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Contos-->O CASO DE ESTÊVÃO (ou a "paixão" de Carolina) -- 07/02/2004 - 22:31 (adelay bonolo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O CASO DE ESTÊVÃO (*)

Houve um tempo em que fui obrigada a devorar livros e mais livros de Psicologia. Não que fosse estudante da matéria em algum curso ou faculdade, mas por necessidade de adquirir conhecimentos na área em função de problemas mentais na minha família.

Acho que li mais livros que a maioria dos estudantes acadêmicos da disciplina. De todas as tendências. Desde a Psicologia tradicional, passando pela Análise Transacional até a Gestalt-terapia. Tudo. Freqüentei consultórios, participei de cursos e de grupos de análise.

Quero dizer de antemão que todo esse estudo de nada me adiantou. Ao contrário, mais aumentou minha angústia, pois os problemas não se resolveram nem se acabaram com tal aprendizado.

O fulcro de meu interesse era o relacionamento a dois, ou seja, marido e mulher, companheiro e companheira ou simplesmente amantes e namorados. Sempre dois, casal.

Uma das teorias que mais me impressionaram, à época, é aquela parecida com a idéia central do comunismo ideológico (não o implantado em alguns países): dá quem pode, recebe quem precisa. Explico-me melhor: segundo essa teoria, as pessoas se dividiriam em pais e filhos, nos homens e mães e filhas, nas mulheres.

A figura do “pai” seria prestativa sempre, doando-se e protegendo os filhos, enquanto a do “filho”, ser protegido, exigir, esperar que seja servido sempre ao tempo e à hora. O mesmo acontece com a mulher: há as que são “mães” em todas as situações, servindo a tudo e a todos a qualquer hora sem nada esperar em troca. Há, porém, aquelas que nada fazem em prol dos outros, nem de si mesmas e aguardam e esperam ser atendidas, não importando o sacrifício que isso possa representar para outrem.

Um casal nessas circunstâncias, para dar certo, teria que ter papéis invertidos; um homem “filho” com uma mulher “mãe”; uma mulher “filha” com um homem “pai”. Um sempre servirá o outro não aguardando agradecimentos, gratidão etc. Quando os papéis são iguais, “filho” com “filha”, “mãe” com “pai”, há o choque inevitável; num caso, um espera pelo outro eternamente e nada acontece, terminando a relação num amontoado de ressentimentos. Na alternativa, cada qual se esmera em servir o outro, que não quer ser servido. Assim também não dá certo.

Apesar de minha pouca experiência, observando os casais de meu relacionamento, tios e tias, vizinhos e vizinhas, padrinhos e madrinhas, vejo que a teoria pode ser verdadeira. Por isso acho que as pessoas, para se relacionarem definitivamente, seja no casamento, seja num outro tipo de sociedade, deveriam conhecê-la e aplicá-la. Acho que valeria a pena.

Além desse aspecto (servir e ser servido), um outro deveria ser levado em conta na formação das sociedades: o da cultura. Não falo da cultura acadêmica, pessoal, representada por conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos. Falo da cultura de família, da tribo, gostos e tradições. As famílias, dependendo da origem de lugar e raça, têm peculiaridades que não se comunicam com as de outras famílias. As tradições, os gostos, as comidas, as diversões, o tratamento recíproco entre os indivíduos, as soluções para questões familiares, tudo difere de uma família para outra. Quando falo de família refiro-me a um conjunto de indivíduos pertencentes a uma determinada região e que guardam identidade entre si. Por exemplo, o gaúcho difere frontalmente do goiano, que é diferente do nordestino, que por sua vez nada tem a ver com o paulista, o mineiro, e assim por diante. O mesmo acontece com os países. Notória é a rivalidade entre as nações, que reforçam suas respectivas tradições em detrimento das alheias. Veja-se a propósito a recente luta ferrenha travada entre albaneses e sérvios na região de Kosovo, na Iugoslávia.

Mas tudo isso é muito triste. Pena que as pessoas precisem de amuleto para consertarem ou substituírem a relação que têm, sendo obrigadas a se valerem de psicólogos, esse flagelo moderno, como diz um amigo meu!

Bom seria que a vida fluísse com ou sem problemas, mas longe dos questionamentos existenciais e comportamentais, distante dos consultórios, deles...

Numa de minhas andanças pela literatura especializada, deparei-me com o livro “NÃO APRESSE O RIO (ele corre sozinho)”, de Barry Stevens, famosa psicoterapeuta da Gestalt-terapia. Estava evoluindo bem na leitura, gostando até, quando a autora afirma textualmente: "Quando eu tinha casa e família, dava uma busca na casa duas vezes por ano, e tudo que não tivesse sido usado ou apreciado por seis meses não valia a pena ser mantido... Lembro-me do horror do meu marido quando joguei fora a minha certidão de casamento logo depois que nos casamos (grifo meu). Ele disse que algum dia eu poderia precisar dela”(1). Nem me envergonho em dizer que fechei o livro e nunca mais o reabri!

***

Tudo isso vem a propósito da história da minha própria família. Meu pai era nordestino, mais precisamente de Quipapá, interior de Pernambuco e minha mãe, de Santa Maria, gaúcha descendente de italianos. Uma mistura explosiva que tinha tudo para dar errado, como deu, de fato, até porque minha mãe era do tipo “filha”, que busca proteção e meu pai, “filho”, que espera ser servido, jamais servir.

Conheceram-se e casaram-se em Brasília e nunca chegaram a ter conhecimento das teorias que menciono aqui. Cursaram a Faculdade de Economia, da Universidade Católica, ele e ela, Jornalismo, no CEUB. Ambos trabalhavam o dia todo em lugares e profissões diferentes e estudavam à noite.

Os primeiros anos de casamento foram penosos pelas dificuldades financeiras, aumentadas com a chegada dos filhos: eu, Carolina, e 10 anos mais tarde, Susie, esta, já em outra situação, mais confortável.

A história que pretendo contar aconteceu há quase 10 anos, quando eu tinha apenas 17 e Susie 7 anos de idade. Esperei todo esse tempo para poder entender e compreender melhor o que acontecera, suas causas e desdobramentos.

Nessa época, meu pai trabalhava no Banco Central e minha mãe acabara de deixar a Caixa Econômica, onde era concursada, por necessidade das tarefas do lar. Eu estudava no Colégio Marista do 2º grau e minha irmã, Susie, estava se preparando para iniciar o 1º grau, não sei mais em qual colégio.

Minha vida em casa não tinha grandes alegrias, nem grandes tragédias, sem muitos atrativos, como a maioria das famílias que conhecia.

Minha mãe era mãe dedicada, embora não tivesse muita queda para as coisas do lar e de dona de casa. Tinha horror à cozinha e arrumar a casa lhe exigia esforço inaudito. Valia-se para todo e qualquer serviço de quem aparecesse lá em casa. Brincávamos dizendo que se algum vendedor ou homem do gás, por exemplo, batesse na porta, era bem possível que ela o colocasse na cozinha para fazer arroz. Exagero à parte, ela não pôde, dessa forma, transmitir a mim e à Susie os ensinamentos eternos que toda mãe passa para a filha. Tivemos que quebrar a cabeça e ralar sozinhas.

Meu pai trabalhava o dia todo no Banco. Era homem calado, de poucos amigos, muito sério, sisudo até. Raramente aparecia lá em casa algum colega ou amigo dele. Eu o achava muito estranho. Pegava-o falando sozinho ou fazendo caretas ou olhando para o infinito. Nunca se espantou ou se explicou quando se dava conta de que era observado.

Tratava-me com doçura, meiguice e à Susie, com rispidez, grossura até. Nunca soube o motivo da diferença de tratamento. Susie ainda hoje guarda ressentimento de mim, como se eu fora culpada pela situação.

Os parentes de minha mãe, todos moravam no Sul e raramente apareciam lá em casa, certamente demovidos pela desconfiança de que papai não gostava de visita. E não gostava mesmo!

O casamento deles não ia bem, mas também não ia tão mal. Acho que ela preferia a segurança da relação, do belo apartamento, do salário de papai e do “status” que o casamento com ele lhe proporcionava, à incerteza de uma nova vida de divorciada. Por isso agüentava tudo.

Meu pai era magro, bem alto, de cor branca, cabelos encaracolados, quase crespos, fugindo um pouco ao “tipo nordestino”. Esguio, rosto franzino, andava sempre carrancudo, com aparência de zangado, o que lhe ressaltava a magreza.

Certo dia, ao voltar do colégio na hora do almoço, ouço minha mãe atender alguém no telefone:

— Sim, senhor, agora mesmo!

Desligou o telefone, pegou a bolsa e as chaves do carro e saiu apressada, batendo a porta com força. Larguei minha mochila em qualquer lugar e saí correndo atrás. Consegui entrar no carro, quando já estava partindo, e ela nem fez menção de me expulsar de lá.

Paramos na delegacia da 1ª DP, do Plano Piloto. Ela entrou no prédio e eu junto.

— Detetive Evilázio? — perguntou ao primeiro policial que encontrou.

— Primeira porta à direita, senhora.

— Detetive Evilázio? — perguntou para a pessoa que estava sentado a uma mesa cheia de papéis. Sem esperar resposta, foi logo dizendo —Cadê meu marido? O que aconteceu com ele? Conte-me, logo, por favor!

— Calma, madame, calma! — disse o detetive, olhando-a de cima a baixo — Sente-se e fique calma! Seu marido foi pego completamente nu, no banco traseiro de um ônibus da linha Taguatinga-Rodoviária, na direção do Plano Piloto, mais ou menos às 10h30 da manhã. O motorista, diante do clamor dos passageiros, na maioria jovens estudantes, parou aqui na Delegacia, trazendo seu marido que estava — e cochichou alguma coisa no ouvido dela — vai responder a processo por atentado ao pudor.

Ao referir-se a tal processo, todos os policiais que estavam por perto, começaram a rir, sendo que um deles dava grandes gargalhadas. Foi exatamente esse quem tirara meu pai do ônibus.

Mais tarde fiquei sabendo o que tinha acontecido. Meu pai deixara o carro no estacionamento do trabalho, pegara um ônibus para Taguatinga(2) e, inexplicavelmente, apareceu nu, de membro ereto, sentado no banco traseiro do ônibus. Não sabia quem era e o que fazia. A cena que se seguiu era ao mesmo tempo ridícula e grotesca; um homem magro, alto, de pinto ereto, tentando ficar no ônibus a todo custo, enquanto o policial, segurando-o pela barriga, tentava tirá-lo de lá à força. Cena inédita e chocante! Todos riram, menos eu e minha mãe. Era o meu pai que tinha estado naquela situação humilhante.

— Madame, — disse o detetive Evilázio — traga-lhe algumas roupas. Vou liberá-lo, sem antes, no entanto, fichá-lo para a abertura do competente inquérito de atentado ao pudor.

Minha mãe chamou o advogado amigo da família, Dr. Raimundo, que conseguiu sua liberação rapidamente.

O choque que tivemos, eu e ela, foi de uma grandeza notável. O que será que teria acontecido? Será que ele pirou? Ao chegarmos a casa, Susie ficou sabendo do ocorrido e começou a rir, no que levou tremenda bofetada de meu pai.

Acompanhei minha mãe, mais tarde, já refeita do primeiro susto, ao consultório de médico psiquiatra que lhe indicaram, dentre os médicos credenciados pelo Banco. O médico, Dr. Agnelo, conversou a sós longamente com meu pai, depois chamou minha mãe e eu.

— O seu marido, madame, — disse ele — teve um probleminha comportamental. Isso não é nada grave, por enquanto. Mas é necessário ter muita paciência com ele e cuidar para que tome estes remédios rigorosamente nas horas certas. Ele vai ficar alguns dias meio dopado e daqui a uma semana quero vê-lo novamente,

Compramos os remédios, todos controlados. Meu pai passou a andar mecanicamente com o olhar de zumbi permanente nos olhos. Andava sem cessar, agitado, desesperadamente e, quando sentado, sacudia uma das pernas num balançar cadenciado sem fim. Ligamos para o médico e ele disse que era assim mesmo, impregnação, conseqüência normal dos remédios.

Por mais que perguntássemos, meu pai não disse palavra a respeito do caso. Toda vez que tocávamos no assunto, seu olhar voltava-se para longe, o infinito. Às vezes percebíamos que parecia estar ouvindo alguém, pois virava de repente de lado e cochichava alguma coisa incompreensível para uma pessoa invisível.

***

E assim começou o imenso sofrimento de minha mãe e, por que não dizer, meu também. Adorava meu pai e queria vê-lo curado. Foi aí que comecei a devorar livros de Psicologia na esperança de poder ajudá-lo, compreendendo melhor sua doença.

Os médicos jamais disseram que doença ele tinha. Preferiam não rotular o mal. Mas eu o rotulei: era esquizofrenia tardia. Digo tardia, porquanto essa doença costuma atingir os jovens, sendo considerada doença da juventude. Deu no meu pai já na idade madura. Alguma coisa deve ter contribuído para despertá-la, já que, suponho, estaria latente desde muito tempo, haja vista seu comportamento fechado, introspectivo, na maior parte do tempo e exagerada manifestação exterior de alegria, sendo inconveniente, em outras vezes. Era 8 ou 80, como se diz.

O martírio de minha mãe e o meu próprio estavam apenas começando. Não falo de Susie, que ficou à margem da história não dando a mínima importância para os problemas que nos cercavam.

Voltamos ao Dr. Agnelo uma, duas, dezenas e dezenas de vezes. Fomos a outros e outros médicos, daqui e de outras cidades e meu pai cada dia estava pior. Passou a ouvir vozes e a respondê-las em alta voz, aos brados. No início calmo, ficou agressivo, ameaçando acabar com a vida dos donos daquelas vozes.

Nossa vida familiar virou um inferno. Minhas leituras de nada adiantavam. Minha mãe passava o dia chorando. Meu pai passou a perseguí-la com uma história esquisita sobre infidelidade conjugal.

Às vezes estávamos todos à mesa almoçando. De repente ele se virava na direção da janela e gritava — É você, seu filho da puta! É você. — E virando-se para nós — Estão ouvindo o que esse vizinho está dizendo? Está me chamando de corno. Corno é ele, esse patife!

Muitas vezes ele pegava o telefone, ligava para o vizinho de cima, de baixo, do lado, não importa; era vizinho, ele telefonava. E sacava contra o pobre os maiores impropérios — Safada é a sua mulher! — gritava aos berros — Vagabunda!

Minha mãe não sabia o que fazer, nem o que dizer. Abaixava a cabeça e chorava baixinho. É claro que os vizinhos sabiam de toda a história. Ouviam aqueles xingamentos e preferiam ignorá-los.

As vozes nem sempre eram constantes. Às vezes paravam de perseguí-lo. Os remédios, agora em altas doses, deixavam-no dormir quase o tempo todo. Mas era só acordar, lá vinham elas de novo!

Nos últimos tempos passaram a citar nomes. Nomes dos prováveis amantes de minha mãe. E ele contava tudo a todo mundo. Minha mãe quase morria de vergonha. Meu relacionamento com meus amigos e amigas também sofreu alteração profunda. Muitos dos pais de minhas amigas eram citados pelas vozes do meu pai como amantes de minha mãe.

Supunha que a doença mental atingia a pessoa da família e parava por aí. Ledo engano. Em casa de doente mental, todos ficam doentes, inclusive o passarinho, o gato, o cachorro, todos, sem exceção.

A coisa foi crescendo, se agigantando, tomando contornos que conseguiram apavorar-me. Procurava ajuda nos livros, mas não a encontrava. Minha mãe voltou-se para a religião, passando a valer-se de grupos de oração, que, apesar dos esforços, apenas conseguiam irritar meu pai.

— Tira essas velhotas carolas daqui! — gritava para minha mãe. As pobres senhoras punham suas bíblias debaixo dos braços e iam orar em outro lugar, na esperança de poderem ajudar minha mãe a suportar tão gigantesco fardo.

De quando em quando meu pai começava a quebrar coisas; derrubava cadeiras, armários, abajures, jogava livros e outros objetos pelas janelas, quase sempre pertencentes a Susie. O porteiro do prédio já sabia: objeto que caia do 3º andar ele guardava e os entregava mais tarde, às escondidas, à minha mãe.

Nossos parentes e amigos nos abandonaram. Também pudera! Meu pai destinava-lhes todo o seu rancor, acusando-os de terem tido algum caso com ela!

De repente uma das vozes passou insistentemente a indicar o síndico do prédio como o principal amante de minha mãe. Toda vez que ela saía de casa, ele se vestia às pressas e ia atrás, sem que ela percebesse.

Sua doença escolhera a pessoa mais próxima como vítima. A mais próxima dele era minha mãe, daí a perseguição implacável. É claro que ela não tinha nem mantinha nenhum caso amoroso com quem quer que fosse. Era fiel ao marido, tenho certeza disso.

Mas, na sua mente doentia, ele via e criava coisas, inventando cenas com riqueza de detalhes, que pareciam verdadeiras.

De vez em quando ele ligava para o síndico e despejava rosário de impropérios contra o pobre cidadão, que de nada sabia. Os médicos continuavam a pedir-nos paciência. Mas que paciência! De que adiantavam os remédios, as internações, às vezes prolongadas em clínicas especializadas? Ao sair, tudo voltava ao estágio anterior, muitas vezes mais piorado. Sua agressividade em relação à mamãe crescera incrivelmente. Passei a ter medo a que algo pudesse acontecer. Mas a quem pedir socorro e ajuda? Todos fugiram.

Certa noite, estávamos minha mãe, Susie e eu sentadas no sofá da sala vendo televisão, mais precisamente a novela das 8h, quando nosso pai entra inesperadamente pela sala a dentro, gritando:

— Safada, vagabunda! Toma!

E disparou três tiros de revólver na direção de minha mãe. Corri para socorrê-la e uma quarta bala me atingiu no ombro esquerdo. Susie correu para a cozinha.

— Sua vagabunda, meretriz, safada! — saiu gritando pela porta. Desceu dois andares a pé pelas escadas e entrando no apartamento do síndico, que já estava saindo apavorado com o barulho dos tiros, deu-lhe também dois tiros a queima roupa, matando-o na hora.

Em seguida desceu do prédio, ganhou o pátio rapidamente, ligou o automóvel e desabalou desesperado em enorme carreira em direção ignorada.

Todos os vizinhos acorreram para ver o que acontecera. Fomos levadas ao hospital mais próximo. Minha mãe faleceu no caminho. Eu fiquei não sei quanto tempo internada, menos pelo ombro ferido que pelo choque emocional que senti.

Soube mais tarde que Susie ficara na casa de uma vizinha e que o síndico do prédio havia morrido na hora em decorrência dos disparos dados pelo meu pai.

Não participei dos enterros, que comoveram toda a cidade, tal a inesperada violência das ações cometidas pelo meu pai. Soube que nossos parentes estiveram presentes. Se foram visitar-me no hospital, não me lembro. Recordo-me, porém, que toda tarde Susie passava horas a fio chorando comigo no quarto do hospital.

Hoje, já com 28 anos de idade, estou casada e tenho 2 filhos, um homem e uma mulher. Nunca mais abri livro de Psicologia. Susie mora nos Estados Unidos e não quer nem ouvir falar do Brasil.

Ah, ia me esquecendo de contar o resto da história!

A polícia não localizou meu pai, que sumira. Eu e Susie, marcadas pelo resto da vida pela brutalidade das ações cometidas por nosso próprio pai, retornamos ao colégio e tentávamos reconstruir nossas vidas violentamente interrompidas em seu curso normal pelas ações doentias e desassombradas de um psicopata esquizofrênico que preferia seguir a orientação “das vozes” que os conselhos de seus parentes e amigos, sobretudo de sua mulher e de suas filhas.

Cinco meses mais tarde, encontraram meu pai morto no cemitério da cidade, sobre o túmulo de minha mãe, com um tiro na cabeça, portando bilhete nas mãos em que dizia:

— Não suportei o remorso!

Uma semana depois, se tanto, o carteiro trouxe um telegrama contendo uma intimação da Polícia para que meu pai lá comparecesse para depor no inquérito de atentado ao pudor, instaurado contra ele oito meses atrás, onde e quando tudo começou.

Brasília,
abril/2000


(*) A parte central desta história é verídica, recolhida da crônica policial de Brasília, onde cheguei a conhecer Estêvão, com seu verdadeiro nome.

(1) Summus Editorial – 2ª edição – pág. 103 “in fine”.

(2) Principal cidade satélite de Brasília.
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