INOCÊNCIA
Rafaela era uma jovem adolescente de classe média-baixa. Seus pais não viviam na pobreza; entretanto, possuíam uma modesta residência na área suburbana da cidade, onde a lei quase sempre é dita pelo crime organizado. Não obstante aquela situação de insegurança em meio à criminalidade, a menina não se contaminara e levava uma vida decente. Aliás, a mãe era a responsável pela conduta irrepreensível da filha.
O destino porém veio mudar tudo isso. Num acidente banal a mãe perdeu a vida. E a filha então se vi órfã de mãe. Havia o pai certamente; contudo, ele trabalhava o dia todo e não podia auxiliar a filha. Esta era a mulher da casa agora. Ao retornar da escola, tinha que arrumar a casa, preparar a comida, lavar e passar. O serviço não era muito. Quase sempre ela realizava as tarefas em tempo suficiente para se divertir depois.
O que porém deixava a menina perdida era a falta de alguém para lhe indicar o certo e errado, alguém para lhe impor limites. Durante todo o tempo, a mãe esteve presente dizendo: “filha não faça isso”, “não faça aquilo”, “isso não é coisa que uma menina de família deva fazer”. E agora ela já não tinha mais a mãe para tal. Assim, Rafaela ficava sem saber como reagir diante de situações novas, antes nunca experimentadas.
Além disso, por ser uma jovem de boa aparência, era cobiçada pelos rapazes do bairro. Não só pelos jovens de sua idade, como também por homens mais velhos, que viam nela uma menina ingênua -- uma presa fácil, diga-se de passagem.
E não tardou para que se tornasse alvo de assédios.
No início foram os garotos da vizinhança. Um dos mais insistentes foi um rapaz chamado Luis Carlos, que chegara a abordar quando a mãe ainda estava viva. Era um garoto pouco mais velho que Rafaela, de boa aparência, rosto comprido, cabelos lisos e escuros, olhos negros e nariz e boca bem definidos. Do tipo extrovertido e brincalhão, gostava de contar vantagem e se achar o príncipe da rua. Todavia, nunca tentou nada mais sério com a menina, por causa da mãe. Agora o caminho estava livre. Tinha esperança de acrescentar a menina na sua lista de conquistas. Mas não acabou dando sorte, pois a menina não lhe deu muita bola. Ela o achava bonito, como todas as meninas da rua, mas não sentia nada por ele; aliás sabia de sua fama de conquistador. Não era esse tipo de homem que ela queria ter como namorado.
Outros garotos acabaram se interessando por ela, mas muitos deles eram seus amigos e ela não nutria por eles nada mais que a pura e simples amizade, aquele sentimento de coleguismo, comum em pessoas que convivem juntos todos os dias desde criança. Portanto não seriam esses, seus amigos, que lhe arrebatariam o coração.
Na verdade, Rafaela gostava mesmo era de um rapaz da igreja. E um de seus prazeres em freqüentar o culto era justamente para vê-lo. Não havia trocado palavras com ele; e o pouco que sabia era que se chamava Dagoberto e estava comprometido com a filha de um dos obreiros. Chegara a vê-los juntos em diversas oportunidades. E isso a fazia ficar irritada e com ciúmes. Não sabia o que ele havia visto naquela garota, pois Rafaela se achava bem mais bonita que ela. Apesar de saber que o rapaz era comprometido e provavelmente jamais seria dela, mesmo assim o amava. No fundo de seu coração havia uma pequenina esperança de que o rapaz, por algum motivo, rompesse o relacionamento com a namorada e lhe desse uma chance. Aliás, dizia para si mesma que ela não seria a causa desse rompimento. Se estivesse nos desígnios de Deus ficarem juntos, eles ficariam, caso contrário, não adiantaria ela fazer nada, pois o que Deus não quer o homem não consegue. Assim pensava ela.
Certo dia apareceu na porta de Rafaela um rapaz de aproximadamente vinte e cinco a trinta anos. Não era alguém de fora ou desconhecido da vizinhança. Aliás, era uma das pessoas mais conhecidas no bairro; pois tratava-se nada mais nada menos do que o chefe do tráfico daquela região. Era um rapaz até de boa aparência. Sempre andava bem vestido e coberto de jóias, como se quisesse mostrar para os jovens que o crime compensa. Amiúde, ouvia-se falar dele e de seus crimes. Sabia-se que era um homem destemido e impiedoso. Mandava executar sem dó os rivais, os que lhe deviam e não pagavam, e todos aqueles que lhe criavam empecilhos para atingir seus objetivos. Poucos sabiam seu verdadeiro nome, pois era conhecido tão somente como “ratinho”, devido à aparência frágil e a facilidade com que escapava da polícia. Comentava-se que a polícia jamais tinha conseguido por as mãos nele.
Seduzir aquela menina foi como roubar cego. De início, ele presenteou a menina com um colar de ouro; depois, levou-lhe um pequeno anel de brilhantes, roupas de marcas famosas, daquelas com as quais todas as meninas de sua idade sonhavam, mas jamais ela poderia vestir. E assim, em poucas visitas, Rafaela ficou encantada pelo rapaz. Não tanto por ele, mais pelos presentes que lhe dava.
A vizinhança logo se deu conta dos fatos. Pouco a pouco a notícia se espalhou. Poucos porém tentaram fazer alguma coisa para impedir que a menina caísse nas garras daquele bandido. Na verdade, foram: uma colega de escola, que a alertou para tomar cuidado, pois aquele rapaz não prestava; a vizinha da casa ao lado, que a pediu para se afastar o mais rápido possível daquele rapaz, pois ele ia lhe fazer muito mal; e uma outra mulher, moradora da rua de trás, cuja filha de treze anos desaparecera após tentar romper um envolvimento de três meses com o rapaz. A menina contudo não deu a mínima aos conselhos das amigas e continuou a se encontrar com o traficante.
O pai não podia fazer nada. Primeiro, porque estava trabalhando todo o dia e só estava em casa à noite; e segundo, porque não sabia o que estava acontecendo com a filha. Apesar dos vizinhos saberem de tudo, ninguém se arriscava a lhe informar; pois era do conhecimento de todos que se o pai tentasse impedir o rapaz de ver a filha, não só ele pagaria como também aqueles que soltaram a língua. E onde impera o medo, o silêncio reina. Não obstante, os vizinhos passaram a fazer vistas grossas à presença daquele mau elemento diante da casa da menina, mesmo sabendo que Rafaela era uma menina ingênua e indefesa, uma criança que não tinha maldade em seu coração.
Quantas e quantas vezes algum parente mais próximo ou um vizinho mais íntimo alertou a mãe para que não protegesse demasiadamente a filha. A menina raramente saía de casa, e quando isso acontecia, era acompanhada da mãe. A própria mãe, ao ser questionada sobre o excesso de proteção à filha, alegava que quando ela fosse maior lhe mostraria como era realmente o mundo lá fora; contudo, isso nunca chegou a acontecer.
Na primeira vez em que o rapaz apareceu diante da casa da menina, Rafaela não lhe deu muita atenção; no entanto, após alguma insistência, ela acabou por ir ver o que ele queria.
-- Eu só vim trazer um presente para você, nada mais – disse o rapaz.
-- Eu não quero presente seu.
Mas ele era esperto demais e sabia como fazer para que a menina aceitasse o presente. Naquele dia ficaram conversando no portão de casa. No dia seguinte ele apareceu novamente e a menina concordou em entrar no carro do rapaz. No terceiro dia, a menina o convidou para entrar em sua casa. E daquele momento em diante, toda a vizinhança se deu conta de que aquela adolescente de pouco mais de quinze anos era propriedade exclusiva daquele traficante. E desde então passaram a chamá-la de “A menina do Rato”.
A primeira conseqüência da entrada daquele rapaz na vida da menina foi o afastamento de todos os pretendentes e amigos. Pouco a pouco as pessoas foram se afastando, como se Rafaela tornasse, de um momento para outro, uma pessoa indesejada, alguém portando uma enfermidade contagiosa, mortal e incurável. Tudo não passava porém de medo.
De início o rapaz a tratava com delicadeza. Era gentil e prestativo. E quando tentava um ato de ousadia e a menina protestava, ele recuava. Contudo, ele a queria. Na verdade, ela era sua; não havia a menor sombra de dúvida quanto a isso. E se até então ainda não havia feito com ela o que bem queria, não era porque ela se negara, mas tão somente porque ele estava se divertindo com aquilo. Aquele jogo na realidade o excitava e lhe provocava grande deleite. Mas havia chegado o momento de pegar o que era seu de direito.
E foi numa tarde de quinta-feira.
“Rato” chegou pouco depois do almoço. A menina estava varrendo a casa. Ele adentrou e foi logo dizendo:
-- Comprei um presente para você. Olhe! – disse ele, arrancando do bolso um par de brincos.
Rafaela correu em sua direção, pulou nos seus braços e deu-lhe um beijo. Depois tomou o presente em suas mãos e agradeceu. Seus olhos brilhavam diante da beleza daquela jóia. Eram lindos. E ela não teve dúvida. Correu ao espelho do banheiro e retirou os velhos e pequenos brincos de suas orelhas e os substituiu pelos novos. Virou e mostrou para o rapaz, que a seguira até o banheiro. Depois, beijou-o novamente. E enquanto se beijavam, a mão do rapaz escorregou por sobre a mini-blusa e apalpou-lhe o seio. Rafaela não protestou dessa vez.
-- Vem comigo, minha franguinha! Quero te levar a um lugar especial – convidou ele
-- Assim? Com essa roupa? Não é melhor eu me vestir melhor? – Quis saber ela. Rafaela, vestia uma mini-blusa bem curta e ajustada, deixando o umbigo a mostra; vestia também um shortinho e calçava chinelas havaianas. Não estava assim tão mal vestida; pelo contrário, aquela roupa curta e justa a deixava por demais sexy.
-- Não. Quero você assim mesmo.
Rafaela não teve dúvida. Esqueceu a vassoura num canto e deixou a varrição sem terminar. Entrou no carro do rapaz e partiram.
Seguiram por alguns quarteirões de carro e pararam diante de um sobrado. Era um sobrado grande, sem vizinhos tanto no lote da esquerda quanto no da direita, cercado por um muro alto. Ao pararem o carro, um portão de alumínio abriu automaticamente e eles entraram na casa.
Naquele ambiente de luxo e beleza, naquela casa tão bonita que Rafaela jamais tinha visto outra igual, ela conheceu o outro lado daquele rapaz. Após se deslumbrar com tantas coisas bonitas, com a maciez do sofá da sala, com o tamanho da TV de 42 polegadas, com a delicadeza das cortinas, e com o balançar da grande cama de colchão d’água, ela viu que tudo tinha seu preço. E descobriu que as jóias e as roupas de marcas famosas lhe dadas sem motivo aparente precisavam ser recompensadas. E a recompensa lhe custaria muito mais do que sua inocência seria capaz de imaginar. Uma inocência que não foi capaz de perceber a má intenção do rapaz ao levá-la até aquela casa. Nem mesmo quando ele a levou até o quarto para mostrar a cama de colchão d’água, não passou pela cabeça da menina que algo lhe pudesse acontecer.
-- Tire o chinelo e deite aí. Veja o quanto ela é macia – disse o rapaz, desabotoando a camisa.
-- Mas não vai sujar esse lençol tão branquinho? – perguntou ela. – Meus pés estão sujos de poeira.
-- Não faz mal. Depois eu mando lavar
A menina subiu na cama. Em seguida, “Ratinho”, em mangas de camisa, deitou ao seu lado. E então rolou para cima de sua mais nova aquisição. Estava disposto a manchar o lençol com o que de mais caro Rafaela tinha para oferecer. Era naquele momento, e nada o impediria de levar seu plano até o fim, até as últimas conseqüências. Não queria mais saber de brincadeiras. Já não achava mais graça nas negativas da menina. Ela era sua, então por que esperar mais? Não, ele não queria esperar mais.
Quando ele rolou para cima dela e suspendeu a mini-blusa, ela protestou. Foi inútil. Ele não lhe deu ouvidos. Rafaela ainda tentou se desvencilhar do rapaz, mas ele era mais forte e hábil. Aliás, ele já esperava por isso. De forma que sabia como agir nesses casos. Tinha experiência. Rafaela era só mais uma entre tantas a manchar o branco lençol daquela cama. Na verdade, ele até sentia mais prazer quando suas vítimas lutavam até o último momento.
E Rafaela foi uma heroína. Nenhuma garota até então tinha dado tanto trabalho aquele rapaz. Ele teve que usar de muita violência para dobrar a menina. E de nada adiantou as lágrimas e os gritos para que ele não lhe fizesse aquilo. Ele foi até o fim.
Por mais de uma hora, Rafaela ficou estirada na cama com o corpo e a alma dilacerados. Por muito tempo ela ficou seminua, encolhida e em posição fetal sobre o lençol marcado de vermelho. Era como se ela tivesse morrido por dentro, tamanho o vazio em seu peito. Ah, como a dor da vergonha a fazia se sentir tão pequenina! “Por que não ouvi minhas amigas!”, interrogou-se ela em dado momento.
Ratinho, por sua vez, agiu como das outras vezes: após saciar seus instintos, levantou-se e foi comer, deixando a menina sozinha com sua dor. Após algum tempo, retornou ao quarto e mandou a menina ir se lavar e se vestir.
Antes de a deixar na porta de casa, fez-lhe mais uma recomendação:
-- Nem um pio com ninguém sobre o que aconteceu, senão você sabe o que pode lhe acontecer, minha franguinha!
Rafaela desceu do carro e correu para seu quarto.
Chorou.Chorou muito. Chorou até as lágrimas secarem. Era uma menina decente e pura. O que o seu pai ia pensar quando soubesse que a filha não era mais virgem e se tornara uma sem vergonha? E quando ele soubesse que ela se tornara mulher de um traficante? Certamente ele morreria de desgosto. Isso ficou remoendo em sua cabeça por muito tempo naquele final de tarde. E quanto mais ela pensava na vergonha, nos olhares a que seu pai estaria exposto, mais ela se sentia culpada.
Ela não podia deixar que seu pai passasse por toda aquela humilhação. Ele não merecia a filha que tinha. Era o que ela ponderava deitada em sua cama, com as roupas ainda rasgadas. E ela não via saída, não sabia como contornar aquela situação. Era ainda uma menina sem experiência alguma de como a vida, às vezes, é cruel. E essa falta de experiência, ante as adversidades da vida, deixava-a perdida e confusa. Se pelo menos a mãe a tivesse ensinado alguma coisa? Mas não. Agora a mãe não estava ali para lhe dizer o que fazer. E então ela sentiu muita falta da mãe; falta como jamais tinha sentido desde que a mãe partira. Rafaela, no meio de seu choro, de sua dor, chamou pela mãe. Pediu para a mãe ajuda-la. Mas a mãe estava morta. Não podia fazer nada. Assim, Rafaela sentiu-se como se o mundo lhe tivesse virado as costas. Foi uma solidão indescritível. Algo que somente ela era capaz de saber.
Não podia deixar seu pai carregar o fardo da vergonha, da humilhação perante a comunidade em que passara grande parte de sua vida. Não podia deixar a honra e a cupidez de seu querido pai ser manchada pela própria filha. Filha que ele amava e fazia o possível para que tivesse um futuro decente; filha que jogara tudo para o alto. Então ela tomou a resolução mais difícil de sua vida. Trancou-se dentro de casa, foi até a cozinha, pegou uma faca e cortou os pulsos.
Quando seu pai chegou no final da noite, encontrou a filha semimorta no centro de uma poça de sangue. Com a ajuda dos vizinhos socorreu a filha, mas esta não resistiu. Faleceu no início da madrugada.
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