão dessa disparidade? As causas são antigas e provêm dos tempos coloniais ou antes. Sobressaem a financeira e a cultural. O pessoal do sul, ou trouxe dinheiro amealhado lá durante décadas, ou tem na bagagem milênios de experiência européia. Uns poucos possuem emprego de altos salários... e formam o exército dos fazendeiros de fim de semana. Mas isso é outra história!

Essa diversidade de modo de ser não acarreta, porém, nenhum problema de convivência. Pelo contrário, todos se dão muito bem, amalgamando nova geração de gente diversa das que lhe deram origem. Os sulistas influenciam o nativo nas novas técnicas agrícolas e no manejo moderno do gado, convivendo harmoniosamente com a cultura do lugar, assumindo-lhe quase sempre os mitos e lendas com todos os seus ritos e tradições.

Nesse ponto, a região que lhes deu guarida, nessa invasão pacífica, sobretudo o Estado de Goiás, é riquíssima. São inúmeros os feriados religiosos que o goiano respeita, com seriedade e fervor impressionantes. Cada festa religiosa é comemorada como em nenhum outro lugar. Feriados nacionais, como 1º do Ano, Dia do Trabalho, Carnaval etc., ou dias santos reconhecidos nacionalmente como Finados, Natal etc. passam, às vezes, despercebidos. Mas as festas de Santa Luzia, São Sebastião, São José, do Divino, da Paixão etc. são carregadas de devoção estremada.

Não se consegue fazer um goiano trabalhar no dia de Santa Luzia, por exemplo. Além dos repousos, há os pousos realizados quase diariamente, cada vez na casa de um festeiro, onde se come e se bebe muito e se dança o catira (1) até o nascer do sol. Pouso aqui, não obstante o caráter religioso que lhe deu origem, tem o significado de “festa” mesmo e dura a noite toda.

Há também as Irmandades do Terço, das Cavalhadas, do Divino. A Santa Padroeira dos goianos, N.Srª.da Abadia, tem muitos santuários, sendo a basílica de Muquém, próximo a Niquelândia, o maior deles. Não há goiano que não tenha ido lá, pelo menos uma vez, em peregrinação, nos meados de agosto (2). Muitos vão à pé, viajando dezenas e centenas de quilômetros. É festa popular e religiosa de proporções gigantescas, mal comparadas ao Carnaval do Rio ou de Salvador.

Há crendices recheando o cardápio alimentar dos nativos: não se bebe leite com manga; não se come ovo com araticum (articum ou marolo, como é chamado no interior de São Paulo e Minas Gerais) etc. etc.

Dizem que insucesso na criação de galinhas garnisé leva o patrão a entrar em decadência. Assim também, se o rebanho de cocar ou galinha d’angola aumentar muito o dono morre...

E outras lendas e crendices há...

Os invasores foram absorvendo tudo, incorporando a cultura dos povos da terra à sua própria, participando até como entusiastas festeiros patrocinadores de pousos, embora, lá no íntimo, pensassem que todas essas crendices não passavam, afinal, de bobagens. Mas, por via das dúvidas...

***

Dentre esses figurava “seu” Firmino, Firmino Bertoletti, paulista do interior, de Altinópolis, cidade integrante da “Califórnia brasileira”, dizia ele, orgulhosamente, referindo-se à região de Ribeirão Preto, donde viera cerca de trinta anos atrás.

Funcionário público aposentado, fora transferido para Brasília no bojo do processo de transferência para a nova Capital, ocorrido no governo do general Médici, da maioria dos órgãos federais que ainda estavam em outras cidades, sobretudo no Rio de Janeiro.

Neto de italianos, trazia em seu peito a paixão pela terra, embora nunca tivesse sido proprietário de nada. Todos os anos viajava, nas festas natalinas, para sua “Califórnia”, e de lá voltava retemperado, cheio de idéias, planejando adquirir pedaço de terra no chão goiano.

Tal idéia, mais fixa a cada viagem, vinha sendo acalentada durante vinte anos. Tinha na mente tudo planejado: a casa sede, o curral, o indispensável galinheiro, pocilgas, pastagens e, como não podia deixar de ser, flores, muitas flores e árvores ornamentais.

Os tratos no grande quintal de sua bela casa nos arredores do Lago (3), em Brasília, embora diários, não arrefeciam toda sua paixão pela terra. Seu sonho era adquirir logo alguns hectares, de terra boa, fácil de ser trabalhada.

Desde muitos anos, qualquer dinheiro que lhe sobrava, — e isso era raro, posto que se tratava de servidor público sem muita expressão, embora de salário razoável, acima da média, — era reservado para a compra da “fazenda”, da Fazenda Nova Califórnia, como ele a batizava.

Durante anos, todo fim de semana passeava com a família, inicialmente pelos arredores de Brasília, aventurando-se depois a lugares mais distantes, em busca sempre de seu “recanto sonhado”.

Sua mesa de trabalho na repartição era recheada de recortes das páginas de anúncios de sítios e fazendas dos jornais da cidade.

Enfim veio o dia da aposentadoria. Com o dinheiro extra que chegara, mais a venda de lotes urbanos em Ribeirão Preto e em Altinópolis, tudo somado à poupança de tantos anos, deu para comprar alguns hectares, 40 mais propriamente, nos arredores de Padre Bernardo, município de Goiás, a cerca de 120 km de Brasília.

Foi um acontecimento! A alegria de “seu” Firmino com a posse da terra era contagiante. Parecia menino diante de bolo de aniversário! Na casa rústica que havia ali, conseguiu dar uma festa de “chegada”, tendo convidado todos os vizinhos, quase todos goianos de muitos costados.

Com o tempo, foi executando todos os projetos maturados ao longo da vida na repartição.

Construiu bela casa de alvenaria e telha colonial, ao lado de curral grande, feito de mancos (toras) de aroeira e cordoalha de aço e também coberto de telhas coloniais. Repartiu os 40 hectares em vários piquetes de pastagens, com cercas tipo paraguaia, utilizando as mais modernas técnicas de plantio e manejo.

Ornamentou a propriedade com árvores de toda a espécie de flores, implantou grande pomar incluindo fruteiras que os goianos nunca haviam visto antes. Ao redor da casa e ao lado de pequena piscina, espalhou flores de todas as cores e matizes. “Seu” Firmino, enfim, estava feliz!

Seus vizinhos viam tudo aquilo com ar de admiração, jamais suspeitando que ali estava se realizando o parto de uma longa e demorada gestação.

***

Só lhe faltava uma coisa, porém. Um de seus projetos, arquitetados longamente, não pudera ainda ser desenvolvido. Tratava-se das moitas de bambu, gigante, médio e pequeno, esse último denominado bambu jardim ou de pescar, que seriam plantadas em forma de alameda, margeando a estrada de ligação da rodovia à casa sede da fazenda, como vira tantas e tantas vezes na região de Ribeirão Preto. Planta de rara beleza plástica, figurava, pois, entre as maiores paixões de “seu” Firmino.

Todas as tentativas de aquisição de mudas na região de Brasília e Goiânia foram frustrantes. Não havia mudas e ainda que as houvesse, não encontraria peão que as plantasse. Uma das crendices mais arraigadas entre os nativos goianos é a de que “quem planta bambu não chega vivo ao fim do ano”. Essa era a principal causa da raridade de moitas da gramínea (sim, gramínea mesmo, pelo incrível que pareça, segundo o Aurélio) na região em que se localizava sua fazendinha. Tal crendice era respeitada, a despeito de desconhecer-se inteiramente a origem da maldição e sua razão de ser.

À medida que os dias se passavam, “seu” Firmino ia conquistando a amizade de toda a vizinhança, que o considerava muito simpático e prestativo. Não perdia pouso ali por perto e todo o ano, na data de seu aniversário, patrocinava e puxava reza do terço, seguida de pouso, muito concorrido, com direito à dança do catira. Nessas festas, já famosas em toda a região, “seu” Firmino se transformava e quem não o conhecia jamais iria supor tratar-se de paulista “oriundi”.

Mas a idéia fixa do bambual não lhe saia da cabeça. Não perdia oportunidade de puxar conversa sobre o assunto. Não convencia, porém, ninguém a ajudá-lo na empreitada. No seu íntimo, alguma coisa já lhe começava a incomodar, visto que, depois de tanto tempo, havia absorvido toda a crença e superstição existente na região.

***

O fim de ano estava se aproximando e, como sempre, foi até Ribeirão Preto e Altinópolis acertar com o resto de sua família, ainda lá residente, a reunião familiar anual, que neste ano deveria ocorrer em sua casa do Lago, em Brasília.

Foi, mas sua intenção era bem outra. Na volta, passando por um viveirista (4)da região, encheu sua camioneta de mudas de bambu, de todas as espécies possíveis. Tinha em mente plano de plantá-las de qualquer jeito, no finalzinho do ano, de sorte que não desse tempo de a referida crendice concretizar-se.

Tentou, bem que tentou, por diversos dias, conseguir ajudante para plantar as gramíneas. Mas, nada! Ninguém se dispunha a prestar-lhe a menor colaboração nesse sentido.

Chegou a noite de 31 de dezembro. Sua casa, à beira do Lago, toda enfeitada de luzes coloridas, estava um deslumbramento! A família inteira, umas trinta pessoas vindas de todas as partes de São Paulo, ali estava presente, fazendo enorme algazarra, própria das famílias italianas, somente superada pela música em alto volume comandada pelos seus dois filhos menores.

A ceia estava marcada para as 10h30. A mesa, já posta desde cedo, chamava a atenção pela variedade de comidas e bebidas, como era do costume da família.

Nove horas da noite e alguém se lembra de perguntar pelo “seu” Firmino, que ainda não havia voltado da fazenda. Mal terminada a pergunta, ei-lo que entra de supetão pela sala adentro, com sorriso maroto na boca, o qual não passou despercebido para seu tio mais velho.

— Que houve, Firmino? perguntou seu tio mais velho, que sabia da tal história do bambu.

— Acho que enganei a bruxa — respondeu baixinho, ao pé do ouvido do tio, referindo-se à crendice.— Acabei eu mesmo de plantar as mudas e como o ano já está prestes a terminar... não vai dar tempo de que se cumpra... vou tapeá-la.

— “Não estou gostando nada disso!” – pensou o tio mais velho, sentindo um ligeiro tremor por todo o corpo, como mau presságio.

Esse tio já tinha setenta ou setenta e cinco anos e era bastante viajado, tendo vivido muitas experiências e conhecido muitas coisas. Morou muitos anos no Norte e Nordeste e habituara-se a respeitar as crendices do povo.

Mas o momento era de festas. O barulho de talheres e copos aumentava à medida que se aproximava a hora marcada para a ceia. A algazarra, entrecortada de largas risadas, ecoava pela casa, toda iluminada.

“Seu” Firmino havia preparado de véspera cerca de dez grandes baterias de fogos de artifícios para comemorar a passagem do ano. Lá no íntimo, porém, ele queria mesmo era comemorar a vitória pessoal sobre a “bruxa”. Daí a euforia do momento e a quantidade de fogos.

Chegada a hora, ele próprio deu início aos festejos. Imediatamente começaram a espoucar e pipocar os fogos de artifício, rojões, busca-pés, estrelinhas e tantos outros, abrindo clarões imensos multicoloridos na noite de Brasília, acompanhados de imensa bateria de tiros.

O barulho era infernal e a fumaça e o cheiro forte de pólvora tomaram conta de tudo. Com os olhos pregados no céu e envoltos na fumaceira, ninguém se deu conta de que “seu” Firmino havia tombado ao chão, inerte, no momento em que uma bateria inteira, não se sabe como, explodiu sobre sua cabeça. Quando descobriram, acorreram todos em seu socorro. Levado às pressas ao hospital mais perto do Lago, entrou em coma, vindo a falecer às onze e quarenta e cinco da noite, antes que o ano terminasse, cumprindo-se assim a maldição da lenda do bambu e estragando a festa dos Bertoletti, que nunca mais se reuniram em Brasília.

Ao darem a infausta notícia ao tio mais velho, este, cofiando a barba, resmungou baixinho:

— Como suspeitava, ninguém tapeia a bruxa! A maldição mais uma vez se cumpriu!

Brasília,
janeiro/2000


(*) Primeiro conto da Trilogia Goiana inserta no livro de contos e crônicas A GRANDE SACANAGEM, não publicado ainda. Completam a trilogia o conto A ONÇA (já publicado na USINA) e O BILHAR.

(1)Espécie de cateretê ou sapateado executado apenas por homens; é muito comum nos pousos goianos.

(2)Em outros lugares, festa de N.Sra. da Luz ou da Assunção de Nossa Senhora (15 de agosto).

(3)Bairro residencial de classe média alta, localizado às margens do Lago Paranoá.

(4)Produtor de mudas.
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