Usina de Letras
Usina de Letras
133 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62186 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22532)

Discursos (3238)

Ensaios - (10351)

Erótico (13567)

Frases (50585)

Humor (20028)

Infantil (5426)

Infanto Juvenil (4759)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140793)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6184)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Uma Mulher Sonhadora -- 31/01/2004 - 19:27 (Dulce Baptista) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Uma mulher Sonhadora
Dulce Baptista

Mês da agosto no Planalto Central. O sol exacerba as alvuras do cimento, e o barro, em redemoinhos insistentes, avermelha os horizontes. Do interior do prédio, Luiza mais uma vez divisa os fortes tons da paisagem, sentindo a secura do clima na garganta. Bebe vagarosamente um copo d água e volta-se para o escritório.

Chefe de departamento, fora promovida recentemente e agora pagava o preço: pilhas de papéis urgentes esperando sua assinatura, agenda lotada, correria total. Lá fora, ela sabia, o sol estaria para sempre zombando do trabalho insano dos humanos. Pensava por onde começar, mas já o telefone lembrava-lhe do primeiro compromisso da tarde: receber o assessor do ministro para tratar da pauta da reunião para divulgação dos boletins.

Os tais boletins tinham causado a maior dor de cabeça, mas finalmente pareciam satisfazer as autoridades competentes e seriam publicados. Reginaldo, o porteiro, havia subido inúmeras vezes com as provas da gráfica, até a versão final. Se dependesse disso, estariam bem divulgados os trabalhos do ministro.

Reginaldo era um fenômeno estranho para Luiza. A postos todos os dias, nada mais era do que um simples porteiro. Silencioso, cumpria metodicamente suas tarefas, as quais consistiam em abrir e fechar portas de elevadores, verificar entradas e saídas de pessoas no prédio, e mais as encomendas e correspondências que lhe competia encaminhar.

No relance dos bons-dias e boas-tardes, Luiza o percebera como algo diferente entre os mortais. O artista de cinema no papel de porteiro: alto, cabelos castanhos, olhos verdes, voz linda. Ela, a executiva bem sucedida, submergia célere dentro do elevador, antes que se deixasse trair pela admiração.

Depois, esquecia, simplesmente. Entrava na rotina frenética de seu próprio mundo, um mundo que exigia antenas ligadas e que pouco espaço deixava à fantasia. Felizmente, pensava, conseguira se desincumbir dos boletins. Agora, entre sorrisos e cafezinhos, passava adiante mais esse produto do Departamento de Comunicação. O próximo passo seria redigir a circular que convidaria parlamentares e autoridades a participarem do seminário sobre financiamento da agricultura.

No começo da noite, cansada, porém com a feliz sensação do dever cumprido, retirava-se. Preparava-se para o outro cenário, o do recesso do lar. Antes disso, entretanto, o inevitável percurso entre o oitavo andar e o térreo.

O inesperado aconteceu. Fechada a porta, o elevador não saía do lugar. Decorridos alguns segundos, não restava outra alternativa que não o alarme. Mais alguns momentos de silêncio, e eis que chega o prestativo Reginaldo.
"Está aí há muito tempo, senhora?"
"Não, Reginaldo, ainda bem que você chegou."
A chave de fenda é introduzida na porta, que é rapidamente aberta.
"Ah, é Dona Luiza...Acho que dá para descer."
Reginaldo entra no elevador, aperta o botão do térreo e descem.

São segundos apenas, mas o silêncio como que instaura um clima de mútua curiosidade. Ei-la, em final de expediente, apressada, querendo chegar em casa. Mas ficou presa no elevador, dependente do Reginaldo. Discreto como sempre, ele arrisca um comentário: "A senhora trabalhou até tarde... deve estar cansada." Luiza sabe que já passou dos trinta, que é chefe, e que o outro é um serviçal. Mas abomina ser chamada de senhora. Pelo menos por aquele rapaz. "Obrigada, e até amanhã."

No dia seguinte, chega ao trabalho mais arrumada que nunca. Roupa de linho claro, acessórios de couro vermelho, discreta jóia. O batom realça a pele cor de mate e a cabeleira negra. O cumprimento é acompanhado, dessa vez, por um recíproco olhar de cumplicidade. Que química estranha será essa?

O dia transcorre agitado. O discurso que o ministro proferira tivera grande repercussão entre os políticos, e cabia a ela, Luiza, fazer publicar todas as matérias a respeito. A secura do clima aumenta e é preciso beber muita água. O ar condicionado, por sua vez, não evita que se fique ofegante de vez em quando.

No sonho da véspera, Luiza viu Daví. A estátua branca envolta em brumas, na entrada de um prosaico botequim da entrequadra. Era o mesmo Daví que pudera observar deslumbrada, anos atrás, numa excursão pela Europa. Lá estava ele, talvez um pouco menor, do tamanho de uma pessoa. Florença, Museu dos Ofícios... Não, não era mais Florença; agora tratava-se de Brasília, embora ele continuasse impassível. Luiza o tocou e sentiu a rigidez daquelas formas. Abraçou a estátua, ficando assim por um longo minuto.

No caminho para o trabalho, lembrara-se do sonho e no meio da manhã ele lhe surgia na mente, entre um telefonema e outro. De repente, sentia a aguda consciência de seu próprio corpo. Entrementes, senhores de terno esperavam na ante-sala.

Sexta-feira. Mais uma jornada chega ao fim, e Luiza diz o boa-noite de sempre. Pequenas demoras para apanhar a chave na bolsa, ou para observar há quanto tempo não chove, são pretexto para olhares e sorrisos; a atração é quase incontida. As palavras, no entanto, nunca serão ditas e o gesto é proibido...

Entre divertida e horrorizada, Luiza imagina a seguinte manchete: "Jornalista seduz porteiro dentro de ministério. Assédio sexual às avessas!".

Chega em casa com o corpo em brasa. Abre o chuveiro, onde se deixa ficar por quase uma hora. A água escorre, evocando lentas carícias na plenitude da noite.

*************************************************
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui