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Contos-->A VINGANÇA DA VELHA -- 12/02/2004 - 16:26 (adelay bonolo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A VINGANÇA DA VELHA (*)

A casa deles ficava a meio caminho da estrada que, naquela época, ligava a cidade à Vila Maria, única vila dos arredores. Era um misto de estrada, rua e ladeira, bastante íngreme, lamacenta e escorregadia na chuva, e poeirenta, de pó feito talco, bem vermelho, no tempo de seca na região (junho a setembro).

Alvenaria antiga, dois cômodos apenas, pequenos, cercada por muro de taquara de bambu, muito comum nas cidades do interior, a casa possuía duas portas, frente e fundos, ambas na cozinha e uma só janela, no quarto, que dava justamente para a rua. Desta janela descortinava-se, lá embaixo, a maior parte da cidade, sobressaindo-se a igreja e seu campanário, o jardim da praça, o prédio do hotel e outras construções de maior envergadura. Divisava-se dali, mais além da cidade, a belíssima paisagem do vale do Catingueiro , povoado então apenas por imensas plantações de eucaliptos — entremeadas pelo que sobrara dos cerrados — quase sempre recobertas de fumaça na época seca do ano, o que lhes dava, de longe, forte coloração azul.

Era de lá, dessa janela, que a velhinha, recurvada pela idade, quase debruçada sobre o parapeito, ficava espiando, a maior parte do tempo, com os olhos fundos semicerrados, ora o portão também de bambu, ora a rua, por onde deveria chegar a qualquer momento seu marido, o "seu" Candinho. Chamo-a velhinha, mas tenho a impressão de que não era tão velha assim. Seus cabelos brancos e quebrados, a tez queimada e sulcada de rugas, os olhos quase mortos no rosto chupado, eram, com certeza, resultado da vida dura e pobre que tivera até ali e dos quase 50 anos de convivência difícil e infeliz com seu marido.

Sua vida de casada, salvo efêmero período após o casamento, tinha e tem sido, como a da maioria das mulheres pobres deste país, trabalho e dedicação ao lar e à família em tempo integral, acompanhados de sonhos nunca alcançados e muita, muita solidão, solidão mesmo, em todos os sentidos da palavra. Não obstante isso, Dona Sebastiana (esse era o nome da velhinha), que a tudo suportara com muito heroísmo e bravura, ainda queria bem a seu marido. Jamais lhe passara pela cabeça a idéia de uma separação, a não ser pela morte, coisa que teimava em não pensar, nem admitir.

***

A história que lhe vou contar, leitor, passou-se num dia de junho de muito tempo atrás, mês de bastante frio, sobretudo na parte da manhã, por causa do vento sul que ainda sopra insistente nessa época do ano naquelas paragens.

Sem dúvida igual a todos os outros de sua vida, esse dia, porém, era muito especial para Dona Sebastiana, como se verá adiante.

Depois de fazer o café, um café ralo feito chá, já que o pó, por economia, era usado duas ou três vezes, — que ironia!, isso na terra do café! — Dona Sebastiana começou a lavar o chão cimentado da cozinha. Era trabalho duro fazer faxina nessa casa! Sem água encanada, o jeito era trazê-la da cisterna que seu finado filho construíra no pequeno quintal.

O irritante barulho da vassoura esfregando o cimento esburacado do chão não conseguia encobrir o estrepitoso ronco de "seu" Candinho, que curtia a “cachaça” da noite anterior. Terminado o serviço, dando uma olhadinha para o outro cômodo para ver se o beberrão havia acordado, foi cuidar de suas hortaliças plantadas à beira do muro de bambu, ao fundo do terreno.

—Ah!, se Candinho trabalhasse! — suspirou ela, empunhando um maço de couve que acabara de colher para o almoço. Apanhou um balde d água do poço e, meio capengando, tonta, por ter ficado algum tempo de cócoras limpando as hortaliças folha por folha, dirigiu-se para a cozinha. "Seu" Candinho havia se levantado e estava a remexer nas panelas sobre o fogão, com as mãos trêmulas, bocejando. Dona Sebastiana, ao vê-lo, estancou ao pé da porta.

—Que é que tá fuçando aí? — Perguntou-lhe por perguntar.

—A bóia que eu vou comer no almoço — respondeu ele, espreguiçando-se.

—Ah!, é!? E você trouxe alguma coisa pra botar nas panelas? — respondeu ela quase que agressivamente.

—E o moço da Conferência não passou por aqui?

—Não é dia; semana que vem. E você não tem nada que ficar aguardando pela Conferência. — continuou ela, agora bastante irritada — Devia era de trabalhar, isso sim; coisa que há mais de 20 anos você não faz. Se não fosse a Conferência, já teríamos morrido de fome! A única coisa que traz para casa é cachaça, da qual não se esquece nunca. Não sei como consegue dinheiro para isso. Cachaça custa caro!

"Seu" Candinho calou. Sabia que era verdade. Desde que o único filho do casal, Deodato, morrera na Revolução Paulista de 32, ele, por desgosto ou malandragem, talvez menos por desgosto que malandragem, nunca mais arranjara serviço. A velha, lavando roupa para fora, obtinha algum recurso para as despesas da casa. Nos últimos tempos, porém, o cansaço e uma enjoada dor nas costas impediam-na de trabalhar. Alguns dias de fome, mas depois a Conferência de São Vicente de Paula —benemérita organização de assistência social, mantida pela população e que fora trazida à cidade pelo legendário e injustiçado holandês, Padre Geraldo Troussel — passou a deixar em sua casa, uma vez por mês, uma cesta básica de mantimentos. Essa era a única visita que Dona Sebastiana recebia desde algum tempo. A despeito de ser muito querida, sua vizinhança se esquivava de visitá-la dado o gênio pouco cordial de "seu" Candinho.

—Vou para a cidade.

—Sabe que dia é hoje, meu velho? — perguntou, agora bem mais mansa do que antes.

—Não quero nem saber — respondeu Candinho rispidamente e, batendo a porta com violência, escapou para a rua.

Era o dia das bodas de ouro do casal. Nesse dia, cinqüenta anos atrás casara-se com ele na mesma igreja, cujo relógio ela agora ouvia bater 11h da manhã. Uma gota de lágrima escorreu-lhe pela face, umedecendo aqueles olhos murchos e, com toda razão, cheios de tristeza.

Sentindo uma pontada no peito, Dona Sebastiana colocou o balde d água sobre o fogão, jogou a couve dentro dele e foi debruçar-se na janela do quarto. Lá ia ele descendo a rua, apressado, tropeçando nas pedras.

Aquele dia, pelo menos aquele dia, ela queria passar com ele, com "seu" Candinho, com seu “velho”! O lado romântico da velha senhora suplantara o prático, menos poético e mais vingativo. Sonhara, pois, jantar juntos, pela primeira vez em muitos meses. Tinha até planejado como iria conseguir alguma coisa para preparar o jantar, além da indefectível sopa de legumes.

Absorta nesses pensamentos, observava o marido, já longe, descendo a ladeira, em passos trôpegos, cujo único destino seria perambular pelas ruas da cidade, em busca de bebida.

—Hoje ele vai voltar cedo, tenho certeza! Não vai se esquecer do aniversário de nosso casamento! — suspirou ela. Erguendo a cabeça, fixou os olhos num mastro de Santo Antonio (1), que tremulava pelo vento no quintal do vizinho, com as laranjas espetadas já meio comidas pelos sabiás e sanhaços. Permaneceu algum tempo nessa posição, depois afastou-se da janela, murmurando esperançosa: "Ele vem cedo, ele vem cedo!"

***

Horas e horas se passaram. Quem voltava do cinema podia ver na janela escura o vulto magro de Dona Sebastiana. Já eram mais de 10h da noite. Desde as 6h da tarde estava ali plantada. A mesa posta a partir das 5h, tal a convicção de que ele voltaria cedo naquele dia! Mas as horas corriam, voavam... O relógio da Igreja Matriz, implacável e dolorosamente, ia aumentando o número das badaladas. Que soavam cada vez mais fortemente... e nada de Candinho!

A comida, a essa altura gelada, não mais exalava aquele cheirinho gostoso das 5h da tarde. Mas a velha não desanimava, apesar de os cotovelos estarem doendo muito. De quando em quando apertava o estômago como para diminuir a fome que sentia. A cada minuto que passava, menos fome e mais raiva. Seus olhos sempre fitos na rua escura e o rosto mais e mais gelado pelo frio da noite de junho. Cada vez mais raiva e menos fome! Às vezes o coração lhe batia sofregamente quando algum vulto, vagarosamente e cambaleante, surgia lá embaixo, no início da ladeira.

Uma hora da madrugada! Dona Sebastiana, já bastante cansada, sem mais esperanças, vendo que seu sonho havia sido apenas mais um sonho, deu uma última olhada para a figura de Santo Antonio presa no mastro do quintal do vizinho, no qual uma coruja, como que por ironia, acabara de pousar, fechou a janela, trancou a porta e foi deitar-se.

Os pensamentos que assaltaram a velhinha, sob as cobertas, eu não vou contar, leitor, por absoluta desnecessidade. Devia ser duas e meia da manhã e Dona Sebastiana ainda não conseguira dormir. O rancor ao marido atormentava-a, chegando às raias do ódio, e dor aguda pungia-lhe o peito.

De repente, ouviu barulho no portão de bambu que se abria. Passos. Sentiu o instante em que a maçaneta da porta da frente rangeu, uma, duas, várias vezes. "Seu" Candinho deu a volta em direção à porta dos fundos, tropeçando num balde vazio; resmungou qualquer coisa, espantando um gato da vizinha que mexia no lixo. A maçaneta da porta da cozinha fez barulho, mas também estava fechada.

—Bastiana! Bastiana!

Ela se encolheu sob o velho cobertor.

—Bastiana, abra a porta, pô! — insistiu Candinho.

Não adiantava bater, nem mesmo esmurrar a porta. Barulho algum se ouvia lá dentro. Candinho, completamente embriagado, começou a sentir frio. O termômetro devia estar marcando cerca de 7 graus. Suas pernas, bambas pelo álcool, tremiam também de frio.

—Abra a porta, Bastiana. Nunca mais voltarei tarde, juro!

A não ser o vento gelado que fustigava as folhas das árvores, o silêncio era total. Candinho ficou do lado de fora resmungando, rogando, choramingando, implorando para que Dona Sebastiana abrisse a porta.

Mas qual! Dona Sebastiana, encolhida na cama, ouvia indiferente todas as lamúrias de seu marido bêbado. Sentia-se quase que vingada por aquela e por todas as noites de calor ou de frio que passara sozinha, enquanto ele se afogava na cachaça pelas ruas da cidade. Sim, sentia-se quase que vingada.

—Abra a porta, Bastianinha, por favor! Perdoa, eu juro!

"Que nada!", pensava ela. "Amanhã ele fará a mesma coisa. Voltará às mesmas horas. Não se lembrará do nosso casamento, não se lembrará de mim, não se lembrará de... não!"

—Se não abrir, você vai ver, eu vou me jogar na cisterna. Sim, na cisterna, na cisterna!

Dona Sebastiana levantou a cabeça do travesseiro, atenta e meio preocupada. Ficou aguardando, ouvindo o velho bêbado choramingar lá fora.

—Vou me jogar na cisterna; você não acredita? Adeus, Bastiana velha!

Ela ouviu barulho de passos se afastando da porta e logo depois, um ruído surdo, como se alguém tivesse caído no fundo da cisterna do quintal.

Dona Sebastiana deu um salto da cama em direção à porta da cozinha, esquecendo-se inclusive de calçar os chinelos, abriu a porta e lançou-se correndo, apavorada, rumo à cisterna.

Nesse exato instante, Candinho, que estava agachado e escondido, bem colado à parede junto à porta, entrou rapidamente na cozinha da casa e fechou a porta por dentro, trancando-a muito bem, à chave e à tramela.

...lá fora, apenas o vento frio da madrugada de junho, os soluços de Dona Sebastiana e uma enorme pedra no fundo da cisterna.


Adelay Bonolo

(*) História recolhida em Altinópolis, interior do Estado de São Paulo, ali contada como verídica.

(1) No interior do Estado de São Paulo e no de Minas Gerais, nos meses de junho e julho, costuma-se expor uma estampa de São João ou São Pedro na ponta de uma vara comprida (bambu), com laranjas espetadas nas beiradas. Não as vi em outro lugar.







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