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Contos-->O BILHAR (UM CASO DE CIÚME) -- 31/01/2004 - 22:21 (adelay bonolo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O BILHAR (*)

“Que seja eterno, enquanto dure!”, escreveu o poeta Vinícius. Mas há um escrito muito mais antigo: “O que Deus uniu o homem não separe”. Está na Bíblia.

São coisas distintas, dirá o leitor. É verdade, são coisas distintas, mas com fundamento numa só: o amor.

Ainda há casamentos arranjados, em alguns lugares do mundo, que não consideram o amor. Mas a regra geral, em todos os povos e países, é que ao casamento precede aquele, tendo-o por pressuposto.

Uma coisa, porém, é o amor, outra o casamento, seja a forma, o rito e a intensidade que possam ter entre as diversas nações do planeta.

O amor é sentimento, que nasce às vezes sem querer, e inesperadamente, da forma como veio, se acaba, enquanto que o casamento, filho da razão, quase sempre é resultado de longo período de gestação e maturação, que também acaba, como aquele.

Que bom seria se ambos andassem sempre juntos, como os trilhos das ferrovias, binários inseparáveis, em que um não vive sem o outro! Aí chegaríamos ao preceito bíblico.

Mas os trilhos das ferrovias chegam ao final da linha. Vinícius tem razão: a eternidade do amor é efêmera como a vida das flores, dos pássaros, como o trecho de uma linha férrea.

A questão vem à baila a propósito da crise do casamento, tema preferido hoje das revistas, telenovelas e dos consultórios dos psicanalistas e psicólogos (duas das maiores pragas modernas, segundo a opinião de um amigo meu!).

A família estaria em crise porque o amor também está? Parece que nesse ponto há consenso: não há casamento que resista quando o amor acaba, salvo aqueles arranjados de que falei acima, em que o amor nunca existiu. É claro que há casamentos e casamentos. Muitos sobrevivem à custa de interesses, sejam financeiros, sejam religiosos ou, mesmo, por causa dos filhos.

Mas as verdadeiras causas do arrefecimento do amor e do início da derrocada do casamento, que seriam inúmeras ou uma só, dependendo da corrente a que aqueles analistas se prendem e se apegam, não serão abordadas por mim, que me faltam competência e fôlego para tamanho empreendimento.

Ficarei apenas em uma das principais... o ciúme.

***

O ciúme nasce como nascem os grandes rios, os grandes incêndios, as grandes tragédias. No início, a coisa é imperceptível, tal como singela fagulha ou pequeníssima gota que brota da rachadura na pedra da montanha.

Depois, uma fagulha se sucede à outra e outra, mais outra, se avolumam e, sem que se perceba, o fogo se alastra, devorando tudo em pouco tempo, tornando-se irrefreável. Da mesma forma uma gota d’água se junta a outras e se transformam num caudal gigantesco que, sem controle, destrói rapidamente grandes áreas, arrastando tudo pela frente, acarretando imensos prejuízos, como vem acontecendo ultimamente em várias partes deste país.

Assim é o ciúme, cuja origem pressupõe o sentimento de posse, irmã gêmea da exclusividade, que exige fidelidade. Num dia, um simples olhar, inocente, sem pretexto, acende ou acorda um sentimento que, aparentemente, não existia. Em outro, um encontro casual, inesperado, reforça a dúvida. Num terceiro, uma coincidência. Daí em diante, tudo é causa, tudo é considerado como preconcebido, adrede preparado. Em pouco tempo, como o fogo e a enchente, o amor é destruído, pondo em sério risco a instituição do casamento. Na maioria das vezes, no início, o ciúme é infundado, não existe causa para tanto efeito. Com os dias, porém, as ações passam a refletir as suposições e o que antes eram devaneios, apenas, se transformam em realidade, realidade desesperante e sufocante pela infidelidade e traição.

Dependendo do grau de instrução, educação e preconceito das partes envolvidas, o ciúme poderá redundar em tragédias, como as que se lêem diariamente nos jornais.

Ao longo dos muitos anos de atividade profissional como advogado, vi e colecionei muitos casos de ciúme, que se transformaram em desamor e desprezo, depois em ódio e finalmente em tragédia, chegando aos tribunais. Raros são aqueles casamentos que terminam suave e docemente, sem aparente seqüela, como a morte natural dos passarinhos, que se escondem para morrer (1) ou o último suspiro das velhinhas magrinhas, que morrem como os passarinhos. Na maioria das vezes a turbulência, com grande alarido, atinge a tudo e a todos, incluindo os bens, os parentes, os vizinhos e principalmente os filhos, além do cachorro e de outros animais domésticos da casa.

Cada país, ou melhor, cada região tem seu peculiar comportamento diante da infidelidade, causa de tudo. Em muitas partes do mundo, a honra maculada se lava ainda com sangue. Aqui e ali se fala sempre da honra do marido ofendido, parecendo que a infidelidade masculina não afeta de nenhum modo a honra da outra parte... As mulheres, porém, quase nunca lavam sua honra com sangue.

As tragédias, porém, em grande parte, provêm da suposta ou real infidelidade da mulher. O marido, pressionado pelo medo efetivo da gozação e execração públicas, procura compensar-se da desmoralização com drásticas atitudes.

A Literatura, o Teatro, a Música, a própria História está repleta de exemplos do que acabo de dizer. Aliás, a vida mesma está cheia de Otelos e Desdêmonas e Iagos... (2)

Desde os tempos das tragédias gregas, das histórias imortais de Shakespeare, passando pelas divas das óperas, como La Traviata, de Verdi (3), e Lucia de Lamermoor, de Donizetti (4), pela sofrida Madame Bovary, de Flaubert (5) e, mais perto de nós, pela Inocência, de Taunay (6)e a doce Capitu, de Dom Machado “Casmurro” de Assis (7), o ciúme e a traição têm sido o leitmotiv das artes, como temas prediletos dos autores de todos os tempos.

Até a Bíblia está recheada de exemplos, a começar pelo próprio episódio da concepção de Jesus, quando foi preciso a presença de um anjo para aplacar o ciúme de José, que tencionava abandonar Maria, em silêncio, para que não fosse apedrejada como adúltera...

Fazem-se pilhérias e gozações de toda sorte com os chamados “cornudos”. Fizeram-se filmes, alguns célebres, sobre o assunto. É conhecida a história da esposa que se queixou ao psicanalista de que o marido não gostava de ser traído... ao que lhe respondeu o especialista: não dê importância a isso, ele é de origem italiana... quando me contaram esse episódio, não entendi bem o que esse profissional quis dizer com a referência a que fez. Aliás, até hoje não entendo, sendo eu de origem italiana como o cornudo do episódio.

Mas a coisa pega em determinadas regiões do Brasil. No Norte/Nordeste tudo acaba na ponta de uma peixeira. O goiano também não fica atrás: resolve essa questão à bala.

***

Toda essa longa digressão acima vem a propósito de umas cenas que presenciei não faz muito tempo no interior de Goiás.

Um certo caboclo, a quem chamavam de Zica ou Nego, provavelmente pela cor de sua pele, bastante bronzeada e queimada de nascença, com reforço do sol escaldante da região, andou passando alguns dias na minha fazenda, visitando parentes seus que trabalhavam na propriedade naquela época.

Os parentes do tal Zica eram Sebastião, meu caseiro, e mais dois irmãos menores, que o ajudavam na lida da fazenda. Sebastião era mais novo que Zica, recém-casado, com filho pequeno, que ficava o tempo todo engatinhando pelado pela casa e quintal em volta, com dois incríveis “macarrões” pendurados nas narinas e fazendo suas necessidades por todos os lados. Sua mulher, também nova e sem experiência, adorou a vinda dos compadres, sobretudo pela ajuda que sua cunhada e também comadre lhe poderia dar nos cuidados da casa e do pequeno Jonathan, assim chamado o pimpolho.

Em pouco tempo, a transformação da casa ficou evidente. A “mão” da comadre passou a ser preciosa. O menino andava agora vestido, com fraldas e uma calça plástica improvisada, que impedia que suas desnecessidades aparecessem espalhadas pelo chão. De vez em quando seu nariz era limpo, de forma que aquela cena degradante desaparecera.

Jovelina, assim se chamava a comadre, passou também a tomar conta da cozinha. O almoço, o lanche da tarde e o jantar era por sua conta. Quando cozinhava, o cheiro de comida gostosa recendia longe, atiçando o apetite da peonada. A moçada gostou da mudança, pois realmente cozinhava muito bem. Com sua chegada e do marido e de mais três crianças, as despesas aumentaram, mas eu contribuía com mantimentos todo mês, entregando-lhes duas cestas básicas compradas nos supermercados de Brasília.

Jovelina era moça já beirando os 25 anos, mãe de três filhos (uma escadinha!), mas de boa aparência. Embora lhe faltassem dois ou três dentes na boca, era, de certa forma, sensual e sabia se arrumar. Usava quase sempre vestido curto, que lhe deixava à mostra a calcinha e as grossas coxas, toda vez que se abaixava, sobretudo para soprar as brasas do fogão. O decote, também generoso, deixava entrever um par de seios rechonchudos, que de quando em quando se podia vê-los por inteiro ao dar de mamar ao filho mais novo.

Usava laço vermelho ou amarelo amarrado às pontas das tranças do cabelo, o que lhe acentuava a faceirice. Gozado! A mulher quando é coquete demonstra sua coqueteria desde cedo. Num grupo de meninas, sempre há uma ou outra que sobressai, não importa o tamanho, a idade, a qualidade da roupa. Reconhece-se sempre a coquete: laço na cabeça, vestido curto, bundinha arrebitada! Essa característica acompanha-la-á por toda a vida!

Era assim a Jovelina, cuja sensualidade aumentara com a maturidade.
O casal destoava, todavia. Jovelina, branca, chegava a ser razoavelmente bonita e o seu marido, o Zica, aparentando 40 anos, nariz achatado, baixinho, meio gordo, não tinha nenhum traço de elegância ou beleza. Bem comparado, era, sem pôr nem tirar, a bela e a fera.

A visita do Zica foi proveitosa para todos: para a mulher de meu caseiro, por causa da inestimável ajuda que a comadre lhe passou a dar na lida da casa. E para mim, que estava implantando um projeto agrícola de certa grandeza e precisava de mão-de-obra. A contribuição do Zica foi importantíssima, pois o homem era um gigante no cabo da enxada.

Pouco acima da casa, 50 metros mais ou menos, escondido atrás de uma cerca viva de sansão do campo (8), ficava o alojamento dos demais trabalhadores da fazenda, entre eles um tal de
Joãozinho, tratador dos cavalos de raça, que naquela época ainda eram criados na fazenda.

Joãozinho, rapaz de 17 anos, quieto, andava quase sempre de cabeça baixa, humilde e, aparentemente, bastante tímido e ingênuo. Mas era bem apessoado, de cor branca queimada, cabelos grandes crespos aloirados, devia medir cerca de 1,75m de altura, aproximadamente. Passava o dia todo nas baias cuidando dos cavalos, treinando-os. Não incomodava ninguém, nem gostava de ser perturbado no seu serviço. Demonstrava satisfação no que fazia e o fazia bem feito, o que me agradava muito, deixando-me despreocupado com aquele setor.

O almoço, lanche da tarde e jantar, como seria de se esperar, era uma festa, tal a quantidade de convivas, sendo ao todo umas oito pessoas, sem contar as crianças. Todos juntos, numa conversação e batedura de talheres, beirava a algazarra. Terminada a refeição, tudo voltava à quietude de antes, cada qual cuidando de seu trabalho.

Ali perto, cerca de quatro quilômetros da minha fazenda, havia um boteco, com uma mesa de bilhar, como tantos botecos que há em Goiás, na zona rural. A queda que o goiano tem para o bilhar é impressionante. Cada bar, — e em cada casa parece haver um, — há uma ou duas mesas de bilhar, sempre com gente com um taco nas mãos. Chamam de bilhar, mas na verdade se trata de sinuca, jogo bem diferente do bilhar inglês. O jogo é o mesmo de todos os lugares: sete bolas coloridas e uma branca e seis caçapas. Ganha quem fizer o maior número de pontos no processo de encaçapar as bolas.

Embora não estimulasse, pelo contrário, reprovasse com certa veemência, era hábito da peonada, todas as noites, após o jantar, ir ao boteco a que me referi. Partiam cedo e só voltavam já bem tarde da noite, a despeito de no dia seguinte terem que levantar com as galinhas. Alguns voltavam meio embriagados, cuja reincidência quase sempre redundava em despedida do emprego.

***

Aí estão, caro leitor, todos os ingredientes da tragédia que se vislumbra e se aproxima a passos largos.

Jovelina, a mulher do Zica, sem alarde, imperceptivelmente, passou a dar tratamento diferenciado a Joãozinho, o tratador dos cavalos. No início, sendo ela quem servia os pratos a todos, começou a exagerar na quantidade de comida posta no seu prato. Depois, passou a servir-lhe o melhor pedaço de frango, o maior bife, a melhor verdura etc. etc. Ninguém percebia, até que a coisa ficou muito às claras, sendo motivo de pilhérias da maior parte dos peões. O Zica parecia indiferente a tudo, sendo possível que ainda não atinara com o que estava acontecendo.

Com o passar do tempo, Jovelina ficou mais descuidada, passando a demonstrar toda a sua queda para com o rapaz. Às tardes, enquanto Zica estava longe dali na execução de suas tarefas, ela quase sempre era vista beirando as baias dos cavalos, numa conversa sem fim com Joãozinho. Estávamos no período de monta das éguas e ela ficava ali, bem perto, excitada ao máximo com o espetáculo que via, fazendo comentários que deixavam o rapaz encabulado!

Começou o zunzum, de início silenciosamente, à boca pequena, como se diz. À medida que o tempo passava, foi aumentando, aumentando, num crescendo geométrico, e não se pôde mais conter as pessoas, que comentavam escancaradamente o que imaginavam estar acontecendo.

As desconfianças eram mais que plausíveis. Todos os sinais de traição estavam ali patentes. E conhecendo a fama dos goianos como eles mesmo reconhecem, fica fácil de se imaginar. Meu caseiro, preocupado com aquela situação, chamou o Zica num canto e pediu-lhe que fosse embora com sua mulher e filhos, temendo que pudesse acontecer algo trágico daquela coisa toda. Pareceu-lhe que o irmão não dava muita importância ao que estava dizendo.

— Zica, disse-lhe Sebastião, você é mais velho que eu e sabe muito bem o que fazer. Estão correndo por aí boatos, que não gostaria virassem realidade. Antes que seja tarde, mano, toma sua mulher e se manda!

Zica baixou a cabeça e nada respondeu. Desde aquele dia passou a ser motivo de gozação dos demais peões da fazenda, que não perdiam oportunidade para desmoralizá-lo. Antes alegre, ficou macambúzio, quase sempre de cabeça baixa. De vez em quando parecia-lhe ouvir uma voz que dizia: toma jeito, ô cara! Mas, sacudia a cabeça, como que para espantar aquela coisa e voltava para sua mesmice.

Ultimamente, porém, o “vozerio” externo e interno aumentara substancialmente, o que lhe fez abandonar as noitadas no boteco do bilhar. As vozes, agora muitas e repetidamente, lhe sussurravam sem parar: toma jeito, ô cara! Toma jeito!

— Se manda, meu irmão, disse-lhe ainda uma vez Sebastião.

Às vezes, ele se pegava olhando de soslaio ora para sua mulher, ora para o Joãozinho, ora para o Joãozinho ora para sua mulher e assim passava vários minutos, durante as refeições.

Zica estava diferente, isso estava.

O ciúme estava crescendo, gota a gota, fagulha a fagulha, tal qual a calúnia nos versos de Cesare Sterbini, no libreto da ópera O BARBEIRO DE SEVILHA, de Rossini (9): “O vozerio vai crescendo,/Ganha força pouco a pouco, /Voa já de canto em canto,/Parece o trovão, a tempestade/Que no seio da floresta/Vai assobiando, vai roncando,/E te faz de horror gelar./No fim transborda e estoura, /Se propaga, multiplica/E produz uma explosão/Como um tiro de canhão,/Um terremoto, um temporal,/Que faz o ar ribombar”.

***

Naquela noite, não se sabe por quê, toda a peonada foi jogar sinuca no bilhar do boteco, incluindo Joãozinho e Zica.

Uns bebiam cerveja, outros, cachaça, enquanto os mais jovens jogavam sinuca. O tratador de cavalos, que não estava bebendo nem jogando, ficou sentado num banco de tábua perto da porta, olhando para a estrada que passava diante do boteco.

Zica, mais pra dentro, sentado em outro banco parecido com aquele do Joãozinho, tomava um copo de cerveja e acariciava docemente um taco de bilhar, embora não estivesse jogando. As vozes dentro de sua cabeça, de forma tonitruante, gritavam incessantemente, dando-lhe a impressão que ia explodir: “Toma jeito, ô cara! Se manda, mano! Toma jeito... Se manda... cornudo! cornudo!”

De repente, em silêncio, levantou-se, pegou mais dois tacos, juntou-os ao que já tinha nas mãos formando um triângulo, e, segurando-os pelas pontas, deu dois passos no rumo da porta e desferiu tremendo golpe na cabeça de Joãozinho, assustando a todos com o barulho que fez.

O tratador, sem dizer nada, ficou de pé, meio tonto, deu alguns passos para fora em direção à estrada e tombou, como que desmaiado, no chão de barro. Todos acorreram em seu socorro, ao ouvirem o terrível estrondo que os tacos fizeram em sua cabeça. Pediram carona ao primeiro veículo que passou, mas não deu nem tempo de alcançarem o hospital. Joãozinho morreu no caminho.

Zica caiu no mundo, desconfiado de que cometera grande besteira. Mas já era tarde. A polícia andou por lá perguntando, farejando, mas não encontrou rastro do criminoso.

No dia do enterro, andou circulando de mão em mão cópia do laudo pericial do médico legista, no qual, além da causa mortis, lia-se a seguinte observação ao final da página:

SINAIS PARTICULARES: Sinais antigos de mutilação violenta acarretando castração completa (grifo e negrito do próprio perito-legista).

Ah, é isso! Havia me esquecido de dizer. Quando Joãozinho era criança, caíra do alto de um galho de goiabeira sobre uma cerca de arame farpado trançado com ripas de bambu, no quintal de sua casa, muito comuns nas fazendas, para cercar as galinhas. Na queda, bastante de mau jeito, as tiras de bambu deceparam-lhe a genitália, arrancando-a por completo, sem possibilidade de reimplante. E ainda que houvesse, naquela época não se faziam operações da espécie. A não ser o pai e a mãe dele, ninguém mais sabia dessa história.

Pobre Joãozinho! Morreu de graça, puro e virgem como nascera, absolutamente incapaz materialmente de cometer o crime pelo qual morrera, sem dizer nenhuma palavra!

Passado algum tempo, a polícia não mais rondava a região e o crime havia caído no esquecimento; Zica, então, retornou à minha fazenda, quando ficou sabendo, pela boca de seu irmão, Sebastião, que Jovelina havia fugido com o novo tratador de cavalos que ocupara o lugar de Joãozinho, deixando-lhe os três filhos menores para cuidar, um deles mamando...

Brasília
fevereiro/2000



(*) Ùltimo conto da TRILOGIA GOIANA, a que me aludi no conto A LENDA DO BAMBU (publicado na USINA).

(1) Verso de um poema de Victor Hugo, escritor e poeta francês do século XIX, que diz: Les oiseaux se cachent pour mourir!

(2) Personagens da peça Othello, de Shakespeare, magistralmente musicada por Verdi, na ópera de mesmo nome (Otelo).

(3) Giuseppe Verdi – Um dos maiores autores de ópera em todo o mundo. Suas principais obras são: Il Trovatore, Il Rigoletto, La Traviata, Otelo, Aida e tantas outras, famosas e igualmente belas.

(4) Gaetano Donizetti, famoso autor italiano de óperas, figurando entre as principais Elisir d’Amore e Lucia de Lamermoor a mais conhecida, famosa por sua “ária da loucura”, em que o soprano duela magnificamente com a flauta.

(5) Gustave Flaubert, é um dos mais importantes escritores em língua francesa. Sua obra básica é o romance Madame Bovary, um libelo contra a infidelidade. Outras obras: Salammbô, La Tentation de Saint Antoine etc.

(6) Alfredo D’Escragnolle Taunay, escritor bilíngüe brasileiro, autor de Inocência, A retirada da Laguna, entre outros.

(7) Machado de Assis – Sem dúvida, o maior escritor em língua portuguesa. Foi o fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras.

(8) Arbusto espinhento muito usado para formação de cercas vivas.

(9) Da ópera “Il Barbiere di Siviglia”, em 2 atos, de Gioachino Rossini, estreada em 1816. Libreto de Cesare Sterbini, baseado em obra famosa do escritor francês BEAUMARCHAIS (um depravado, caluniador, aproveitador, gozador, mau-caráter etc. e tal).
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