Introdução
A Lígia convidou-me para dizer algumas palavras em homenagem às mães. Perguntei: por quê eu Lígia? Ah, porque você escreve.
Recentemente li um livro chamado “Métodos”, de Francis Ponge, poeta francês do século passado. Nele consta a transcrição de uma conferência feita em Bruxelas, em 1947, intitulada “Tentativa Oral”. Nessa conferência, o escritor se perguntava porque pedir a um escritor que falasse em público. Por quê não propunham isso a um marceneiro, por exemplo, ou a um ourives, ou a um químico de laboratório? Ou a um contador?, diria eu. Ocorre que com os escritores se é bem mais exigente. Deles, pede-se que tenham idéias. Ele não estava dizendo contudo, que um ourives, ou um marceneiro não podiam ter idéias, como qualquer homem tem, é evidente, mas enfim, que lhes era permitido ter as idéias de todo mundo, do tipo, por exemplo, daquelas que se encontram nos jornais. Idéias assim ele apresentava, discutia, elaborava quase que cotidianamente com os marceneiros, com os ourives, com os trabalhadores do seu bairro. Disse ele que, em todo caso, não cairia no ridículo de expor ali coisas a respeito das quais qualquer marceneiro, qualquer ourives podia lhe dar lições. A esses artesãos não se pedia, em suma, senão que fizessem belos móveis ou belas jóias. Quanto aos escritores, sem sombra de dúvida, o que lhe pedem são idéias, e eles próprios pedem isso de si, eles se cobram. Por quê? Sem dúvida porque fazem seus escritos com palavras, e as palavras, os arranjos de palavras, tudo isso se transforma em idéias com mais facilidade do que os pedaços de madeira ou as peças de metal empregados para fazer móveis ou jóias.
Portanto, vou tentar cumprir com o que vocês esperam de mim. Vou tentar transmitir uma idéia sobre o que é ser mãe. Talvez , pensarão, alguns de vocês, que uma mãe, poderia melhor transmitir essa idéia. Acredito que sim. Mas, quem sabe, eu possa passar uma outra visão para vocês.
Antes, um lembrete. As idéias, um texto, uma manifestação oral não surgem do nada. Segundo Sêneca, isso surge daquele que soube ler e montar o que leu. Hugo de São Vítor diz que colhemos frases na leitura como se fossem frutos dulcíssimos e as ruminamos na reflexão. Borges dizia, escrevo com o que sou: o que já vivi, o que já li, o que já escrevi antes; escrever é sempre escrever de novo.
Assim, o que vou lhes falar sobre as mães, é uma montagem, algumas coisas que li, outras que vivi e algumas reflexões.
Homenagem às mães
Em novembro de 2001, trouxe de Londres para minha esposa Marlei, que estava grávida à época, um pequeno livro de nome “A Child is born”, ou, “Nasce uma criança”. É um livrinho que contém a reprodução de vários quadros de artistas famosos como Botticelli, Leonardo da Vinci e Pablo Picasso, retratando a mãe com o seu filho. Além disso, contém poemas de escritoras famosas como Emily Dickinson, Silvia Plath e George Eliot. sobre o tema. No texto introdutório, uma frase: para cada criança que nasce, nasce também uma mãe.
Dia 25 de abril, tive a oportunidade de presenciar dois nascimentos: o nascimento de meu filho Luca e o nascimento de sua mãe. Sim , faz todo o sentido dizer que uma mãe estava nascendo, porque o nascimento de um filho traz junto uma nova mulher, em todos os sentidos, seja no plano físico seja no psicológico.
O corpo da mulher, desde a fecundação, vai se moldando, se modificando, acompanhando o crescimento do embrião que pulsa dentro dele. A mulher tem que adaptar seu caminhar, a coluna sofre pressões, os músculos da barriga sentem-se sobrecarregados com o peso da nova vida que está crescendo no interior do corpo. Os seios já estão se preparando para sua nova função, de servir de fonte de alimento para o recém-nascido.
O seio é sobretudo símbolo de maternidade, de suavidade, de segurança, de recursos, ligado à fecundidade e ao leite, o primeiro alimento. O leite é símbolo da abundância e da fertilidade. Alberto Manguel, no seu livro “Lendo Imagens”, diz “mas o leite não é apenas alimento; é o dom da própria vida, ofertado pela mãe ao filho, de modo que ele possa crescer e tornar-se homem”. Muitos dos quadros mostrados no livrinho “Nasce uma criança” mostram a mãe amamentando o seu bebê. Os bebês ao colo da mãe, junto ao seu seio, irradiam serenidade, segurança e satisfação. A mãe, protetora e provedora, transborda de ternura. É de longa data essa atracão dos pintores e escultores pelo tema mãe amamentando filho. Percorrendo os museus de cidades da Itália, de Londres, de Paris e de Madri, podemos observar isso. As imagens de Nossa Senhora amamentando o menino Jesus são abundantes. Alberto Manguel, nesse mesmo livro “Lendo Imagens”, nos lembra que “um eco dessa ‘bebida amorosa’ persiste hoje no vinho alemão conhecido como Liebfraumilch, ou ‘leite de Nossa Senhora’, muitas vezes associado a uma lenda muito anterior que ilustrava a virtude romana da caridade. Em seu ‘Fatos e anedotas memoráveis’, o historiador romano do século I Valerius Maximus conta a historia de Pero, uma mulher virtuosa cujo pai idoso, Cimo, foi injustamente mandado para a prisão, onde foi condenado a morrer de fome. Ela o manteve vivo lhe dando o seio, como se fosse seu filho, e essa imagem da mulher adulta amamentando um homem mais velho tornou-se um lugar comum na arte medieval e renascentista”.
Rainer Maria Rilke, numa passagem do seu livro “Diário de Florença”, escreve que “as mães são como os artistas. O artista busca encontrar-se a si mesmo. A mulher realiza-se na criança. E aquilo que o artista luta para arrancar de si mesmo, pedaço por pedaço, a mulher liberta do seu ventre como um mundo pleno de forcas e possibilidades. Nesse momento, a mulher não chegou à meta e não pode dar a própria vida à criança. Porque é então que começa o seu caminho em direção à criança. Ao tornar-se mãe, a mulher que é artista não precisa mais criar. Ela realizou o seu objetivo, e a partir de então pode viver a arte no sentido mais profundo. Por esse motivo a mulher é tão mais rica, pois ela efetivamente alcança a realização que o artista somente atinge após um processo de amadurecimento. Eis porque ela pode representar para o criador o papel de uma profetiza que, imbuída de seu amor, lhe descreve o esplendor da meta. O caminho da mulher sempre conduz à criança, antes da maternidade e também depois. De acordo com a concepção que tem a respeito de si própria, ela extrai a meta das profundezas do seu ser, e a coloca no centro da vida. Porque o seu trajeto está destinado a produzir a vida”.
Com o nascimento do filho, a mulher não se sente mais só. Ela tem uma prazerosa mas gigantesca tarefa a cumprir, uma vida a proteger; uma mãozinha a segurar perante os perigos da vida. A criança precisa da mãe, dos seus cuidados, do seu carinho, do seu amor.
Essa necessidade da criança encontramos descrita numa belíssima passagem de Marcel Proust, no primeiro volume do romance “Em busca do tempo perdido” , onde descreveu a lembrança dele, menino: “Quando subia para me deitar, meu único consolo era que mamãe viria beijar-me na cama. Mas tão pouco durava aquilo, tão depressa descia ela, que o momento em que a ouvia subir a escada e quando passava pelo corredor de porta dupla o leve frêmito de seu vestido de jardim, de musselina branca, com pequenos festões de palha trançada, era para mim um momento doloroso. Anunciava aquele que viria depois, em que ela me deixaria, voltando para baixo. Assim, aquela despedida de que tanto gostava chegava eu a desejar que viesse o mais tarde possível, para que se prolongasse o tempo de espera em que mamãe ainda não aparecia. Às vezes, quando depois de me haver beijado, abria a porta para partir, desejava dizer-lhe ‘beija-me ainda outra vez’, mas sabia que logo seu rosto assumiria um ar de zanga, pois a concessão que fazia à minha tristeza e inquietude, subindo-me para levar-me aquele beijo de paz, irritava a meu pai, que achava esses ritos absurdos, e ela, que tanto desejava fazer-me perder a necessidade e o hábito daquilo, longe estava de deixar-me adquirir o novo costume de pedir-lhe, quando já se achava com o pé no limiar da porta, um beijo a mais. E vê-la incomodada destruía toda a calma que me trouxera um momento antes, quando havia inclinado sobre o meu leito sua face amorável, oferecendo-a como uma hóstia para uma comunhão de paz, em que meus lábios saboreariam sua presença real e ganhariam a possibilidade de dormir”.
A afeição e a dedicação que a mãe tem pelos seus filhos é sublime. O romance “Memórias de Duas Jovens Esposas”, de Honoré de Balzac, está repleto de demonstrações dessa natureza. Selecionei uma para ilustrar: “Cortar miudinho a costeleta de Naís, cujos últimos dentes estão saindo, e misturar essa carne bem cozida, com batatas, é uma obra de paciência e verdadeiramente só uma mãe pode saber em certos casos, fazer com que uma criança, que se impacienta, coma toda a sua refeição. Nem numerosas criadas nem uma ama inglesa podem, pois, dispensar uma mãe de comparecer ao campo de batalha, onde a meiguice deve lutar contra os pequenos aborrecimentos da infância, contra as suas dores. Olha, Luísa, devemos cuidar desses queridos inocentes com nossa própria alma; não devemos acreditar senão nos nossos próprios olhos, senão no testemunho de nossas mãos para a ‘toilette’, para a alimentação e para o deitar”.
As crianças crescem, tornam-se adolescentes. Além do carinho e do amor, é hora da amizade, dos conselhos, da ajuda escolar, da troca de confidências. Embora nem sempre os filhos estão dispostos a ouvir conselhos, a trocar confidências, a mãe, aos poucos, com jeitinho, com segurança, vai transmitindo sua experiência de vida a eles, para que eles possam participar saudável e honestamente da sociedade. Michel de Montaigne, em seu ensaio “Da afeição dos pais pelos filhos” ressalta essa amizade: “entre vossas outras boas qualidades (da senhora de Estissac), a amizade que tendes mostrado por vossos filhos ocupa um dos primeiros lugares”.
Os filhos ficam grandes, viram adultos, e as mães continuam a zelar pelo bem deles, mesmo quando distantes. Um telefonema, uma carta, uma visita, tudo é motivo de grande alegria. Vêm os filhos dos filhos e as mães, agora avós, ampliam o seu papel: são agora grandes mães, matriarcas. No romance “Cem anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Márquez, vemos retratada essa grande mãe, mulher forte, a personagem Úrsula Buendía, que controla toda sua grande família com muito empenho.
Mas a vida segue seu fluxo inexorável. E chega um momento em que a mãe nos deixa. “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’”. Assim começa o romance “O estrangeiro”, de Albert Camus. O livro é polêmico. Mersault recebe a notícia da morte de sua mãe com indiferença. Mais tarde, quando ele será julgado por um assassinato, isso será considerado contra ele. Os investigadores descobririam que ele ‘dera provas de insensibilidade’ no dia do enterro da sua mãe. Ele não chorara.
Mas isso é exceção. Quando nossa mãe se vai, a sensação é de um vazio infinito, parece que o chão sumiu debaixo de nossos pés, perdemos nosso ponto de apoio, nossas referências. Parece que não temos mais a quem contar nossos sucessos ou fracassos, a quem dar satisfações de nossa vida.
Tudo isso eu senti quando minha mãe morreu, em dezembro de 2000. Apesar de já morar em Brasília, longe da minha mãe, há 23 anos (embora eu fizesse visitas regulares, uma ou duas vezes por ano), o impacto foi grande. Mas a força que ela transmitia aos seus filhos foi motivo de alento para continuar a vida. Em algumas ocasiões, entretanto, a tristeza volta. Como agora, em que eu gostaria tanto de comunicar a ela que nasceu meu filho, mais um neto seu, mas não posso. Como foi no meu aniversario no ano passado, em 2001, em que eu recebi vários telefonemas de felicitações, mas que pela primeira vez, não receberia o telefonema da minha mãe. Cheguei a escrever um conto, no dia (no conto eu posso fantasiar), em que ela, mesmo morta, ligava para me dar os parabéns. Contei essa história para um colega do Conselho Fiscal da PREVI, que está com a sua mãe doente, que queria saber como eu me sentia em relação a minha mãe e ele ficou muito emocionado.
Em outubro do ano passado, encontrei numa livraria o livro “O livro da minha mãe”, de Albert Cohen. As chamadas na orelha do livro e na capa de trás me atraíram: “É absolutamente necessário ler este depoimento extraordinário de um filho. Antes de Albert Cohen, nenhum escritor havia falado de sua mãe no tom que ele fala da sua”; “Livro de um filho, este é um livro de todos os filhos. Esta obra perturbadora é a evocação de uma mulher ao mesmo tempo cotidiana e sublime – a mãe morta, que viveu por e para o seu filho. Albert Cohen leva cada leitor a um encontro imaginário com sua própria história”. Quis também ter esse encontro imaginário com a minha mãe e comprei o livro. Realmente, o livro é comovente: belíssimo. Eis alguns trechos do livro:
“Um outro remorso é que eu considerava perfeitamente natural ter uma mãe viva. Não sabia o quanto eram preciosas e efêmeras suas idas e vindas em meu apartamento. Não me dava conta direito de que ela estava viva. Não desejei o bastante suas vindas a Genebra. Será possível? Quer dizer então que houve uma época maravilhosa em que me bastava enviar um telegrama de dez palavras para que, dois dias depois, ela desembarcasse na estação ferroviária, com seu sorriso convencional de tímida, suas malas sempre meio mal-ajambradas e seu chapéu estreito demais. Bastava-me escrever dez palavras e lá estava ela, magicamente. Eu era o mestre dessa magia, e tão pouco a usei, idiotamente ocupado com ninfas. Não quiseste escrever dez palavras, pois escreve agora quarenta mil”.
“Amor de minha mãe, nunca mais. Ela está em seu berço definitivo, a benfeitora, a doce provedora. Nunca mais estará aqui para ralhar comigo se eu ficar inventando histórias. Nunca mais aqui para me alimentar, para me dar vida a cada dia, trazer-me ao mundo a cada dia. Nunca mais aqui para me fazer companhia enquanto eu faço a barba ou como, me vigiando, passiva, mas atenta sentinela, tratando de adivinhar se gosto realmente dos losangos de nozes que preparou para mim. Nunca mais me dirá que coma mais devagar. Eu adorava ser tratado como criança por ela”.
“Todos os seus enormes desejos de agradar, suas inocentes vaidades, seus entusiasmos, seus pequenos orgulhos, suas alegrias, suas suscetibilidades, tudo morreu para sempre, de repente deixou de ter jamais existido, tornou-se vão. Da mesma forma que as páginas que neste momento escrevo, as noites que passo a escrevê-las, tudo isso é tão sem sentido, tão para nada. Vou morrer. Logo logo se terá acabado o eu. E talvez alguém se pergunte, depois da minha morte, porque vivi e tão absurdamente escrevi com tanto prazer e porque tão ridiculamente me regozijei pelo que me parecia verdade escrita, êxito, achado. E até mesmo escrever o que acabo de escrever sobre minha morte e sobre a inutilidade de escrever me dá uma alegria de vida e de utilidade”.
A vida cumpre o seu ciclo. Quando ele inicia e enquanto ele transcorre é prazeroso. Infelizmente, quando ele se conclui, é doloroso. Portanto, meus colegas, amemos e aproveitemos a nossa mãe enquanto ela está conosco. Nunca será muito o tempo que pudermos dedicar a ela. E assim mesmo, sempre será pouco, quando compararmos com o tempo que ela nos dedicou. Mãe, só se tem uma. Esta frase, antes de ser um simples lugar-comum, é apenas uma verdade indiscutível.
Pedro Carlos de Mello
Brasília (DF), maio de 2002
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