WLADIMIR OLIVIER
A
PURIFICAÇÃO
Grupo dos Cometimentos Insólitos
ÍNDICE
Arroteando o terreno .......................................
1. A palestra .................................................
2. Na cantina .................................................
3. Em casa ....................................................
4. Na espiritualidade .........................................
5. Rachando lenha .............................................
6. Tumultua-se uma relação ....................................
7. Nem tudo são flores ........................................
8. Os três mosqueteiros .......................................
9. Transição ..................................................
10. Um dia para quem sabe recordar .............................
11. Novos rumos ................................................
12. Uma difícil situação .......................................
13. Recordações de uma semana cheia ............................
14. Entrementes, no etéreo .....................................
15. Confiteor ..................................................
16. Nasce Pierina ..............................................
17. As asas dos anjos ..........................................
18. À guisa de epílogo .........................................
ARROTEANDO O SOLO
O exercício da mediunidade constante tem causado aos servidores dos centros espíritas um cansaço e um temor quase sempre mal controlados e de difícil diagnóstico, porque existe uma vocação espontânea que se toma como necessidade.
Muito bem, é de todo saudável, portanto, que os médiuns não se ofereçam na qualidade de “profissionais”, como se dessa atividade dependesse a sua salvação, ou melhor, a sua condução para esferas de maior desenvolvimento evolutivo, prêmio pela dedicação e pelo esforço.
Essa glória, se assim podemos chamar o plausível desejo de progredir através do trabalho, não têm como lhes atribuir os irmãos que se utilizam deles como instrumentos para transmitirem mensagens pessoais ou de caráter doutrinário.
O que importa é que os médiuns se compenetrem de que não estão executando um mister como favor, muito menos como algo de valor absoluto ou de necessidade inadiável, principalmente porque se deve encarar a participação dos espíritos na vida dos encarnados, latu sensu, como completamente prescindível, desde que se formem suas personalidades ao influxo das leis morais, compactuando com o sentido intelectual o desempenho integralmente virtuoso, quer no que se refira à convivência com outros, quer quanto à compreensão de si mesmos.
Este é o resumo que poderíamos apresentar, nós do Grupo dos Cometimentos Insólitos, sob a orientação do Professor Otávio, para a terceira obra da trilogia que começou com A Transformação e prosseguiu com A Confirmação.
Subsidiariamente, teceremos algumas apreciações indiretas, através de diversas personagens, a respeito do andamento das atividades gerais entre os espíritas com maior ou menor responsabilidade dentro do movimento. Mas não pretendemos nem elogiar nem criticar; de fato, adotamos a mesma norma assinalada acima de que o máximo que nos cabe é dar uma contribuição no sentido de facultar aos leitores uma razão a mais para exercerem seu livre-arbítrio, principalmente no que toca ao importante aspecto das deliberações íntimas, aquelas que fluem diretamente da consciência e que vão desaguar no mundo exterior, na forma de ação ou de reação.
Se nem todas as personagens retornarão à cena, pelo menos teremos o cuidado de explicitar o porquê da ausência, particularmente por sabermos que, misteriosamente, os leitores se apegam mais a umas que a outras, torcendo para que se coloquem à frente do proscênio, para ali desempenharem seus papéis de relevo dentro da ação.
Estamos exarando algumas idéias preparatórias para a trama que desenvolveremos, porque não desejamos deixar jejunos quanto às nossas intenções aqueles irmãos mais apegados às identificações e que desanimam da leitura quando não se vêem retratados, com suas qualidades, nas figuras que vão desfilando pelos vários episódios. Quanto a esses, nós não gostaríamos que desistissem, mas, se isso ocorrer, paciência. Muito pior seria se abandonassem o texto aqueles para quem as carapuças da ficção servem como se feitas sob medida.
Estamos projetando um nível de esperança por demais otimista quanto à repercussão das modestíssimas obras? Certamente, mas não podemos diminuir o índice de elevação de expectativa neste momento de recolhimento e de manifestação. É esta a função designada pelo bom mentor. Procuraremos corresponder a seus ensinamentos, porque temos a certeza de que somente assim lograremos aproveitar-nos deste trabalho para evoluir. Dado este nosso nível de consciência, queremos consagrar a parte final da apresentação para afirmar que, se fôssemos entidades malignas, aqueles seres cujo objetivo essencial na existência é obsedar os mortais, não nos preocuparíamos em elaborar obras de cunho moral, na defesa dos princípios que Kardec desenvolveu. No entanto, cremos que também desejamos ser honestos até o ponto de rogar que não se aceitem, sem profunda meditação, as conclusões sempre parciais que serão assumidas pelas personagens, que não têm como ser perfeitas, como nós mesmos não temos.
Graças a Deus, estamos sendo assistidos por entidades que insistem sempre que não nos esqueçamos de agradecer ao Pai, a Jesus e aos espíritos superiores que administram a nossa esfera, aqui englobada a parte material em que se situam os encarnados. Por isso, sempre haveremos de repetir a curta prece que pensamos resumir os nossos sentimentos:
Senhor, em nome de Jesus, faça que sejamos dignos de receber em graça suas sacratíssimas bênçãos!
1. A PALESTRA
Norberto tinha sido convidado para participar de um evento na federação espírita. Tratava-se de um congresso de uma semana, com três exposições por noite, concomitantes. O público não se fez de rogado, adquirindo todas as quotas de participação, já que o caráter beneficente havia estimulado o espírito de caridade, que o povo se solidariza quando se comove com a possível ajuda que pode dar, transferindo a responsabilidade da aplicação dos fundos a uma entidade de sólida configuração moral e inteiramente preparada para efetuar a distribuição de benesses a pessoas verdadeiramente carentes.
O nosso amigo já havia perdido o medo do público quando descobriu que um tema bem estudado sempre tem duas repercussões principais: ou agrada os que conhecem o assunto e, por isso mesmo, obtém o apoio dos que lideram os grupos; ou traz novidades para os menos traquejados e, por isso mesmo, causa frêmitos de entusiasmo no estímulo às reflexões e leituras.
A notícia de que todas as noites o público acorria a ouvir os palestrantes trouxe alegria muito grande ao novel orador, que se preparou adequadamente para cumprir os noventa minutos máximos que lhe foram solicitados.
Na noite da quinta-feira, no quinto dia do congresso, compareceu Norberto e logo foi recebido por um dos membros da diretoria incumbido de introduzi-lo perante a assistência. Naquela mesma noite, falariam também Aristeu e José Carlos, o primeiro, o advogado, desenvolvendo o tema da necessidade de os dirigentes dos centros espíritas darem ênfase aos estudos das obras de Kardec, reservando duas noites por semana para as reuniões mediúnicas; o segundo, o médico, discorreria a respeito dos cuidados que os processos de regressão às vidas passadas exigem dos que a praticam.
No programa distribuído, Norberto aparecia com o tema: Do homem bom que deseja tornar-se perfeito.
No horário aprazado para o início das sessões de oratória, lá estava Norberto no pequeno auditório para sessenta espectadores, porque o palco principal estava com Aristeu, com quatrocentos lugares, poltronas bem acolchoadas e cômodas.
Nas rústicas cadeiras da sala de Norberto espalhavam-se umas quinze pessoas, entre elas Valdemar e Sofia, esta carregando uma barriga de cinco meses de gestação. Nem a esposa, Doutora Durvalina, estava presente, tendo dado preferência à palestra do seu antigo professor e sempre amigo, José Carlos, porque, conforme dissera ao marido, ela sabia de cor e salteado tudo o que ele iria dizer.
Em todo o caso, feita a apresentação do orador, aquele membro da diretoria se sentiu coagido a ouvir a exposição de seu apresentado, havendo-lhe sussurrado, antes de descer do estrado:
— Não se sinta desprestigiado pela ausência de público. No começo é sempre assim. Quando seu nome aparecer no jornal em minha apreciação positiva, aposto que muita gente vai desejar comprar a fita que estamos gravando.
Na realidade, a maior preocupação de Norberto sempre tinha sido essa mesma gravação, tanto que havia solicitado para que, antes de ser divulgada, que pudesse editá-la ele mesmo, para retirar ou substituir o que não julgasse bom. Obteve permissão para as alterações com a advertência de que a qualidade da fita, caso decaísse, iria prejudicar a divulgação.
— Quantas cópias serão feitas?
— Inicialmente, dez.
— Para todos?
— Para os principiantes, como você. Nós temos as matrizes. Caso se esgotem as primeiras, faremos mais dez, e assim por diante.
— Se sobrarem?...
— Aproveitamos para sobrepor outra palestra mais requisitada.
Tranqüilo quanto a não causar prejuízo, Norberto apenas não estava esperando tão poucos assistentes, enquanto, nos centros em que se apresentava habitualmente, seus auditórios mantinham a ponderável média dos oitenta por cento de ocupação.
Limpou discretamente a garganta e, após ouvir uma prece dita por uma senhora especialmente designada para o momento, a qual desapareceu assim que o orador disse a primeira palavra, passou a dissertar com a voz bem modulada e com o ânimo alevantado de quem sabia que estava recebendo total assistência do plano espiritual, tanto que foi assim que começou:
— Agradeço a boa vontade dos irmãos e irmãs aqui presentes, encarnados e desencarnados que, no plano da espiritualidade, olham por todos nós, enquanto nos aplicamos ao estudo das leis universais, segundo as apreciações que Kardec desenvolveu em O Livro dos Espíritos. Haverá entre nós e entre eles boas pessoas, boas entidades? Com toda a certeza, que nem nós, nem eles estão aqui reunidos com intuitos de maldade. Vocês, meus amigos, podem garantir, cada qual por si mesmo, que desejam ser o melhor possível, porque, afeitos aos princípios da doutrina espírita, vêm pelejando para não resvalar pelas ribanceiras do mal. Os irmãos da espiritualidade, eu lhes garanto, estão todos interessados em saber como é que este expositor irá colocar os elementos que propiciarão uma melhora contínua, um aprimoramento seguro no campo das virtudes, portanto, da moralidade superior. Desde logo, tratando-se da busca da perfeição, nos vem a recomendação do Cristo: Sejam vocês perfeitos, como seu Pai celeste é perfeito. (Mateus, V: 48.). E quais são os dons da perfeição? Aqui eu acho que o conselho dado a Kardec pelos seus orientadores espirituais deve prevalecer, qual seja, o princípio de tudo está em cada um de nós nos conhecermos a nós mesmos, para sabermos onde estamos acertando e onde estamos errando, e em que quantidade o estamos fazendo. Em primeiro lugar, só o fato de estarmos aqui na Terra, orbe de provações e expiações, a menos que tenhamos vindo em missão, já nos comprova a nossa inferioridade, porque, se não fosse assim, estaríamos encarnados em mundos mais adiantados. Não vou falar dos que estão em missão, porque esses são conscientes de seu nível elevado e não precisam vir ouvir a minha pobre exposição. Talvez haja alguns ouvindo o Doutor Aristeu ou o Doutor José Carlos. Na esfera espiritual, com certeza, existem espíritos de luz exercendo a sacratíssima missão de orientar discípulos e entidades necessitadas ainda de ouvir pregações, eles mesmos desvinculados intelectualmente do meu tema e de minhas palavras, preocupados com o seu mister superior, porque lhes cabe enfronhar nas mentes de seus pupilos e de seus protegidos o espírito crítico capaz de discernir o que vão ouvindo de correto e de imperfeito, separando o joio do trigo. Então, desde que o primeiro passo é o de cada qual conhecer-se a si mesmo, temos de responder a algumas perguntas elementares, não tanto pelas questões que são propostas, mas pelos enunciados que são capazes de despertar. Explico-me: uma criança é capaz de se interrogar, por exemplo, a respeito da razão de haver sido repreendida pelo pai ou pela mãe, o mesmo ocorrendo com o jovem e com o adulto. Entretanto, a possibilidade de uma análise mais completa vem com o tempo e com a experiência, de modo que as respostas dos três não podem cotejar-se em mérito, em extensão e em profundidade. Eu faço, agora, a primeira pergunta e cada um de vocês deve responder intimamente. Ei-la: Sou capaz de reconhecer quando estou errado ou fico recalcitrante quando me chamam a atenção?
Nesse momento, entraram três senhoras esbaforidas, resmungando. Norberto susteve a oratória, percebendo que algo não ia bem com as recém-chegadas.
— As irmãs, se quiserem, podem se acomodar, porque lugares não nos faltam. No entanto, eu temo que têm um bom motivo para chegarem atrasadas e que se desorientaram quanto à palestra que estão desejosas de ouvir. Aqui estamos falando a respeito dos bons que caminham para a perfeição. É sobre isso que vieram ouvir?
Uma delas, fazendo um gesto para que as outras saíssem, foi desculpando-se:
— Que vergonha, meu Deus! O senhor nos desculpe, mas nosso táxi bateu e foi um deus-nos-acuda. Nós viemos ouvir a respeito da regressão às vidas passadas.
As últimas palavras foram ditas já na porta, de modo que, ato contínuo, desapareceram da vista dos presentes.
Norberto emendou o tema ao acontecido:
— Vocês notaram que a senhora reconheceu vários enganos, procurando justificar cada um deles, pelas palavras, pelos gestos, pela entonação da voz etc. Creio que todos já responderam à primeira pergunta. A segunda pertence ao rol das observações que fiz a respeito da invasão que sofremos: Será que, ao reconhecer os meus erros, eu sou capaz de buscar-lhe as causas reais, sem buscar desculpas e justificativas?
O orador aproximou-se da beirada do estrado, abandonando o microfone sobre a mesa. Queria provocar uma reação física em seu pequeno público. Sorriu para Valdemar e Sofia, dando-lhes um aceno discreto com o polegar erguido, enunciando que tudo estava bem e sob controle. Tomou um ar menos circunstancial, fez-se mais íntimo e anunciou:
— Gostaria agora de lhes contar um fato muito importante que aconteceu comigo. Meus amigos aqui presentes sabem que, há dois anos, minha casa foi alvo de uma chuva de pedras que verificamos ser de origem espiritual, ou melhor, tratava-se de um fenômeno físico espontâneo, que me deu bastante prejuízo porque as telhas se partiram diversas vezes. Mas isso foi o de menos. Uma determinada noite, surpreendemos um grupo que se preparava para forjar o fenômeno, no intuito de dar a um repórter, que depois viria a se tornar um amigo meu, a oportunidade de caracterizar uma burla e de resolver tudo pelas vias materiais. Vocês sabem o que aconteceu? Os espíritos protetores provocaram nova tempestade de tijolos, desta vez não se limitando a atingir o telhado, mas alcançando os carros e até as pessoas. Foi uma correria geral. A polícia prendeu os três assustados rapazes, dentre os quais, surpresa, estava um que me havia assaltado num cruzamento, levando-me o relógio e a aliança. Foi quando tive a oportunidade de praticar o que eu achei na hora uma boa ação, pois livrei o marginal da acusação que o levaria à cadeia, pedindo-lhe que me devolvesse a aliança de meu primeiro casamento, interrompido pela morte de minha esposa quando do parto de nosso filho. Por que eu estou contando-lhes tudo isso? Não precisam responder: eu digo. É para demonstrar que eu sou uma pessoa comum, uma entidade encarnada que precisa passar por esses dramas e sofrimentos. Um dia, considerei que, se minha mulher não tivesse morrido, eu nem teria ficado preocupado com a espiritualidade tal qual é descrita nas obras de Kardec e, talvez, hoje, eu ainda estaria confessando e comungando, como fizera até então. Agora vem a terceira questão: Como os acontecimentos são tecidos para redundarem em provações úteis para os homens e mulheres? Saberia eu reconhecer a força dos mentores espirituais na armação de circunstâncias, sem aventar a hipótese de que estaria sendo uma vítima de espíritos obsessores? De outra forma: Saberia eu reconhecer a necessidade de enfrentar determinadas situações estressantes, disposto a sair de cada teste melhor preparado para a vida e para após a vida?
Nesse momento, percorrendo o auditório com a vista, deu com Oliveira à porta, munido de sua competente máquina fotográfica. Estava realizando a cobertura do congresso para o jornal da entidade e para a folha em que trabalhava na qualidade de redator. Vendo que Norberto tomava fôlego, atreveu-se a entrar, dirigindo-se ao orador:
— Norberto, preciso documentar sua palestra. Posso tirar umas fotos?
— Esteja à vontade! Você ouviu as perguntas que acabei de fazer?
— Eu estou aqui desde que você mencionou um certo repórter que preparou uma armadilha e caiu em outra.
— Espero que não se tenha ofendido.
— De maneira alguma. Seguindo os seus raciocínios, eu acho até que fui inspirado para efetuar algo bem contrário à honestidade, criando a oportunidade para ser corrigido definitivamente. Foi a partir daquele dia que comecei a atribuir a muitos fatos da vida uma origem espiritual.
Sem querer, a conversa foi seguida pelos quinze espectadores, mesmo porque Oliveira fez questão de elevar a voz para demonstrar um exemplo vívido de como alguém pode raciocinar a respeito do compartilhamento do carma entre as pessoas e seus guias espirituais.
Perguntou, então, a Norberto:
— Posso dirigir-me ao auditório?
— Fique à vontade.
— Pessoal, eu acho que todos gostariam de sair na foto. Vamos fazer o seguinte: vocês todos se aproximem das cadeiras da frente, do lado da janela, que eu vou pegar o grupo todo. O senhor doutor palestrante nos vai fazer a gentileza de se postar de modo que pareça estar desenvolvendo o seu assunto. É só um minutinho.
De fato, em pouco tempo, Oliveira distribuiu os presentes e tomou o flagrante de um ângulo em que se viam todos os rostos voltados para o orador. Agradeceu e saiu.
Imediatamente, todos retornaram aos lugares primitivos, causando um certo tumulto sob o olhar atento do palestrante, que, assim que pôde, continuou:
— Querem ver uma coisa interessante?! Ocorreu-me, enquanto vocês voltavam a acomodar-se, como as pessoas resistem às mudanças. Uma vantagenzinha constitui um atrativo, de sorte que, por um espírito de posse, as pessoas se aventuram a enfrentar, por um certo tempo, um novo caminho. Entretanto, basta cessar o privilégio, e logo o ser humano retorna ao procedimento anterior, a que se habituou. Digo isto de todo o mundo, até mesmo daqueles que, como eu, se transferiram de mala e cuia de uma religião para outra. Vocês vão dizer que nem tudo o que fazem agora faziam há certo tempo atrás. Com certeza. Mas sempre ficam os dedos a coçar, mesmo após a perna ter sido amputada. Sendo assim, aquele velho costume de se sentir à vontade depois de uma confissão e de uma comunhão, com a mente tranqüila e o coração mais leve, parece que se transforma num sentimento sutil de culpa, como se as novidades um dia haverão de cessar e a pessoa vai regressar ao seio da igreja que abandonou. Daqui flui a quarta questão: Será que as minhas convicções estão firmemente fundamentadas no campo da intelectualidade, para que meus comportamentos antigos emocionais não venham a me perturbar, quando me proponho a fixar novas diretrizes, completamente justificadas pela doutrina a que eu não sei, em sã consciência, opor nenhum argumento contrário? Vocês então entendendo como é que vamos nos enfronhando cada vez mais na teoria kardequiana, deixando toda exterioridade de cultos para trás, uma vez que prevalecem os impulsos mais fortes da razão sobre os destemperos dos sentimentos?
Norberto parou, percebendo que a sua colocação estava por demais centrada nos conceitos, quando deveria, por princípio, situar cada conclusão e cada passo adiante em fatos extraídos da realidade. Achou, por um momento, que talvez fosse útil abrir uma brecha para debates, que lhe estava sendo difícil avaliar a reação do auditório. Perpassou-lhe rapidamente pela mente que o que lhe estava ocorrendo não teria ensejo de concretizar-se se estivesse diante dos quatrocentos espectadores do Doutor Aristeu ou dos oitenta ou mais do Doutor José Carlos. Foi quando uma centelha de discernimento fez que começasse o novo tópico através de uma explicação:
— Vamos esquecer um pouco toda esta filosofia transcendental, ou melhor, de projeção exploratória alma adentro. Vocês perceberam, naturalmente, que o nosso Oliveira, o fotógrafo, me chamou de doutor. Na verdade, minha profissão, aquela para a qual prestei concurso público de título e de provas, é de fiscal do governo, atualmente afastado do cargo para desempenhar funções junto a uma comissão de assessoria do próprio governador. Para tanto, é claro, eu precisava possuir um diploma universitário. Eis que exibi o meu de bacharel em Direito para o ato de inscrição. No entanto, muito pouca gente sabe que freqüentei as Arcadas do Largo São Francisco, e é bom que não saibam porque, se me consultarem, vão verificar que meus conhecimentos se limitam às lições que nos cobraram os mestres, já que jamais exerci a profissão. Alguém poderá imaginar que meu ideal foi desbancado pela oportunidade de me concursar. Ledo engano. O que almejei a vida toda era o cargo de que sou titular. Eu tenho um colega que é professor de matemática e que também jamais adentrou uma sala de aula para lecionar.
Norberto não fez menção de indicar Valdemar, mas este tomou a iniciativa de declarar-se presente, alegremente levantando-se e fazendo que agradecia os aplausos da platéia.
As pessoas estranharam um pouco a sem-cerimônia tanto do ouvinte quanto do orador, mas houve alguns que acharam graça e que se agitaram nas cadeiras, talvez com o intuito de participar. Entretanto, Norberto vinha embalado:
— Agradeço ao meu amigo Valdemar, que se encontra presente com a esposa, Sofia, e com o seu filhinho visível através do exame ultra-sonográfico e pelo volume da barriga.
Apesar de provocada, Sofia apenas levantou a mão. O orador foi adiante:
O meu longo preâmbulo foi para introduzir uma nova questão, para a qual preciso desenvolver ainda um pouco mais a minha história. O apanágio de minha personalidade é algo meramente circunstancial, porque o que tenho de melhor em meu cérebro é minha memória, elefantina memória, já que me é difícil de esquecer seja o que for. Normalmente, as pessoas, pelo que tenho observado e pelo que me relatam, retêm e reproduzem apenas o que as atinge diretamente, afetando a sua paz, seja no sentido desafortunado das tragédias, seja no campo positivo das alegrias e prazeres. Quando se trata da obrigação de estudar, por exemplo, sentem-se, em geral, coagidas pela necessidade, não do conhecimento em si, mas de apresentar um bom resultado a um examinador qualquer, um professor, um chefe de repartição, um editor, um público atento...
Havia uma jarra tampada e um copo de borco sobre um pires. Norberto, calmamente, fazendo um gesto para que aguardassem, pôs um pouco de água no copo e sorveu-a em goles espaçados, como a meditar sobre o que iria falar em seguida, na verdade, observando os assistentes, a ver se percebia se estavam deveras interessados na conclusão daquele tópico. Os olhos do público seguiam todos os seus movimentos, de sorte que deduziu que estava na hora de prosseguir:
— Tenham um pouco mais de paciência que não vou demorar muito mais para colocá-los para fora, que o estímulo da sede deve ter afetado o seu interesse pelo que eu vinha dizendo. O que era mesmo que eu dizia? Ah! Que minha memória é completa. Então, deixo aqui a próxima questão para quem é bom e deseja aperfeiçoar-se: Estou sendo levado pela vida ou sou eu que a levo a meu talante? É a história do vivo-para-comer e do como-para-viver, que todos conhecem. Mas com um significado novo, qual seja, o de que, em tudo o que faço, devo concentrar-me como se fosse a coisa mais importante do mundo. Sim ou não? Estou aqui ouvindo uma palestra, pensando na pizza e na cervejinha de logo mais? Quando estiver diante da pizza e da cerveja, terei disposição para conversar com meus amigos sobre os temas que ouvi no congresso espírita? Em suma, dou importância a tudo o que ouço, ou prezo, sobremodo, as minhas antigas idéias, para dar atenção a outros pontos de vista?
Era um momento a mais de reflexão que Norberto exigia para dar prosseguimento, de modo que avançou até o meio da sala, criando uma expectativa sobre o que iria fazer, e ali concluiu:
— A importância de explorar novos horizontes está em que a sabedoria que se requer dos seres perfeitos é infinita. Se nós, nesta encarnação, formos capazes de criar um nível de volúpia do saber que fique impregnado definitivamente em nossa personalidade, ou melhor, em nosso espírito imortal, aí purificaremos o nosso proceder íntimo com reflexos para nossa vida em comunidade.
O orador tornou para junto da mesa, consultando discretamente o relógio. Faltavam cerca de quarenta minutos para completar o tempo. Pegou a pasta que jazia encostada a um dos pés da mesa, abriu-a, retirou umas folhas impressas e explicou:
— Definitivamente, eu consegui misturar um pouco os temas. Mas não por não me dar conta disso: porque achei que podia dar um tom menos formal aos dizeres, ainda mais que fui ajudado por dois acontecimentos estranhos aos trabalhos que havia planejado. De qualquer modo, trouxe as trinta questões que pretendia desenvolver, já prevenido quanto a não ter tempo para falar de todas. Vou distribuir, solicitar que leiam, se possível agora, e, em seguida, abriremos para os debates suscitados pelas observações dos meus irmãos e irmãs presentes, não prometendo este humilde confrade responder a todas as questões, mas envidando esforços para discutir com o máximo de serenidade, sempre fundamentando-me nos textos de Kardec.
Ato contínuo, contou quinze folhas e foi entregando uma a uma a todos os assistentes.
Logo havia três braços erguidos.
— Eu peço que os que perguntarem declinem seus nomes, em primeiro lugar.
— Atanael. Eu estou há muito pouco tempo freqüentando o espiritismo. Inadvertidamente, acabei nesta sala quando vinha decidido a ouvir o Doutor José Carlos. Contudo, devo afirmar que gostei muito do que disse o Doutor Norberto e de como disse. Eu queria que o senhor me explicasse, já que exerço a profissão de assistente social e lido com adolescentes pobres que desejam livrar-se dos problemas das drogas, como é que eu posso levar a eles as lições que ouvi aqui quanto aos bons se tornarem perfeitos, quando os coitados mal e mal têm noção de que estão sendo prejudicados pelo vício, mergulhados numa tremenda confusão mental, muitos, a maioria, analfabetos, incapazes sequer de ler ou de entender os textos da doutrina?
Norberto percebeu que a pergunta fora feita de propósito bastante longa, para lhe dar tempo para pensar na resposta. Tinha pronta, porém, uma fórmula para ocasiões que tais:
— Os que não são bons, você há de concordar comigo, antes de se tornarem perfeitos, têm de se colocar entre os bons. Talvez a perfeição para os que se acham nos últimos lugares da escala social (seria preferível citar a escala espírita que se acha em O Livro dos Espíritos) seja um início de subida, principiando pela própria tomada de decisão quanto a vir a eliminar uma falha, ao menos, que sua consciência seja capaz de caracterizar como danosa. Tratam as obras da literatura mediúnica desse ponto de um modo quase uniforme, pois os espíritos sofredores, quando percebem que ganhariam mais se fossem honestos e requerem ajuda nesse sentido, sempre são acudidos por equipes das colônias da erraticidade, que se encarregam de interná-los em instituições capazes de lhes dar tratamento perispiritual, acompanhado de orientações morais voltadas para os defeitos específicos de suas personalidades, tendo em vista a história de suas existências. Quem sabe não seria útil insistir junto a esses jovens exatamente no ponto crucial de que têm de despertar para a magnanimidade da misericórdia de Deus, no sentido de que percebam que estão doentes espiritualmente, para não lhes dar oportunidade de se desculparem com a inutilidade dos tratamentos meramente de desintoxicação do organismo. Nesse sentido, dar a ler ou efetuar a leitura das obras de Kardec talvez seja dar um primeiro passo muito ambicioso. Sempre o nosso irmão Atanael encontrará obras mais recentes que tratam, com muito cuidado, dos temas relacionados aos jovens e seus vícios, inclusive algumas que reproduzem testemunhos de companheiros que adquiriram ou estão adquirindo a lucidez desse seu estado de penúria espiritual, muitos deles com relatos bem feitos de como foram tratados para se desfazerem da dependência, isto no mundo maior. Quem aceitar pacificamente, pelas verossimilhanças que encontrar nas descrições psíquicas, identificando-se com os autores, terá uma chance de aceitar os princípios da doutrina em seus aspectos científicos e filosóficos. O que não se pode, veja bem, é abandonar a luta, tendo em vista que um ou vários assistidos nossos retrocedem e voltam a cair nas malhas das drogas. A nossa desistência eqüivalerá ao desfalecimento do jovem, ambos revelando, desse modo, que sua fé na evolução humana empalideceu. Creio que os assistentes sociais que lutam nas entidades com ou sem vínculo com o espiritismo, ainda que filiadas a religiões de todo gênero, promovem um serviço de grande mérito, caracterizando-se como pessoas que se podem colocar nas escalas entre os bons.
Norberto fez uma ligeira pausa para respirar. Atanael fez-lhe um sinal discreto de positivo, indicando que estava satisfeito. Não havia mais ninguém com o braço erguido, dando ao palestrante a oportunidade a uma observação:
— Lamento ter assustado os demais com a minha longa exposição. Eu acho que o medo de eu ultrapassar a hora deve ter tomado conta dos tímidos corações dos irmãos. Prometo-lhes que responderei de modo sucinto só a mais duas questões. Quem se habilita?
Valdemar levantou a mão e, a um gesto do amigo, falou:
— Valdemar. Quero enfatizar apenas um aspecto que eu acho muito importante no caso do rapaz que roubou a aliança e o relógio do nosso palestrante. É que, como se descobriu depois, ele consumia e, ao que tudo indica, traficava drogas. Durante alguns meses, foi levado pela avó a freqüentar o nosso centro, até que um dia foi descoberto portando maconha. Mas seu fim foi trágico, assassinado com três companheiros. Eu pergunto ao meu amigo: será que algumas lições de espiritismo lhe teriam servido pra ser recebido com carinho pelos amigos da espiritualidade?
Norberto percebeu que lhe passava um calafrio pela espinha, mas ficou firme e decidiu falar com toda a franqueza:
— Em primeiro lugar, louvo a intenção do Professor Valdemar de trazer mais um motivo para justificar os estudos teóricos de Kardec em favor de qualquer indivíduo que esteja sob o domínio das drogas. É mais um ponto a ser considerado pelo nosso Atanael. Mas o caso em pauta pode nos trazer outras lições práticas, porque eu tenho pensado muito a respeito de ter sido responsável pelo assassinato daquele jovem, uma vez que, sabendo por ele mesmo como é que conseguia os baseados, telefonei anonimamente para a polícia delatando os responsáveis pelo tráfico. Qual a minha justificativa? O moço foi surpreendido com a maconha dentro do centro, onde ele permanecia entre outros jovens sabidamente com tendências marginais, tendências que supúnhamos e ainda imaginamos sob controle. Fiquei com medo de que os traficantes estivessem desejando infiltrar a droga num ambiente que considero sagrado. Também ponderei que a repressão deveria ser boa para preservar outros elementos da sociedade. Não considerei a hipótese de enfrentar as pessoas, que sei que é muito perigoso entrar no círculo de domínio dos narcotraficantes. Não imaginei que a polícia iria conseguir prender alguns chefes de quadrilha e, muito menos, que se suspeitasse que a informação pudesse ter partido do nosso amiguinho. O máximo que passou pela minha cabeça é que os presos não iriam receber uma acolhida que lhes desse a possibilidade de reabilitação. Em suma, Atanael, quem lida com esses jovens, de certa forma, fica refém, direta ou indiretamente, dos que comandam o tráfico. Quanto à esfera espiritual, Valdemar, os espíritas têm recursos que vão além das conjecturas, uma vez que podem consultar os guias e protetores a respeito das condições de seus amigos desencarnados. Quanto a mim, suponho que as preces que temos realizado em favor do nosso amiguinho possam ter atuado no coração generoso de algum espírito socorrista, a ponto de comovê-lo para o auxílio. Falta só mais uma questão.
De novo Valdemar se propôs a participar. Tendo recebido autorização, disse:
— Confesso que não tinha conhecimento desses pruridos da consciência do meu colega. Sinto muito que não me tenha contado antes, pois posso garantir-lhe que seu telefonema não desencadeou a vingança dos traficantes. Na verdade, tendo sido encarregado de consolar a avó do rapaz, descobri que dificilmente ele escaparia de ser perseguido pelos criminosos, porque estava fazendo um trabalho de divulgação espírita entre os antigos comparsas, tendo levado ao centro três deles, desfalcando a quadrilha. Segundo soube, a droga com que foi surpreendido ele havia tirado de um daqueles amigos, impedindo que se traficasse ali. Se não contou pra gente naquela hora, foi pra proteger o outro. Quando ele foi assassinado, os outros três sumiram do centro e reassumiram os postos que haviam abandonado. Que tipo de ajuste de contas houve, eu não sei, mas o nosso amigo Juvenal, pra quem não sabe, o soldado que apanhou o rapaz preparando-se para atirar pedras sobre o telhado do Doutor Norberto, me disse que nenhum dos que foram alcançados pela rede policial se encontra na cadeia. Sugiro que o nosso amigo assistente social nos visite no Centro Espírita do Amor Fraterno de Jesus, para avaliar os serviços que lá estamos prestando aos jovens e orientar-nos com sua experiência. Pra não dizerem que não fiz nenhuma pergunta, pergunto se Norberto concorda comigo.
O tema da palestra se havia perdido completamente; então o expositor lembrou:
— Eis como pessoas que são boas estão caminhando por sendas maravilhosas para a perfeição. Claro que eu concordo com você e agradeço as informações e a lembrança preciosa do convite, que referendo e corroboro. Cumprindo a promessa de responder a apenas mais duas questões, encerro o expediente e se, definitivamente, ninguém mais quiser fazer uso da palavra, agradeço a boa vontade de todos e rogo ao Senhor que nos abençoe e nos envie seus bons mensageiros para que nos esclareçam, através dos meios disponíveis, de como poderemos constantemente ir melhorando até atingir o máximo que nos é possível de bondade na presente encarnação. Vamos ouvir a prece de encerramento pela emocionada voz de nossa anfitriã.
A mesma senhora da prece inicial estava à espreita na porta, aguardando a deixa, de modo que, muito contente, se postou à frente do auditório, onde encerrou a sessão com alguns rogos a Jesus por paz, amor e saúde, terminando por um pai-nosso.
2. NA CANTINA
Em pouco tempo, restaram na sala apenas Norberto e o casal de amigos.
— Vamos esperar aqui a minha mulher ou vamos atrás dela?
Sofia foi quem respondeu:
— Vamos esperar. Vocês estão planejando jantar?
— Eu não lhes disse? A federação gosta de reunir os palestrantes após o expediente, numa cantina, mas é preciso saber que é cada um por si. O Doutor Saraiva, que é quem cuida do departamento de cursos e conferências, me informou que só muito raramente são custeadas as despesas dos convidados, em primeiro lugar, porque as taxas que são cobradas mal cobrem os gastos normais com luz, água, sabonete, papel higiênico, limpeza, impressos etc.; em segundo lugar, porque, para o restaurante, só vai quem quer. Nós, por exemplo, não teremos nenhum prejuízo se consumirmos aquela pizza e aquela cerveja a que me referi.
Valdemar insistiu no tema:
— Para quem é que eles custeiam os gastos?
— Vamos supor que convidassem um médium da categoria do nosso Chico Xavier, sabidamente incapaz de arcar com as despesas de locomoção e de estadia. Mesmo que pudesse vir e autografar seus inúmeros títulos, ainda assim o lucro das obras vai pras editoras ou pras livrarias, porque ele mesmo abriu mão de qualquer participação financeira. Existem outros conferencistas que têm o dinheirinho contado mas, nesses casos específicos, segundo o Doutor Saraiva, o valor da contribuição dos assistentes é acrescentado de um tanto pra pagar os dispêndios.
Sofia foi quem abriu o jogo:
— O que o Valdemar está querendo saber, não fosse ele um fiscal do governo, é como uma instituição com tantos funcionários pode manter-se sem explorar um pouco que seja o povo espírita?
— Eu acho que a pergunta é cediça. Aqui se vendem muitos produtos além de se receberem as mensalidades dos associados. Pra falar a verdade, não é assunto que me interesse. Maiores informações com o Saraiva que irá jantar conosco.
A moça ficou curiosa com outra coisa:
— Norberto, eu reparei nesse seu pra falar.
— Que é que tem?
— Espere um pouco. Nós estamos acostumados a ouvir você com esse pra isso e pra aquilo de um lado pro outro. Mas eu só ouvi para fazer, para ler, para entender durante todo o tempo de sua palestra. Dá pra me explicar?
— É uma questão de estilo formal e de estilo coloquial. Ou vocês acham que fiz um curso de oratória pra nada? Com os amigos, pra isto e pra aquilo; pro auditório: fazer o bem para subir na escala espírita...
Nesse momento, chegava Durvalina, que logo foi anunciando:
— Que maravilha a palestra do José Carlos! Foi aplaudido de pé. Vocês não ouviram o alarido?
De fato, haviam ouvido algo, mas as salas estavam em andares diferentes do prédio, de modo que o ruído havia chegado de muito longe.
— E você, querido, como se saiu? Deve ter conseguido interessar todos os presentes.
Foi Valdemar quem respondeu:
— As quinze pessoas presentes não bateram palmas, mas, quando se despediram, todas fizeram questão de cumprimentar seu marido, pedindo-lhe para concluir a palestra, porque se interessaram muito pelo tema.
Sofia concordou:
— Foi muito agradável, porque ele trouxe o assunto para o dia-a-dia das pessoas, contando alguns casos, como o dos apedrejamentos.
Mas Norberto não estava à vontade:
— Preciso treinar muito lá nos nossos centros da periferia até que me encoraje a enfrentar um auditório como o do Aristeu. Mas vamos continuar a nossa conversa no restaurante.
Durvalina apressou-se a informar:
— Eu acho que vai demorar muito pro Aristeu e pro José Carlos se liberarem. Eles estão, os dois, com uma fila imensa de gente esperando autógrafos. Eu não sei quanto a vocês, mas eu preciso levantar cedo amanhã. Vocês não querem dispensar os outros?
Norberto acudiu:
— Vamos fazer o seguinte: a gente pergunta pro Saraiva qual o restaurante e vai pra lá. Se eles aparecerem, muito bem. Caso contrário, a gente come sem eles.
Todos concordaram e logo foram informados pelo responsável pelo evento:
— Nós freqüentamos uma cantina na próxima esquina, deixando os carros guardados em nosso estacionamento. Quando vocês chegarem, é só dizer que são da federação que o maître vai levá-los para a mesa que reservei. Vocês já sabem que cada um paga o seu?...
Norberto assentiu e lá foram eles espiar se as filas ainda permaneciam muito longas. Foi quando Oliveira apareceu e logo se propôs a acompanhá-los:
— Preciso comer pra agüentar o trabalho de toda a noite. Mas eu ainda tenho uma hora pra pegar no batente.
Os demais lembraram-se de que o fotógrafo-repórter madrugava na redação, participando ativamente do encerramento das edições.
Mas Valdemar queria saber mais:
— A que horas as rotativas começam a girar?
— À uma da manhã.
— Por que você começa às onze e vai até às seis?
— Porque eu sou um animal notívago. Na verdade, as minhas matérias não são, a não ser raramente, de última hora. Mas eu gosto de trabalhar à noite e, então, eu preparo, num ambiente mais sossegado, o que vai ser impresso no dia seguinte, principalmente quando as minhas fotos vão pro prelo.
Norberto, apontando para as pessoas desejosas de autógrafos, perguntou:
— Oliveira, com a sua experiência, quanto tempo eles vão demorar?
— Se fosse apenas pra registrar uma palavrinha e uma assinatura, uns vinte a trinta minutos. Acontece que o povo faz muitas perguntas e os autores não podem deixar ninguém na mão. Eu acho que não vão ficar menos que uma hora e meia. Se vocês quiserem esperar, eu vou comer sozinho.
Durvalina respondeu logo pelos demais:
— Estamos indo com você.
A caminhada foi curta e logo eles estavam realizando seus pedidos. O local estava festivo, com muitos dos que assistiram as palestras ocupando muitas das mesas. Durvalina foi capaz de ouvir retalhos de conversas, reconhecendo o tema da regressão às vidas passadas.
Quanto às bebidas, Norberto propôs:
— Não podendo as senhoras grávidas ingerir bebida alcoólica, sou de parecer que todos devamos cooperar, partindo pros refrigerantes.
Valdemar protestou:
— Eu não abro mão de minha cervejinha. Que venham umas sem álcool, que essa é uma bênção da tecnologia moderna.
Oliveira complementou:
— Eu, como vou trabalhar, prefiro uma garrafa de água mineral sem gás.
Tendo o garçom ido providenciar as bebidas, Norberto foi logo interpelando o fotógrafo:
— Quer dizer que o meu amigo continua fabricando as notícias?!...
Espanto geral, todos os olhares solicitando explicações. O autor da observação prosseguiu:
— Só quero ver como é que vai sair no informativo do congresso. Aposto que a foto de todos os meus assistentes virá com os dizeres: Vista parcial do público que compareceu à palestra do Doutor Norberto, dando a impressão ao leitor de que a sala estava cheia.
Oliveira sorriu, recordando-se das fotos da festa de casamento do fiscal com a médica que causaram tanta celeuma, quando Aristeu publicou seus comentários, desejoso de preservar os recintos dos centros espíritas da avidez dos que querem transformar as casas de atendimento evangélico em meras salas de reuniões sociais. Mas sorriu mais ainda quando uma recordação mais recente lhe ocorreu. Aí todos quiseram saber o que estava acontecendo. Oliveira explicou:
— Eu vou contar a pegadinha que preparei pro nosso caro Doutor Aristeu. Vocês devem ter recebido as fotos do célebre almoço com os padres. Mas eu não mandei todas, só aquelas em que vocês se encontravam ou os amigos. As do Aristeu eu usei pra uma surpresa. Havia pelo menos quatro flagrantes muito esquisitos se fossem interpretados de modo errado. Num, Aristeu erguia uma taça de uma inofensiva bebida efervescente, mas diante dele se alinhavam três garrafas daquele espumante sem álcool, dando a impressão de que ele estava consumindo o que vem negando fazer, ou seja, ele é abstêmio e a fotografia dizia exatamente o contrário, à primeira vista.
Valdemar observou:
— Exatamente como uma das fotos que ele censurou. Essa foi muito boa. E qual a reação dele?
— Com essa foi o de menos. Outras duas causaram muito maior preocupação: numa, ele cumprimentava um padre, em destaque o quadro do Sagrado Coração de Jesus de Dona Neusa e ainda com uma vela acesa; noutra, ele aparecia em primeiro plano, de pé, em oração, enquanto um dos padres, no fundo, claramente executava um sinal da cruz.
A turma gozava a situação de quem havia publicado dois artigos vergastando uns flagrantes publicados por Oliveira, igualmente sugestivos, mas que reproduziam apenas uma pose da valsa nupcial, sem que os nubentes realmente estivessem bailando no centro espírita, onde haviam assinado o seu compromisso conjugal perante um juiz de paz.
Sofia considerou:
— Nada como um dia após o outro. O mundo sempre dá suas voltas até alcançar o ponto de onde partiu. Aposto que ele pediu até os negativos.
— Ele me pediu pra inutilizar os originais, principalmente porque, brincando, eu inventei, como fez Norberto comigo, umas legendas comprometedoras.
Naquele instante chegaram as bebidas e todos fizeram questão de brindar ao sucesso do novel palestrante da federação. Norberto brindou a saúde dos presentes e dos ausentes, fazendo uma especial referência às duas meninas que brincavam ainda de existir nos ventres maternos.
Foi quanto bastou para estimular o apetite espírita dos presentes, adiantando-se Durvalina aos demais:
— Eu sinto que a minha filhinha está se desenvolvendo muito melhor do que eu mesma. Aprendi que os seus sentidos, agora aos cinco meses, estão bem avançados, sendo ela capaz de ouvir perfeitamente. Por isso, eu coloco as mãos na barriga e faço massagens, enquanto falo com bastante calma, como se a acariciasse. Também eu ponho uns CDs. de músicas clássicas.
Valdemar gracejou:
— Eu, quando estava na barriga de minha mãe, ouvi muitos concertos e óperas. Isso foi muito bom, porque me acostumei a dormir com toda a tranqüilidade com a tal de música clássica.
Mas Sofia não gostou da brincadeira:
— É bom você não levar na gozação esses assuntos que são muito sérios. A minha Pierina...
Norberto interrompeu-a:
— Você insiste com esse nome tão estranho. Será que ela vai gostar dele?
Durvalina veio em defesa da amiga:
— A gente se acostuma com o nome que ouve desde criancinha. Não fosse assim, o meu é que ia me causar problemas bem maiores. Norberto, Sofia e Valdemar são nomes mais comuns, mas eu acho que Pierina é muito bonito, além de conotar um clima italiano que calha muito bem nesta cantina. Por falar nisso, Oliveira, como é seu nome de batismo?
— Meu nome é João Batista. E como vai se chamar a sua?
— Você sabe que o filho do Norberto é o Júnior. A gente chama de Titinho. Mas eu não vou querer que a minha se chame Durvalina, então, pra não destoar, vamos pôr os nomes das avós: Neusa Maria. Mas eis que as pizzas estão chegando.
O garçom perguntou quem desejava a de quatro queijos e logo serviu um pedaço para cada um, deixando a outra de rúcula com mozarela de búfala sobre um aquecedor de brasas, numa mesinha ao lado. Oliveira pediu dois pedaços, avisando que era sua quota e que ele precisava sair logo. Aí o garçom dividiu os dois pedaços restantes ao meio, servindo uma fração para cada um dos demais. Como as moças recusaram, os pedaços delas acabaram indo para os pratos dos maridos.
Enquanto isso, Norberto devaneava:
“Quem sabe se o nome melhor não fosse Nelma?! A minha falecida bem pode estar reencarnando.”
A imaginação conduziu-o às teorias espíritas relativas à necessidade que têm os espíritos de voltarem à esfera carnal. Então, ele se recusou a admitir que Nelma precisasse retornar, colocando-a sobre o altar do coração, que era a cujos pés ele realizava as suas orações.
Deliciavam-se com as primeiras garfadas, quando Valdemar irrompeu com uma observação sui generis:
— Meu preclaro Norberto e queridos comensais não tão ilustres, vocês consideram esta pizza, naturalmente, muito boa, esplêndida, mesmo. O que lhe falta pra ser perfeita?
Sofia, conhecendo o marido, sabia que estava preparando alguma complementação sem tanta verve mas, com certeza, com alguma profundidade metafísica ou filosófica; portanto, respondeu:
— Pra mim, está faltando nela um pouco de comiseração pelo meu desejo de manter-me o mais em forma possível, apesar da Pierina, que como eu ia dizer antes, está recebendo o melhor tratamento do mundo, porque não pretendo transferir-lhe excessos de lipídios, uma vez que, já se sabe, está aqui a doutora que poderá confirmar, criança gorda, adulto com graves problemas de obesidade.
Oliveira, que tinha alguns excessos de gordura, protestou:
— O que a madame tem contra os gordos?
Sofia foi rápida:
— Eu não tenho nada; quem tem são as triglicídios, o colesterol de estirpe ruim, a pressão alta, a arritmia cardíaca, os infartos...
Durvalina participou:
— Se a minha queridíssima companheira de barriga me permitir, eu poderei acrescentar algumas denominações científicas, até com nomenclatura em latim.
Norberto foi obrigado a desfazer-se do enleio saudosista, não tanto pelas brincadeiras, mas porque vislumbrou o desenvolvimento retórico da pergunta do colega. Voltou, então, ao tema, colocando uma questão paralela:
— Eu acho que o que Valdemar deseja discutir é o fato de que a perfeição da pizza estipula para ela um desaparecimento natural, porque desperta o interesse, a gula, a cobiça e tantos outros defeitos próprios dos seres humanos imperfeitos deste planeta de provações e expiações.
Trazia um pedaço espetado no garfo, de modo que exemplificou pelo ato as observações que havia feito. No íntimo, tinha ido mais longe, mas não quis retirar do amigo o prazer de prosseguir estimulando a imaginação dos demais.
De fato, Valdemar emendou:
— Vocês já me conhecem e estão sabendo que, antes de malhar, ponho o ferro em brasa. Lá vai a questão principal.
Pigarreou, como a chamar a atenção de todos, e concluiu:
— Jesus é o nosso modelo de perfeição, conforme o nosso estimado orador lembrou. Acabou crucificado. Será que, neste mundo de tanta tristeza e de procedimentos tão rudimentares, quem arremeter sua personalidade nas sendas das virtudes não irá esbarrar, como dois mais dois são quatro, nos interesses, na gula, na cobiça, na inveja, na hipocrisia dos que têm o poder temporal e podem, no mínimo, pôr esses paladinos da moralidade no ostracismo de uma existência marginalizada? Vejam que estou com o prato vazio e que aguardo o garçom vir repartir a outra, por certo, menos ofensiva contra as dietas das madames.
Oliveira também havia dado cabo de suas porções, por isso foi informando:
— Lastimo (deixem-me também caprichar no vernáculo) ter de deixar tão amável, generosa e inteligente companhia, que a hora é chegada de partir. Deixo meus efusivos agradecimentos pelas instruções e dez reais que, calculo, cobrirão a minha parte da dolorosa. Até mais ver.
Mas, rápido, Norberto colocou a nota no bolso do jornalista, estabelecendo:
— Hoje você não vai pagar nada, porque eu estou querendo comprar-lhe um procedimento escorreito, ao falar de minha participação no evento. Sabe o que isso significa, grande fanfarrão? Significa que não quero uma só palavra de elogio nem que você encha a minha sala de gente.
Valdemar estava com o espírito aguçado:
— Caso contrário, vai nos ficar devendo uma refeição completa.
— Meus senhores, suas senhoras, eu, João Batista Oliveira, saio muito alegre e satisfeito, sabendo que não irei pagar nada a ninguém, ao menos forçado por tais contingências.
Aí chegou o garçom, colocando dois pedaços nos pratos dos homens e deixando os das senhoras vazios, que ambas se declararam satisfeitas. Mal o funcionário do restaurante virou as costas e as duas quiseram experimentar um pedacinho, que os respectivos maridos lhes serviram na boca.
Durvalina, contudo, preocupada com a linha de pensamentos tendente ao pessimismo, a partir da crucificação do Cristo, buscou dar um novo rumo à conversação:
— Eu não vejo a questão do bom e do justo desaguar na necessidade da perfeição. Se este orbe comporta mais sofrimento que perspectivas de felicidade, porque existe dor e morte, que se instalam em nossas preocupações diárias pela violência que impera na sociedade, também temos momentos da mais pura alegria. Digo mais: noitadas como esta, se soubermos apreciar e agradecer ao Pai, vão ficar registradas em nossa memória, como elementos de contemplação para futuras condições de inferioridade carnal.
Sofia desejou apartear e com tanta veemência o fez que nem deu tempo a Durvalina de passar-lhe a vez com a cortesia reinante:
— Está nos Evangelhos: as dores do parto são compensadas pela alegria da maternidade.
Falou e se arrependeu, caindo em si que a ex do amigo Norberto, sua querida amiga Nelma, faleceu logo depois de haver dado à luz o Norbertinho.
Mas o moço foi de uma gentileza a toda prova:
— Não se constranjam por mim. Posso testemunhar-lhes que os poucos momentos em que Nelma trouxe o filho ao seio foram da mais absoluta felicidade. Sofia, querida, você está certíssima e você, minha sábia doutora, que eu não me canso de agradecer pelo amor que me tem e que eu correspondo do jeito que posso, não poderia traduzir com mais precisão o que me vai no fundo da alma. Apenas...
O orador foi interrompido com a chegada do pessoal da federação, mais os outros dois palestrantes.
Norberto fez as apresentações:
— Minha esposa, Durvalina, e meus amigos, Valdemar e Sofia. Doutor Saraiva e Dona Rosinha. Aristeu e José Carlos vocês já conhecem.
Dona Rosinha logo foi reconhecida como a senhora das preces. Após os apertos de mãos, Aristeu assumiu a palavra:
— Querido Norberto, você não pode sair antes dos outros. O remédio vai ser escrever logo um livro, talvez de parceria com Valdemar, para ficar autografando. Assim você leva vantagem perante as pizzas.
De fato, o garçom logo se apresentou com alguns exemplares do cardápio, pediu permissão aos que haviam solicitado a pizza que se achava sobre o aquecedor e serviu um pedaço para cada recém-chegado.
Aristeu foi logo determinando:
— Eu acho que mais uma desta eu como, que não contém carne. Vocês se lembram que eu sou vegetarista, ou seja, consumo leite, queijo e ovos, mas carne de nenhum animal, nem peixes ou crustáceos. Dessa cerveja sem álcool eu também tomo, porque sou abstêmio. Digo logo tudo de uma vez porque não gosto de constranger as pessoas. Ficam os demais livres para pedirem o que quiserem.
Mais diria não estivesse o garçom esperando meio impaciente. Saraiva consultou os companheiros e fez o pedido, mantendo a linha sem carne e sem álcool dos demais.
Aristeu voltou à carga:
— Fico muito contente com os seus pedidos, porque é muito desagradável ficar sob a mira dos olhares das pessoas que consideram a gente com ares de superioridade, porque pensam que estamos desfeiteando os pobres mortais menos evoluídos, como se a gente considerasse os carnívoros ou onívoros mais primitivos.
Para Norberto, Aristeu parecia estar na defensiva, porque tal discurso ele já ouvira naquele célebre almoço citado por Oliveira. Sendo assim, obliterou a atenção, mergulhando nas idéias que ia expor quando foi interrompido:
“Que coisa mais interessante! A noitada estava absolutamente perfeita. Chegam outras pessoas demonstrando felicidade e o encanto se desfaz, como se a gente devesse reestruturar a mente para absorver, como diriam eles mesmos, as vibrações diferenciadas das pessoas. Mas devo atentar para este tipo de reação porque me parece que estou sentindo uma espécie de ojeriza pelo escritor. Se entrassem, ao invés dele, o meu chefe e orientador espiritual, Doutor Agripino, ou o Senhor Claudiomiro, que conduz os destinos do centro espírita com tamanha habilidade, ou até mesmo o Soldado Juvenal, que atua como curinga, quebrando todos os galhos daquela instituição, talvez se integrassem de imediato no clima.”
Mas precisou concentrar-se de novo na fala do palrador, que o interrogava diretamente:
— Que você achou da experiência de participar de um congresso na qualidade de palestrante? Acha que existe pressão psicológica maior do que aquela quando você se dirige às pessoas conhecidas de seu bairro? O Saraiva estava dizendo-me que ouviu só elogios à sua exposição. Parabéns!
Norberto coseu os temas com a linha forte da verdade:
— Falei como teria feito para qualquer auditório. Se gostaram do que eu disse, talvez tenha sido mais pela forma improvisada dos casos que narrei. Quanto à parceria com Valdemar, creio que o senhor esteja referindo-se ao texto em que ele apresenta os quadros mediúnicos da menina Beatriz. Se bem que eu tenha dado alguns palpites, não penso que meu nome deva figurar ao lado do nome de meu amigo. O Oliveira acaba de sair e eu pedi a ele que não publique a foto que tirou na minha sala com dizeres falsos, porque apenas quinze espectadores ouviram o que eu tinha para dizer a respeito de os bons terem de praticar atos de profunda reflexão, aplicando toda a moralidade que alcançarem na proteção dos menos capacitados, tudo isso com o fito de se tornarem um pouco melhores, e cada vez mais.
À medida que ia falando, ia deixando claro para os mais chegados que estava derivando perigosamente para a revelação de que sabia do constrangimento das fotos do almoço. Então Valdemar, meio alvoroçado, interrompeu-o:
— Você não vai querer repetir aqui tudo o que eu ouvi lá, não é verdade? O que eu posso dizer a respeito do sucesso da apresentação dos nossos dois eméritos oradores não é por ouvir dizer, mas por ter presenciado o profundo interesse do povo em conhecer mais a respeito das teses de seus discursos, através da aquisição de suas obras, as quais devo dizer que li e que gostei muito, ao contrário daquele que dizia: não li e não gostei...
Saraiva complementou:
— Oswald de Andrade, a respeito de uma publicação de Coelho Neto.
Durvalina aproveitou um hiato para reflexão do grupo e imprimiu um novo rumo à conversação:
— Doutor José Carlos, a sua exposição chegou a comover-me. Talvez por causa de meu estado interessante, com perdão da má palavra, eu fiquei relacionando todas as suas idéias ao espírito que estou abrigando em meu útero, imaginando se a minha filhinha, Neusa Maria, deixem-me apresentá-la, e também à Pierina, da Sofia, não está suficientemente lúcida para entender as vibrações das entidades que se mantêm à sua volta, as quais, aqui está o meu problema, poderiam inteirá-la dos acontecimentos do mundo, dando-lhe desde já um direcionamento para que cumpra seus objetivos de vida, segundo os prismas das novidades que vai aprendendo. Vou ser mais específica: segundo diversas informações contidas em mensagens dos irmãos maiores da espiritualidade, a gente ficou sabendo que os protetores assistem à implantação do espírito que vai nascer no momento genésico da união do espermatozóide com o óvulo. Essa assistência, conforme nos ensinaram, continua, em termos de influenciação fluídica ou energética, até o instante do nascimento. Então, não é lógico pensar que todos os problemas quanto à teoria e à prática da regressão às vidas passadas possam estar sendo traduzidas para o ser que está em fase de crescimento material, embora esteja completo quanto ao perispírito e à sua envergadura espiritual?
Estavam todos boquiabertos, inclusive o interlocutor escolhido pela médica e gestante. Mas José Carlos, alegando que ainda estava com fome, saiu pela tangente:
— Se eu mastigar um só pedaço da pizza que está chegando, ruminando uma resposta a uma pergunta que envolve um tema sobre que não refleti, com certeza terei indigestão. Eu entendi a proposta de trabalho, mas posso afirmar-lhe que precisaria escrever um livro para fornecer-lhe uma resposta apenas parcial. Em todo caso, registrei o seu problema e me proponho a estudá-lo com muita calma. Se render uma exposição, pode estar certa de que, antes que Neusa Maria nasça, ou Pierina, você receberá um convite.
Norberto foi quem aliviou as mentes preocupadas:
— Graças a Deus, estamos livres para pensarmos um pouco por conta própria, até que a generosidade de nosso confrade nos oriente. Devo dizer-lhes que foi Durvalina quem lembrou que amanhã deveria levantar cedo, mas parece que, para ouvir seu antigo professor, ela passaria noite e madrugada colocando suas questões.
Desta feita foi Sofia quem abreviou o claro azedume das palavras do amigo:
— Quando Sócrates abandonou o recinto do banquete, onde deixou os demais sob os efeitos do vinho, saiu firme e decidido a continuar suas reflexões filosóficas. Segundo Platão, o autor do relato, fora Sócrates quem houvera consumido a maior quantidade e, apesar disso, continuava lúcido, dominando seu organismo e não sendo dominado por ele. Eu não tomei um só gole e estou achando que tudo gira em torno de minha única lembrança literária para o momento. Acho que fiquei bêbada de conceitos, de idéias, de temas doutrinários e de escorços filosóficos. Proponho um brinde ao bom sucesso das armas portuguesas contra as holandesas e peço ao meu maridinho que me leve pra casa, que este há de ser meu derradeiro momento de glória nesta brilhante sociedade.
Demoraram os recém-chegados a entender que Sofia não estava simplesmente brincando, mas propondo, de maneira enigmática, é certo, um conceito muito sério a respeito da necessidade de adaptar a filosofia transcendental da vida e da morte como um todo ao momento presente. Não chegaram a esse resultado sem uma pequena ajuda de Aristeu:
— A nossa irmãzinha está dando seqüência metafísica às questões da doutora, pois, evidentemente, está sugerindo que a reflexão socrática não se coaduna com o pensar corriqueiro da quase totalidade dos homens e das mulheres. Aliás, Sócrates defendia a noção de que todos os conhecimentos se encontram nas pessoas, precisando apenas que alguém, metodicamente, parteje as mentes, o célebre sistema da maiêutica, para dar à luz a verdade. Não sei quanto a vocês, mas eu não penso assim, em absoluto. Se existe a lei do progresso, necessidade haverá de que os homens e mulheres se purifiquem para se melhorarem, ampliando a capacidade para percepção, análise, absorção e aplicação dos conhecimentos, que, assim, vão sendo assimilados a partir da verdade universal ou cósmica, de fora para dentro, portanto. O exemplo citado das discussões regadas a bom vinho é perfeito para comprovar que é de exceção o ritmo superior do pensador heleno, uma vez que os companheiros de discussão ficaram emborcados, como os copos vazios de seu rega-bofe. Dou meus parabéns a ambas e abro-lhes a perspectiva de um convite para se apresentarem perante o nosso público federativo, em palestras cheias de sua amável e iluminada sabedoria.
Quem sofria um pouco para seguir os pensamentos era Dona Rosinha, fervorosa cultora dos textos evangélicos estudados e explicados por Kardec e que se contentava em agir com superior discernimento na prática das virtudes, sem grandes lances intelectuais.
Mas os quatro amigos se levantaram, despediram-se protocolarmente, acertaram a sua parte das despesas diretamente com o garçom e partiram, já com uma pontinha de saudade daquela reunião que plenamente satisfazia o princípio exposto por Norberto da disposição efetiva de se prosseguirem, diante da pizza e da cerveja, os desenvolvimentos temáticos dos tópicos referidos nas palestras.
3. EM CASA
Como cada casal havia ido com seu próprio carro, do estacionamento cada um partiu para as respectivas residências.
Norberto e Durvalina seguiram para seu apartamento, preocupando-se o jovem senhor em entrar em contato com os pais através do telefone celular, motivo pelo qual transferiu a direção para a esposa.
— Pai, estamos saindo. Logo vamos chegar. O Titinho está acordado?
— Está dormindo. Sua mãe quer que ele durma esta noite aqui conosco.
— O senhor quer que a gente passe aí ou vocês estão pretendendo dormir logo?
— Vocês não estão cansados? Aliás, como foi a sua apresentação?
— Eu acho que as quinze pessoas presentes gostaram muito.
— A quantidade não importa; a qualidade é que vale. Depois, não ficou um registro que será divulgado?
— Parece que sim.
— Pois se lembre de que Jesus, além de alguns serviçais, estava diante dos doze apóstolos na célebre ceia na noite em que foi preso. Depois, todos nós pudemos ficar sabendo quais foram as palavras dele, porque...
— Pai, já entendi. Não estique muito o assunto...
— Estou falando somente pra animar o meu filhinho.
— Boa noite, pai. Um beijo na mãe. A Durvalina manda um abraço.
— Até parece que faz um tempão... Cuidado no trânsito. Boa noite.
Guardado o aparelho, a destra da motorista se estendeu para apertar a sinistra do carona e ambos seguiram calados até o prédio em que residiam.
O elevador passou pelo andar dos avós do Titinho e parou mais acima, onde se situava o apartamento do casal.
— Eu não me canso de admirar a solução de aproximar meus pais da gente, sem precisarmos ocupar os mesmos cômodos.
Durvalina, porém, não curtia o sentimento e, pela vigésima vez, registrou o temor que estava crescendo na mesma proporção de sua barriga:
— Cuidar de seu filho, que não tem mãe, é quase uma obrigação para Dona Neusa. Quero ver se a gente encontra uma solução tão boa quando eu precisar voltar a clinicar, depois de minhas licenças de gestação e de amamentação.
Norberto, no entanto, estava por demais aceso para os sucessos da noite, de modo que, ex-abrupto, passou para um tema levantado pela esposa:
— Que vantagens existem em se saber como desempenhamos nossos papéis em vidas anteriores? Como o José Carlos tratou desse assunto? Por que você o provocou no sentido inverso, fazendo que os nascituros tenham sessões de atualização do presente, através da participação dos guias ou protetores pessoais? Confesso que não entendi e olha que já li vários livros a respeito e você sabe que trago tudo na memória.
— Você sabe que eu respeito muito meu antigo professor; mais que isso, tenho-lhe verdadeira admiração e uma paixãozinha dos tempos universitários. Hoje ele se concentrou nos problemas das regressões de memória, dizendo o que nós já sabemos a respeito dos cuidados que se devem ter quanto a transformar os consultórios em casas de atendimento evangélico, uma vez que a hipnose, com facilidade, evolui pra mediunidade, de modo que, se existirem interesses subalternos, como geralmente sucede quando os clientes comparecem com traumas psíquicos de baixa categoria, espíritos malfazejos podem assumir o controle das pseudo-revelações e desencadearem uma série de mistificações para iludir médico e paciente, enredando-os em falcatruas.
— Agripino é de opinião que essas sessões também não podem acontecer nos círculos espirituais dos centros espíritas, cuja finalidade é dar melhores condições de vida aos encarnados e propiciar aos desencarnados o reconhecimento de sua condição, sob o amparo dos guias e protetores. Caso haja uma equipe de bom desempenho mediúnico e um ou dois doutrinadores experientes, diz ele que é possível criar-se um serviço voltado para a terapia através do conhecimento das vidas passadas, mas isso com todas as precauções redobradas, porque nem sempre os que se submetem ao tratamento têm desenvolvimento mediúnico satisfatório para impedir a intromissão dos obsessores. Por outro lado, confiar em que outros médiuns ofereçam as descrições ou narrativas dos fatos pregressos de outras pessoas só em casos muito excepcionais, através de expoentes do espiritismo experimental.
— Querido, você não quer deixar esta conversa pra amanhã? Eu estou precisando dormir e, se a gente continuar, vou acabar perdendo o sono.
— Só mais uma coisinha: qual o motivo de sua provocação?
— José Carlos dedicou uma boa parte da exposição às lembranças que as pessoas trazem dos tempos em que passou no ventre materno. Ele fez questão de demonstrar que, através da hipnose, é fácil de restaurar os acontecimentos externos pelas repercussões que têm na personalidade em formação. Assim como o fumo, o álcool e as drogas se infiltram para dentro do organismo do feto, também os medos e as fobias em que se transformam as brigas, as discussões e os transtornos por que passam as mães impressionam a mente do bebê, quedando em seu inconsciente, terminando por projetar-se no caráter da criança, do jovem e do adulto, causando problemas de todo tipo. Foi quando me lembrei das noções a que aludi na cantina, ou seja, de que os protetores, nesse período de gestação, estão atuando ativamente sobre o ser em desenvolvimento, instruindo-o de acordo com suas necessidades pessoais. Eu queria saber se haveria algum choque entre as informações carreadas pra psique do indivíduo em processo de alienação do passado, já que são bem poucas as crianças chamadas precoces, as quais nós consideramos com o campo da memória ou das habilidades aberto pra que se possam filtrar certos conhecimentos contidos no próprio espírito. Não me faça dizer mais nada, por favor.
Já no leito conjugal, Norberto passava a mão sobre a pele distendida da barriga da esposa, falando baixinho com a filhinha palavras de muito amor e de muito carinho.
Quando percebeu que Durvalina dormia, Norberto voltou-se para o outro lado, criando um problema que não soube cercar de informações do mundo real:
“Quando Nelma engravidou, eu não pude acompanhá-la para as aulas às gestantes na clínica em que fez o acompanhamento pré-natal. Eu me lembro bem de que ela insistiu pra que nos resguardássemos dos desejos sexuais a partir do quinto mês de gravidez. No entanto, com os conhecimentos que acrescentei ao meu acervo, posso inferir que, tomando-se cuidado pra não machucar a criança, uma relação afetiva que leve a uma conclusão satisfatória deve originar um padrão sentimental de alto nível para a psique do pequenino ser em fase de crescimento, do mesmo jeito que as maldades lhe causam traumas para o resto da vida. Será que, nos cursos para gestantes dos centros espíritas, este tipo de questionamento é feito? Como médica, Durvalina teria um outro posicionamento que o da abstenção, uma vez que até agora não me fez nenhuma restrição à libido? Será que Sofia e Valdemar estão tendo orientação adequada? Ora, ora, isso é burrice minha: está claro que as duas amigas devem tratar desses assuntos com discernimento científico. Eu é que estou defasado, tão preocupado com que os bons se tornem melhores, esquecendo-me, eu que nada esqueço, de verificar até mesmo o que se passa dentro das casas espíritas, pra que preparem as futuras mães o aconchego psicológico dos filhos.”
Virou de lado, agradeceu em prece ao Senhor por mais um dia tão produtivo e nem chegou a terminar o pai-nosso com que encerrava as orações, uma vez que cedeu ao cansaço e adormeceu. Adormeceu e sonhou. Mas, ao contrário de seu poder de reminiscência, ao acordar, nada daquela noite se encontrava registrado em seu campo mnemônico. Foi o bastante para uma interrogação com promessa de investigação:
“Quantas caixas de memória possui o ser humano encarnado? No cérebro, com certeza. E no perispírito? E no espírito?”
Sabia que a questão se fixaria indelével em sua mente e se despreocupou em realizar uma busca imediata. Durvalina já estava de saída, de modo que não teve tempo de levar a ela os problemas da noite.
4. NA ESPIRITUALIDADE
Etelvino e Glauco acompanharam com o máximo de interesse tudo quanto passou pelos pensamentos e pelos sentimentos dos pupilos, respectivamente, Norberto e Valdemar.
Ambos foram designados como guias e conselheiros espirituais dos dois rapazes desde que receberam, com méritos, o grau de socorristas na Escolinha de Evangelização sediada em sua colônia, na esfera ou círculo espiritual. Substituíam parentes próximos dos assistidos em diferentes vidas, tendo em vista que estes foram requisitados para tarefas mais importantes em âmbito de superior discernimento, precisando dedicar-se com exclusividade aos estudos antes de imergirem no serviço nobilitante.
Sempre que podiam, Etelvino e Glauco trocavam idéias, o que se dava com muita freqüência porque os encarnados eram, além de colegas de profissão, amigos em situações sociais e religiosas, havendo ambos adotado o espiritismo mais ou menos ao mesmo tempo.
Quem se juntara ao grupo dos protetores familiares recentemente fora Nelma, a mãe de Titinho, mas esta ainda estava aprendendo com os professores, de sorte que o filho recebia assistência múltipla. Sendo assim, excluídos os outros espíritos familiares, muito mais interessados em resguardar os parentes das travessuras menores, que todos aqueles encarnados se satisfaziam com uma vida sem grandes ambições, levando a bom termo uma programação cármica bastante amena e de acordo com as requisições próprias da natureza, ficavam os dois mais ou menos isolados, tratando de insuflar no espírito dos protegidos, principalmente, a necessidade de evoluírem de maneira consciente. Isto agora, vencida a crise por que ambos passaram dois anos antes com o resultado de suas tentativas de extorquir os comerciantes e industriais, crime facilitado principalmente pelo ambiente corrupto em que exerciam as funções de fiscais.
— Etelvino, será que nossos amiguinhos superaram de vez a tendência negativa de suas personalidades, através de sadia sublimação, ou estão direcionando seus pendores de maneira muito mais sutil para concepções criminosas de íntima realização?
— Você está querendo dizer que eles estão vigiando os atos mas escondem os males e vícios de sua constituição espiritual, por medo de que nós, seus protetores, cuja existência eles não desconhecem, tendo em vista os estudos teóricos que têm realizado, possamos acusá-los de hipocrisia? Em outras palavras: você está julgando que eles não percebem toda a extensão de suas mentalizações, administrando mal os conhecimentos da doutrina espírita?
— É quase isso. Eu estou preocupado, principalmente, com o fato de que, nestes últimos meses, a vida dos dois tem transcorrido sem desafios outros senão o de se apresentarem para o serviço voluntário no centro espírita com o máximo de boa vontade, levados pelo maior empenho das esposas. Não estaria na hora de provocar alguns transtornos que eles precisariam enfrentar com denodo, com altruísmo verdadeiro e com abnegação?
— Glauco, querido, você percebeu quando Norberto suspeitou de sua reação contrária ao aperfeiçoamento moral em que se empenha, justamente quando decretou que se antipatizava com Aristeu, ou você estava surfando nas ondas das vibrações emanadas da personalidade de seu pupilo?
— Confesso que me passou.
— Então, é preciso que lhe diga que, talvez, a sua observação caiba em relação ao seu afilhado. Quanto ao meu, ele tem tido necessidade de maior concentração sobre os temas espíritas, dado que a função de palestrante requer contínuo despertar para os desvios de rumo quanto aos preceitos que se vão aplicando. Assim, discorrendo como os humanos devem progredir, incide sobre sua mente a perspectiva premente de auto-análise que lhe permita avaliar as dificuldades que os ouvintes enfrentarão a cada colocação sua.
Naquele momento, estavam os dois reunidos porque Valdemar e o amigo se ocupavam em elaborar juntos o primeiro rascunho de um anteprojeto de lei com vistas a restringir o acesso do corpo de fiscais às informações arquivadas nos computadores do governo. Os problemas formais que estavam enfrentando, porém, não interessaram a nenhum dos protetores do etéreo. Sendo assim, prosseguiam examinando os últimos acontecimentos.
— Glauco, querido, preciso contar-lhe que Norberto começa a se preocupar com o tônus de moralidade nos centros espíritas. Logo mais, irá colocar-se no mesmo pólo em que se acha Aristeu, que considera o recinto em que se dão os encontros orientados pela doutrina espírita entre os seres dos dois planos imediatos, com o mesmo ou quase o mesmo respeito dos católicos, que julgam guardar Deus nas hóstias consagradas depositadas nos sacrários de cada templo.
— Como assim? Nada me fez perceber essa tendência. Ao contrário, noto um certo desafio na postura dele quanto a debater temas sutilíssimos para a maioria dos adeptos da doutrina, como os da palestra em que sugere, com muita perspicácia, que todos os homens estão na Terra para aprender, o que inclui, ipso facto, os dirigentes das casas e das federações espíritas. Não vejo nisso senão um início de crise de autoridade, enquanto você está vendo o oposto, ou seja, que ele está bandeando-se para o lado dos medalhões...
— Explique medalhões, para que eu não sinta no termo, como não senti em suas vibrações, nenhuma crítica pejorativa.
— Etelvino, amigo, de fato, o termo pode induzir a erro na interpretação de meu intento de me referir aos que ocupam há mais tempo postos de responsabilidade quanto aos destinos do movimento espírita no âmbito de suas atuações, como a pessoas que se utilizaram tantas vezes dos mesmos processos de raciocínio que acabaram por cristalizar fórmulas de defesa, de sorte que são avessas até à introdução dos novos conceitos desenvolvidos pelas ciências, como fruto de descobertas recentes, no mínimo muito mais adiantadas que nos tempos de Kardec.
— Pois eu posso acrescentar, quanto ao aspecto da moralidade, que é o que me está particularmente interessando no caso de Norberto, que as restrições aos temas de ordem sexual, por exemplo, limitam a capacidade dos centros de atuarem positivamente na orientação segura de como fruir os prazeres orgânicos, sem lascívia e sem malícia, no sentido de aumentar o interesse pelo conhecimento dos métodos e das técnicas de aprimoramento da psique, no oneroso campo dos preconceitos.
Glauco se interessou sobre o fato que levou Etelvino a tais conclusões e este narrou-lhe com pormenores toda a conversa entre marido e mulher, como ainda a expectativa que o rapaz criou quanto a investigar o que se passa a portas fechadas entre as gestantes e suas instrutoras.
— Quer dizer, Etelvino, que Norberto irá vetar, conforme sua intuição, a transmissão às assistidas de noções relativas ao desempenho sexual no período de gravidez?
— Talvez isso possa ocorrer, mas estou bem mais preocupado com o caso contrário, ou seja, que ele pretenda abrir o jogo e colocar o tema numa palestra para o público em geral, crente de que estará fornecendo elementos preciosos para que cada indivíduo possa analisar passado e presente, com o fito de avaliar se está praticando o ato sexual em harmonia com os ditames da doutrina espírita ou se simplesmente está carregando na alma o peso de culpas milenares que lhe foram insufladas pelo sacerdócio cristão, que se formou através das informações bíblicas de que José era casto, Maria, pura, e Jesus, inocente.
— Ou seja, que o sexo é pecado, mesmo dentro do casamento mas fora da perspectiva da reprodução, como pregam certas tendências religiosas.
— Você pronunciou a palavra mágica: pecado. Esse conceito é muito difícil de substituir-se pelo de erro e acerto, quando a pessoa se deixa envolver pela dúvida de que seu procedimento nem sempre foi tão ilibado quanto gostaria que fosse.
— E aí, Etelvino, você está esperando uma onda de protestos oficiais desde os puritanos até os fariseus, em caso de consulta prévia aos dirigentes e responsáveis pelo setor?
— Não seja tão duro. Primeiro, se todos os humanos fossem puritanos, muitos males do planeta jamais teriam ocorrido. Segundo, o termo fariseu se carregou de conotações pejorativas que, por si mesmas, alcançam destruir as pessoas a que se aplica o vocábulo apenas porque, historicamente, Jesus lhes combateu a hipocrisia e eles prepararam a armadilha para crucificá-lo. Mas será que nenhum fariseu jamais se salvou?
— Retiro o que eu disse e reformulo o pensamento: será que as pessoas mais recatadas, dentre as que organizam o setor de exposições, cursos e congressos, com medo de que certas idéias avançadas possam transtornar o mundo moral que os espíritas construíram no lar e nas casas de evangelização e mediunidade, vão causar problemas ao novel palestrante, tolhendo-lhe o entusiasmo?
— Agora você chegou ao ponto.
— Pois precisamos trazê-lo a nós durante o sono, para discutirmos o assunto e para lhe passar as nossas preocupações que, como ocorre com freqüência junto a homens e mulheres encarnados, se transformam em intuições que despertam a consciência para a investigação pragmática dos temas.
— Glauco, você já conseguiu que Valdemar compareça a algum encontro nessa condição?
— Nunca.
— Nem eu quanto a Norberto.
Aí ambos imergiram em suas lembranças, buscando caracterizar as razões dos protegidos para reagirem negativamente a todos os convites.
5. RACHANDO LENHA
— Você acredita, Valdemar, perguntou de chofre Norberto, que esta noite, agarradinho à minha mulher, eu pensei em você e Sofia em intimidades?
— Por que isso, agora?
Valdemar não dava ponto sem nó, por isso, desconfiava sempre das introduções, sempre esperando a seqüência dos assuntos. Não estranhou o tema, a não ser que envolvia sua esposa, o que era absolutamente inusitado.
— Fiquei cismado quanto à possibilidade de os pais, amando-se física e emocionalmente, transmitirem ao feto o calor de seus sentimentos e o carinho de seus afagos. Mais ainda, preocupei-me com a repercussão que possa o prazer sexual da mãe provocar na mente do filho. Aí me veio a idéia de que tudo isso possa ser estudado à luz da doutrina espírita, firmando-se um ponto de vista entre filosófico e científico que pudesse ser tema, não digo de uma palestra pra um público aberto, mas entre quatro paredes, pra gestantes e até pra casais, como orientação pra um tipo de felicidade que incide diretamente sobre a paz e a tranqüilidade dos espíritos, através da satisfação da libido que, nós sabemos, caso pervertida, causa profundos desvios de personalidade, quando não crimes horrendos.
— Só porque você pensou em mim e em Sofia...
— Não foi bem assim. Na verdade, eu pensei em Nelma grávida e em seu pedido pra que nós nos abstivéssemos a partir do quinto mês. Não me preocupei com as complicações que a levaram à morte, porque cumpri o desejo dela, acreditando que viesse de uma recomendação do médico. Agora, veja bem, Durvalina é médica e ela não me impôs a mesma condição. Foi aí que eu pensei em você, sem me dar conta, de início, que as nossas dignas consortes são muito amigas e que devem conversar a respeito de tudo quanto é coisa que envolve a gravidez de ambas.
— Você está querendo saber se estamos mantendo nossa vida sexual ativa?
— Eu não estou querendo saber exatamente isso. Eu estou querendo saber se Sofia foi orientada tecnicamente pra um procedimento condizente com seu estado e com a situação da sua Pierina.
— Nós conversamos a respeito e ela me contou que, quando pode, vai ouvir as palestras do curso de gestantes, uma vez que ao centro vão mulheres absolutamente ignorantes, inclusive algumas jovens que nem ficaram sabendo como é que engravidaram. Pelo que eu sei, o interesse das mulheres nesse estado se concentra em como proporcionar aos filhos as melhores condições de saúde, e a si mesmas o melhor parto possível, a chamada hora: quando vai ser sua hora, já chegou a hora de fulana...
— Quer dizer que você não tem noção alguma quanto a um relacionamento entre afeto e educação intra-uterina, entre dispositivos doutrinários e necessidades orgânico-psicológicas? Em suma, Sofia não lhe disse nada a respeito de se ensinar às gestantes os cuidados físicos do sexo, pra se poder, através do ato sexual, transferir ao campo psíquico das crianças o amor dos pais entre si e também o compartilhamento das sensações prazerosas que almejem possibilitar a elas?
— Se você quiser saber, tudo isso é novidade pra mim. Mas, pensando bem, o que você está dizendo tem fundamento. Se as coisas ruins tornam as crianças, ou melhor, as pessoas assustadas, medrosas, tímidas, revoltadas, as coisas boas devem, ao contrário, provocar-lhes reações positivas, favoráveis a que a constituição do caráter ou da personalidade daquelas criaturas tenha muito a ganhar. Mas onde você irá conseguir base doutrinária pra justificar um desenvolvimento desse tipo?
— Não é difícil. Tendo em vista que Kardec estabeleceu com clareza o que é o bem e o que é o mal. Caracterizando o fato como um bem, a partir daí, cada argumento irá prender-se nesse princípio e a gente pode levar o desenvolvimento até um ponto em que fique certo que a vida física, em todos os setores, deve ser o mais pura, o mais rica e o mais sadia possível, pra que o espírito possa discernir qual o melhor caminho em cada circunstância, ainda que o tema em pauta carregue em si uma condenação milenar dos partidários de que as coisas do sexo não podem extrapolar o âmbito restrito da câmara nupcial, ou que nome se dê ao quarto dos casais.
— Norberto, você, pelo que dá pra sentir, já se adiantou bastante na apreciação desse assunto. O que você está escondendo de mim?
— Não estou escondendo nada. Apenas eu não disse que todo este raciocínio se originou de uma observação que Durvalina fez a respeito da exposição do José Carlos. Eu explico.
De fato, Norberto foi, fala a fala, repetindo a conversa que teve com a esposa, não se esquecendo sequer da entonação com que as palavras foram ditas. Acostumado com tais demonstrações de evocação mnemônica do companheiro, Valdemar se deliciava com o modo arguto e expressivo do narrador.
Quando Norberto terminou, Valdemar observou:
— Pelo que eu entendi, Durvalina coloca a criança, que se encontra perturbada no seio da mãe, na condição de tábula rasa pra receber influências de encarnados e de desencarnados, cujos interesses podem ser ou confluentes ou conflitantes.
— Querido amigo, você entendeu perfeitamente o ponto que ela assentou.
Nesse meio tempo, Agripino havia chegado e teve tempo de ouvir as observações de Valdemar. Atreveu-se:
— Meus irmãos, tenho para comigo que os fetos não estejam tão perturbados quanto os autores espíritas costumam dizer. Na verdade, é preciso entender que essa tábula rasa que Valdemar disse que Durvalina assentou se presta para as primeiras impressões na nova condição humana do espírito reencarnante. Eu acho que se trata de uma fase em que as pessoas são treinadas para irem recebendo as informações e impactos que deverão enfrentar vida afora. Se não se esquecessem das existências anteriores e conseqüentes conhecimentos de todas as espécies, chegariam argumentando, porque manteriam vivaz a inteligência espiritual, apesar de estarem bloqueados pela necessidade de se apetrecharem fisicamente, já que o organismo vai desenvolvendo aos poucos: não se compreenderia que os recém-nascidos, ao invés de vagir, expendessem conceitos filosóficos, científicos, artísticos etc.
Norberto prestava atenção mas não punha fé em que o chefe estivesse falando muito a sério. É que conhecia a excelente figura de dirigente espírita de Agripino e estava aguardando uma resposta que o outro fora buscar a respeito do serviço. Então, perguntou:
— Meu querido amigo e superior, qual vai ser essa informação e esse impacto que vamos ter de enfrentar num momento de transição entre a elaboração de nosso anteprojeto de lei e a promulgação dela?
— Como você disse a Valdemar, você entendeu perfeitamente o ponto que eu estava assentando, qual seja, que podemos suspender a confecção da minuta, devendo concentrar-nos em estabelecer critérios para a fiscalização dos órgãos estaduais se coadunarem com a moralidade que se presume deva corresponder ao estrito cumprimento das leis. Em lugar de restringirmos as ações dos fiscais através de uma nova lei que levaria um tempo enorme para transitar pelas várias comissões da Assembléia Legislativa, optaram as autoridades que devemos, com nossa experiência, elaborar um código de conduta, delimitando a atuação dos nossos companheiros, mas oferecendo a eles a possibilidade de apontar as falhas de escrituração do comércio e da indústria, antes que se lavrem os termos de multas.
Valdemar logo atinou com o objetivo visado:
— Significa que se retira do poder do sistema de fiscalização a aplicação de penalidade aos infratores? Quem, então, vai chegar perante os sonegadores com os termos das leis?
— O governo não pode arcar com as despesas relativas à composição de mais um quadro de funcionários. Então, em lugar dos atos de infração, teremos de estabelecer um roteiro que vise a colocar os faltosos de imediato diante do Poder Judiciário, oferecendo denúncia de lesão do erário público e pedido de ressarcimento dos débitos ao Juizado de Pequenas Causas.
Norberto foi logo colocando um obstáculo:
— Existem limites pecuniários para esse tipo de ação legal. Os grandes sonegadores ficarão de fora.
Agripino não se deixou atrapalhar:
— Exatamente. Mas para os grandes, a denúncia subirá para os tribunais superiores, conforme ficar estabelecido no roteiro que iremos preparar.
Valdemar questionou:
— Se não mudarmos as leis, os próprios fiscais impetrarão medidas judiciais pra fazerem prevalecer o código existente. Cabe a eles fiscalizar e aplicar as sanções legais; se forem impedidos, vão chiar.
Norberto acrescentou:
— E com toda a razão.
Mas Agripino, sem se abespinhar, confirmou:
— Nós acabamos ficando numa posição cômoda demais. Sabemos que a coisa não vai dar certo, mas ninguém nos acusará de não atuarmos na nossa área. Isso se realizarmos o que nos estão solicitando. Talvez o pessoal lá de cima esteja querendo avaliar toda a extensão da revolta que uma tal medida irá causar. Talvez eles estejam só querendo mexer no vespeiro.
Norberto foi taxativo:
— Talvez eles não estejam querendo mexer em nada, porque nós, do mais baixo escalão, teremos o nosso trabalho anulado, caso o próprio departamento jurídico da Secretaria vete o projeto de portaria.
Valdemar sugeriu:
— Como estamos descrentes da eficácia dessas medidas meramente paliativas, eu recomendo que a gente acelere o trabalho e, em dois ou três dias, faça subir às mãos do responsável. Logo ficaremos sabendo até que ponto vai a vontade de moralizar o serviço.
Agripino concordou:
— Se Norberto aceitar a sugestão, eu colaboro e, muito antes do prazo de três meses que nos deram, eles receberão o trabalho, mesmo porque isso de impedir o acesso às informações arquivadas também estava parecendo-me fora da realidade.
6. TUMULTUA-SE UMA RELAÇÃO
Beatriz e Cláudio namoravam, platonicamente. A ex-empregadinha de Dona Neusa e ex-babá de Titinho, com seus quatorze para quinze anos, encantara-se com o assédio do moço mais bonito da escola, aluno do segundo grau e preeminente membro da juventude espírita do Amor Fraterno de Jesus. Ela mesma em fase de embelezamento fisionômico, dera um esticão no corpo, crescendo mais de dez centímetros no último ano, passando já de um metro e setenta e cinco, formando, cada vez mais, um par de grande formosura com o metro e noventa e tantos do rapaz, destacando a cor negra dela ao lado no mulato quase branco do jovem.
Dona Isaltina, a mãe da mocinha, desde que ela começara a freqüentar a escola de manequins e a posar para fotos como modelo de roupas e produtos diversos de beleza, não desgrudava dela, indo por toda a parte aonde era convocada a filha. Repetia-lhe sempre que todo cuidado era pouco, que havia, nessa selva, muito lobo mau atrás do Chapeuzinho Vermelho.
Por seu turno, Cláudio também exercia estreita vigilância, procurando espantar as águias endinheiradas que poderiam burlar a atenção da mãe, que sempre existem carrões de último tipo freqüentando as estradas por onde passam as raparigas em flor.
De fato, não fora a sorte de terem encontrado um empresário de ilibada moral, senhor de certa idade e muitíssimo experiente quanto aos altos, baixos e derrocadas das moçoilas e dos mancebos, e talvez nem um nem outro houvesse resistido às numerosas propostas indecentes que iam topando em seu jornadear pelas ínvias sendas do materialismo consumista.
De longa data, Dona Isaltina levava a filha ao terreno de Umbanda por ela freqüentado, ansiosa por ver disciplinada uma inconteste tendência da filha pela mediunidade de efeitos físicos, mediunidade que culminara no célebre episódio dos apedrejamentos do telhado da casa da patroa e do amigo e companheiro de muitas horas, o Doutor Norberto. Este fizera questão de levar a então menina-moça ao centro espírita por ele freqüentado, aquele mesmo do Claudinho, onde ela, que cursava na época a quinta série do primeiro grau, ia decifrando, aliás sem muito esforço, as noções elementares da doutrina.
Ali, o namorado exercia funções importantes junto aos jovens integrantes da mocidade espírita, de sorte que se fortaleceram os laços afetivos entre ambos pela admiração dela por ele, e pelo encantamento dele por ela. Quando começaram a ir à escola juntos, a partilhar as instruções dos instrutores de passarela, a estudarem as obras de Kardec, logo estavam também indo juntos ao terreiro de Umbanda.
Em dois meses, as fotos do casalzinho começaram a aparecer nas revistas especializadas, até que ambos se viram na capa de uma delas de alcance nacional, em trajes de noivos. Foi quando os parcos cachês do início começaram a se transformar numa boa fonte de renda. Dona Isaltina, que desde o início abandonara a casa de família em que atuava como empregada, passou a gerenciar a parte financeira, exercendo um controle muitíssimo rigoroso sobre cada centavo ganho pela filha.
Foi navegando nessas águas ameaçadas pelas intempéries dos interesses que Beatriz recebeu um convite, à primeira vista, irrecusável: uma viagem ao derredor do mundo, patrocinada por uma nova linha de cosméticos de uma multinacional líder de mercado. Não iria sozinha, que a mãe obrigatoriamente tinha de acompanhá-la por ser a filha menor de idade. Mas Cláudio ficaria, apesar de haver, no grupo de quinze modelos, quatro rapazes.
Beatriz logo se preocupou:
— Se você acha que eu não posso ir, eu não vou.
— Você disse que vai ficar seis ou sete meses fora. Quando voltar, se voltar, eu nem vou reconhecer você. Mas eu não tenho como dizer não, se foi para isso que pensamos nesta carreira.
— Se você disser não, eu não vou.
Cláudio acreditou e disse:
— Está bem. Não, não e não. Eu não quero perder você.
Ambos se abraçaram e algumas lágrimas lhes umedeceram os olhos.
Dois dias depois, tendo Beatriz faltado a todos os compromissos, voltaram a se encontrar na agência em que tinham as aulas de passarela.
— Querida, que aconteceu que você não deu notícia?
— Você podia ter passado em casa.
— Eu não quis enfrentar Dona Isaltina, que deve estar uma arara comigo. Você contou a ela, não contou?
— Claro que contei.
— E ela?
— Você quer mesmo saber?
— Pronto. Ela quer que você aceite...
— Não seja tonto. Se eu não for, ela também não vai. Sabe o que ela me disse? Que, quando ela voltar, você vai reconhecê-la muito bem.
— Quer dizer que é definitivo?
— Infelizmente...
— Até parece que você está feliz.
— Claro que estou. Eu pensei que eles podem convidar você também. Com certeza, você não ia recusar pra ficar comigo.
Cláudio corrigiu-a:
— Para ficar comigo.
Esmeravam-se o mais que podiam, sendo que o rapaz tinha um grau de cultura livresca bem superior aos colegas. E estava cuidando que a linguagem da amiguinha progredisse no sentido da absorção dos dizeres em voga e, mais ainda, na linha de uma formulação adequada aos universitários, que era seu objetivo mais imediato, já que terminava o segundo grau. Coisas de pré-calouro.
Aí lhe ocorreu que o desaparecimento por dois dias podia ter algum significado quanto à benquerença abalada da namorada:
— Que fez você ontem e anteontem?
— Fui com minha mãe cuidar dos passaportes. Além disso, levamos o contrato ao Doutor Norberto, pra que... para que ele aprovasse. Não era assim que você iria fazer no seu caso?
Desta feita não houve abraço nem lágrimas. Cláudio como que murchou, mas não quis ouvir nenhuma palavra de consolação. Simplesmente, foi embora, rápido como o pensamento de que o mundo lhe estava desabando.
Beatriz não se surpreendeu, revivendo as advertências maternas:
“Você vai ver, minha filha, que ele vai te virar as costas. Depois vai se arrepender e voltar correndo. Mas você ainda não tem nem quinze anos e tem todo o futuro pela frente. Se ele gostar mesmo de você, vai esperar, estando você longe ou perto, porque, quanto a se casarem, sou eu que estou dizendo, só quando os dois estiverem com um bom pé de meia, ele estiver formado e você puder se virar sem mim.”
Beatriz não tinha muita certeza de que a mãe estava certa, que ela era apenas quinze anos mais velha. Mas também sabia como era a sua casa, seu barraco, embora de alvenaria, no meio de uma favela antiga que se transformava, e como eram as casas dos ex-patrões, onde um dia ocupou um quartinho nos fundos para fugir da condição miserável de seu próprio lar. Lembrou-se de que não conhecera o pai e ficou muito feliz quando pensou que a mãe nunca trouxera homem algum para uma convivência precária. Mas a sua imaginação, naqueles poucos minutos que tinha antes de ser chamada, vagou pelo passado, representando a patética figura de Norberto chorando sobre o caixão da esposa, Dona Nelma, enquanto ela era chamada por Dona Neusa para se instalar naquele quartinho que representava sua morada no paraíso. Viu-se debaixo dos spots dos estúdios fotográficos e imaginou-se num transatlântico, atravessando os oceanos, que tanto admirava na televisão. Não se viu ao lado do amigo que se retirara tão tristonho, mas confiou em que saberia discernir quais sentimentos seriam os mais importantes numa visão que lhe apareceu de um futuro indeterminado, quando ela descia do navio, correndo para os braços do jovem que tanto amor sempre lhe revelara.
7. NEM TUDO SÃO FLORES
No sexto mês de gravidez, Durvalina começou com hemorragias. O bebê estava bem e todos os exames levavam a crer que havia algum problema no ovário.
Médica, procurou auxílio profissional da mais alta categoria, sem que, contudo, os primeiros tratamentos estancassem o sangue. Não que o fluxo fosse grande, mas, no mínimo, recomendava-se repouso e a paciente estava assoberbada de compromissos.
Norberto teve dificuldade muito grande para mantê-la em casa, precisando ele mesmo solicitar permissão para faltar ao trabalho, para o que obteve o crédito de dez dias, ainda mais porque todos os da comissão estavam isentos da assinatura do ponto ou do registro de presença, dado que a necessidade obrigava a que os membros se deslocassem com freqüência para muitos departamentos de diferentes Secretarias de Estado.
Por seu turno, José Carlos, ao saber dos problemas da ex-aluna, providenciou para que médicos recém-formados lhe dessem cobertura no consultório, no hospital e até no ambulatório do centro espírita. Isso não impediu que Durvalina se mantivesse a par de todas as consultas, exigindo dos substitutos que lhe relatassem, via telefone, cada caso e seus desdobramentos.
Norberto afligia-se com tal preocupação, mas a esposa argumentou:
— Querido, duas coisas correm a favor desse meu interesse. A primeira é que fico bem mais tranqüila podendo acompanhar os tratamentos propostos pra cada paciente meu. A segunda é que me esqueço um pouco dos meus sintomas.
— Mas você precisa pensar em nossa Neusa Maria, que...
— E quem é que lhe disse que eu não estou cuidando dela?! Aliás, ela tem recebido muito mais carinho, porque eu tenho muito mais tempo pra enviar-lhe as vibrações de meu amor, através dos afagos e das massagens que lhe faço.
Havendo diminuído a hemorragia, Durvalina desejou levantar-se um pouco. Mas Norberto não confiava no diagnóstico da esposa, de modo que lhe impôs uma condição:
— Eu só vou deixar você andar por aí, com alvará profissional. Vou chamar o Doutor Jaime...
— Eu fico muito admirada com todo esse cuidado seu. A criança está no sexto mês, mas uma cesariana é possível e a gente poderia montar aqui em casa uma perfeita área de isolamento e de terapia intensiva, trazendo todo o aparato que um prematuro necessita, como você fez em relação ao Titinho.
— Agora você vai poder começar a entender a minha preocupação. Você não acha que enfrentar o luto duas vezes...
Não concluiu. Uma sombra pairou-lhe sobre a mente, como se o quer que dissesse tivesse o condão de atrair a desgraça.
Durvalina puxou o marido para junto de si e colocou-lhe a cabeça sobre a barriga. Norberto temeu exercer uma pressão prejudicial, mas a esposa o tranqüilizou:
— Sinta o coraçãozinho dela batendo. Veja que maravilhoso é o despertar da vida.
Norberto, contudo, não conseguiu ouvir nada, mas percebeu que a filha se mexia bastante ativa. Em lugar, porém, de alegrar o pai, este ficou ainda mais temeroso:
— Acho melhor eu arrumar outra pessoa pra tomar conta de você. Vou aceitar a oferta de sua mãe. Aliás, querida, eu tenho uma pergunta a lhe fazer que me está perturbando.
— Pergunte o que quiser.
— Não terão sido as nossas relações que causaram o seu problema?
A médica não respondeu de imediato. Fez antes um retrospecto mental das atividades sexuais do casal e chegou à seguinte conclusão:
— Eu não vejo como isso possa ter qualquer relação com a minha hemorragia. Nós tomamos todos os cuidados. Se você quiser saber, mesmo agora não haveria nenhum perigo...
— Quem é que conseguiria sequer pensar nisso numa situação destas?
— Você é que não sabe. Pra dizer o mínimo, muitas mulheres chegam à maternidade em trabalho de parto pelas exigências do companheiro, marido ou namorado. Mesmo na cama do hospital, mal a parturiente retornou da sala obstétrica, elas são assaltadas. A ignorância grassa pelo mundo.
— Mas deve haver muitos componentes psicológicos pra um comportamento tão brutal, tão violento, tão animalesco.
— Não inclua os animais, que essas coisas não se verificam entre eles. Não que eu os entronize numa situação de superioridade, acontece que este tipo de baixeza não...
— Se não me engano, leões-marinhos desprezados pelas fêmeas ou vencidos pelos machos mais fortes atacam qualquer uma...
— Você vê que os impulsos sexuais primam por eleger a satisfação egoísta, antes de voltar-se pra felicidade da parceira.
— Isto está a me parecer do mais puro feminismo.
— Sem dúvida, porque o contrário, entre homem e mulher ou entre macho e fêmea, não se conhece.
— A não ser que certas fêmeas, entre as aranhas e os louva-a-deus, por exemplo, acabam comendo os machos com que se acasalaram.
— Graças a Deus que entre os humanos isto não se passa!
— Talvez não fisicamente, mas muitos homens se sentem preteridos pelas mulheres, assim que elas tomam consciência de que estão grávidas. E depois, com os nascimentos dos filhos, sentem, muitas vezes, um ciúme profundo dos seios que eles sugam.
Norberto ia estendendo os assuntos mercê de possuir a memória sempre pronta. Queria distrair a esposa mas percebia que os temas iam ganhando contextura de seriedade.
Durvalina foi um pouco além:
— Pois a ciumeira masculina se situa num plano psicanalítico mais profundo. Conclusões recentes de alguns cientistas do comportamento levam a considerar que os homens invejam e, portanto, se diminuem perante as mulheres, em virtude de nós termos útero, quer dizer, que nós produzimos a vida, guardando, pro mundo material, a extraordinária concepção da criação.
— Jesus nos afiançou que nós somos deuses. Não tenho absoluta certeza de que ele incluía as fêmeas da espécie, mas essa visão, que você chamou de psicanalítica, torna o gênero feminino co-participante, não da obra de Deus, mas dele mesmo. Vocês são deusas, se em permite imitar Jesus.
Durvalina limitou-se a sorrir enquanto Norberto volvia ao ponto que o inquietara:
— Então, você não me respondeu quanto ao fato de minha precipitação libidinosa haver ferido...
— Eu não vou fazer considerações de caráter técnico. Eu não gosto de me prevalecer dos conhecimentos científicos, o que seria como que diminuir os meus interlocutores leigos. Mas, pra que você fique completamente tranqüilo, deveras, nossos enlaces, como você diz, libidinosos, nossos porque eu também desejei o ato sexual tanto quanto você, não contribuíram em nada pra minha condição atual. Bem que eu poderia dizer agora que este esforço que você está me obrigando a fazer me causaria mais problemas que aquilo, mas não vou cair na esparrela de lhe dar razão quanto a me manter no leito, quando estou vendo que melhorei consideravelmente.
— Pois eu fiquei a refletir no que se passa nas aulas às gestantes dadas no centro e me vi completamente por fora. Será que todos estes aspectos que levantamos vocês também tratam, com as devidas adaptações às mentalidades mais incultas das mulheres que não tiveram o privilégio de freqüentarem a escola?
— Você quer saber se a gente diz que elas podem praticar o sexo mesmo grávidas? Pois nós dizemos que cada caso é um caso. Pra que ninguém se confunda, nós recomendamos que as mulheres expliquem aos maridos ou namorados como é a morfologia dos órgãos femininos. Quais as posições menos inofensivas, sempre dando a elas o poder de decisão quanto a que o ato seja completo ou não. Isto tem de ver com vários fatores físicos e culturais. Se o homem for muito impetuoso e ignorante, o que geraria um forte perigo, nós dizemos a elas que evitem a penetração, dando a eles carinhos que levem ao clímax longe da área em que se encontra o feto. Neste caso, a satisfação delas fica prejudicada como fica afastado o risco pro bebê. Se o homem for compassivo e sensível, as relações se dão em harmonia, concordando o casal quanto ao fator de risco, evitando-se tudo quanto possa machucar a mãe e o filho. Isso responde à sua dúvida?
— Onde entra aí a doutrina espírita? Eu pergunto, veja bem, não pra causar celeuma, nem pra avaliar sua convicção em confronto com sua formação médica. Eu pergunto no interesse de justificar o tema dentro do recinto sagrado, como ocorreu quando nos acusaram de havermos maculado o templo com a nossa festa pagã de casamento.
— Evidentemente, meu caro palestrante, tudo quanto fazemos, dizemos e ensinamos pras turmas de gestantes, valendo também quando reunimos os casais, deixa de fora todo aspecto negativo da malícia humana, como a sensualidade fescenina dos que se utilizam da fantasia pra uma performance lúbrica. Se nós pensarmos em que tudo o que se relaciona com o sexo deva ficar de fora das casas espíritas, então seria melhor acusar o Senhor de haver criado o pecado, a desonra, a vergonha e toda a caterva dos vícios e das fraudes mentais a que deram origem os seres humanos. Seria como se a pureza imaculada de Maria se reproduzisse em todas as almas eleitas pro paraíso celeste, o que transformaria os centros em recintos sagrados pro gozo espiritual mais excelso. No entanto, são os nossos guias que nos trazem muitos seres de baixíssimo nível moral pra que nós os doutrinemos, segundo a orientação da moralidade superior que encontramos nos cânones kardequianos. Eles lá, muitas vezes, se expressam de maneira infeliz e agressiva; no entanto, os médiuns e os orientadores dos dois planos se mantêm vigilantes e não se deixam envolver pela lascívia dos espíritos impuros; ao contrário, mais ainda se esmeram em demonstrar que estão imunes ao contato pestilento dos vícios e maldades, exercendo o seu direito a redargüir em nome de Jesus, indicando a caridade como o caminho da salvação. Meu amado, pai de minha filhinha, meu esposo, a quem eu admiro com todas as forças de minha alma, não veja crime algum no fato de estarmos, os médicos, interessados em cuidar dos aspectos materiais dos seres humanos; pode ter a certeza de que estamos almejando, através das orientações que ministramos a quem necessita de mais esclarecimentos técnicos e científicos, apenas tornar as pessoas mais cônscias das próprias necessidades, abrindo-lhes a visão da consciência pra determinados fatos da vida natural, sem descurarmos, pode crer, das lições de caráter espírita e cristão, porque cremos em que, pra se cumprirem todos os objetivos da encarnação, todos nós devemos fazer como você mesmo tacitamente propôs, ou seja, devemos investigar, discutir, avaliar e concluir, segundo o panorama atual do conhecimento a que temos acesso. Se você estiver suspeitando de que os nossos irmãos do etéreo ficam vermelhos de vergonha por tratarmos de temas tão rasteiros, considerando um ponto de vista inferior, porque quem pensa assim não é capaz de divisar as esferas da bem-aventurança e do supremo saber dos espíritos de luz, você deve refletir bastante pra não incidir no erro de julgar que os corações dos bons não sabem equilibrar, na balança da verdade e da justiça, os elementos com que se alimentam os sábios de todos os planos. Seria como pensar em que as obras mediúnicas, por exemplo, não merecessem um lugar nas estantes das bibliotecas dos centros espíritas por tratarem dos problemas dos encarnados, entre os quais avulta os concernentes à vida sexual. Eu sei de pessoas que rejeitaram aquela obra poética do nosso André Luís, apanhada pela psicografia do Chico Xavier, Nosso Lar, porque ali se descreviam afetos a partir de uma visão exterior dos espíritos-personagens, completamente esquecidos da possibilidade de o escritor estar impregnando a sua narrativa de recursos imagéticos extraídos do campo de vida de leitores idealizados, escritor que, pra encerrar, se disse médico, havendo desenvolvido inúmeras teses sob o ponto de vista científico, as quais aquelas mesmas pessoas que repudiam a obra mais simples sempre confessam que não lêem por não estarem habilitadas a compreender tão profundas considerações, o que não deixa de ser uma crítica, porque induzem as pessoas de seus círculos a condicionarem essas leituras a uma desagradável viagem pelas trevas da própria ignorância. Tenho dito.
Norberto estava muito longe de suspeitar que a esposa reagiria tão entusiástica na defesa que ele via agora intransigente, de sua atuação intramuros, reservada, junto às amigas e companheiras de espiritismo, muito embora lhe acendesse a desconfiança de que aquele curso tinha um único alvo: ele mesmo. No entanto, resguardou-se e não disse mais nada a respeito, limitando-se a um aplauso deveras sincero:
— Eu não sabia que este público de um só fosse merecedor de tanta consideração. Então, eu posso asseverar-lhe que você esteve magnífica e que deve ter sido inspirada, ao mesmo tempo que transmitiu uma energia positiva pra quantos irmãos da espiritualidade vieram conduzidos pra junto de nós pelos nossos protetores e guias, que tanta eloqüência não se pode perder pra sempre na minha rica mas única memória. Se eu puder e você me permitir, vou restabelecer todos os núcleos importantes de suas idéias e vou montar uma estrutura capaz de redundar numa exposição, isso se minha amada esposa e mãe de minha filhinha não o fizer primeiro. Aliás, pra dar uma ocupação valiosa pra seus dias de repouso forçado, que tal, Doutora Durvalina, você mesma bolar uma palestra a partir dos esquemas de sua brilhante peroração?
— Se você se deixou impressionar tanto, eu sugiro que você monte o esqueleto do tema. Depois, juntos, a gente o recheia com os conceitos, a ver se isso não pode ser a semente de uma obra escrita, em lugar de uma simples palestra.
— Essa idéia é melhor do que a minha, porque, conversando com Valdemar, chegamos a suspeitar de que, de viva voz, poderíamos melindrar um auditório heterogêneo, com muitas pessoas preconceituosas. Você disse que até certas obras mediúnicas merecem o repúdio...
— Eu citei uma que é a campeã das reedições. Mas tenho a certeza de que existem muitas que esbarram nos tribunais da inquisição espírita.
— Mas você há de concordar que existe muita coisa ruim publicada. Então, o que fica de fora deve ser pior ainda.
— Vamos ver se a gente consegue elaborar algo que signifique um passo adiante junto à concepção de muitos leitores esclarecidos, algo bem diferente do texto que Valdemar está elaborando pras ilustrações dos desenhos mediúnicos da Beatriz.
Aí a conversa derivou para a briga dos jovens e para a viagem em breve da mocinha.
8. OS TRÊS MOSQUETEIROS
Quatro dias Norberto passou entre vigiar Durvalina e paparicar o Titinho, descendo e subindo de um apartamento a outro, trazendo a mãe e o pai para cuidarem da casa, do almoço e da higiene da criança. Mas quatro dias bastaram para que ele se inquietasse quanto a estar em débito com o seu patrão-governo, tanto que, antes mesmo daquela conversa com a esposa, já Agripino e Valdemar haviam aprendido o caminho ao pequeno escritório do apartamento.
Norberto havia meditado a respeito de se coagirem os colegas para que não aplicassem multas, onerando-se sobremodo o poder judiciário. Expôs seus pensamentos aos dois, concluindo:
— Vocês estão trabalhando em vão. O que redigiram está ótimo, desde que, porém, haja boa vontade e compreensão da maioria quanto a se impedirem os corruptos de sujarem a nossa área profissional. Eu tenho de memória toda a legislação pertinente e, por mais que a repasse, jamais encontro um ponto de apoio que nos permita obrigá-los a formularem processos em lugar de lavrarem um termo, e pronto!
Valdemar apoiou-o:
— Eu sinto a mesma coisa, mesmo porque quem recebe propina pra não multar vai receber pra não abrir processo. Isso de pensar que os relatórios diários apontando as irregularidades e também o que houver de correto nas diligências vão ser peças da maior honestidade, nós sabemos que vai falhar, porque quem raciocina pelo torto num caso, vai raciocinar também no outro.
Agripino ponderou:
— Eu sei por que vocês estão colocando as coisas sob um prisma pessimista: é que nós estamos cuidando dos efeitos e não das causas. Mas que fazer para sanar os males em seu nascedouro? Só se pedíssemos a cada um que refizesse totalmente sua educação e que acrescentasse um tema que lhes está faltando: o estudo da doutrina espírita, principalmente da existência da vida após a morte, onde se refletem, no próprio indivíduo, todas as maldades que praticou contra seus semelhantes.
Norberto interferiu para acrescentar:
— O inferno é que a gente não chega a conceber o governo como representação do povo, ou seja, de todos nós, e praticamos contra ele todos os crimes, abstraindo a figura da humanidade que se encontra intimamente inserida no conceito de poder público e democracia. Quando se investe num assalto temerário contra os cofres públicos nos países em que o regime é de ditadura, a figura do caudilho acaba justificando os atos de corrupção como uma forma de revolta, pobre revolta, dos que não têm acesso ao poder.
Quis Valdemar apressar o amigo:
— Acho que você está querendo dizer que a gente arruma desculpas sempre, pra fazer o que não deve. Agripino acabou tendo razão: primeiro, é preciso moralizar; depois, caso haja reincidência, punir.
O chefe voltou à carga:
— Vejo que vocês concordam comigo. Então, a nossa obrigação...
Houve um movimento simultâneo dos outros dois para intervirem, mas um gesto do interlocutor obstou-lhes a manifestação. Agripino prosseguiu:
— A nossa obrigação oficial acaba por perder sua importância perante as responsabilidades que assumimos no palco da vida espírita, pois é nos nossos centros espíritas que podemos insuflar nas almas dos que lá comparecem o desejo de se comporem com as diretrizes doutrinárias de Kardec. Mas nós havíamos concordado em terminar logo a redação e é isso que eu acho que devemos fazer, para o que proponho o óbvio: Valdemar e eu vamos redigindo e passando o resultado para o Norberto, se for o caso, através da Internet. Você recebe o e-mail, anota o que achar oportuno, puxando notas de rodapé para chamar a atenção para a legislação que possa dar cobertura para as recomendações do texto ou que venha a favorecer a proposição de recursos.
Norberto achou a decisão bastante prudente e solicitou:
— Com o objetivo de serem as citações rigorosamente corretas, vou fazer questão de me apoiar nos códices legais diretamente. Vai ser um trabalho de memória conjugada com pesquisa. Tenho a certeza de que o teste me fará muito bem.
Quando Durvalina sugeriu a elaboração da obra a respeito da vida sexual durante a gravidez, Norberto já havia encerrado a sua parte, tendo tido a satisfação de verificar que todas as suas citações de memória acabaram recebendo integral apoio dos textos oficiais.
Era o oitavo dia de resguardo da gestante e antepenúltimo da licença oficiosa do fiscal.
Quando Valdemar e Agripino chegaram, vinham com novidades. Deveria Agripino, por respeito à idade e ao cargo, ser o porta-voz, mas foi Valdemar, na qualidade de colega e amigo, quem se manifestou primeiro:
— Nosso trabalho mereceu os melhores encômios da parte dos advogados e juristas. Eles concordaram com nossas observações e encaminharam pra cima do jeitinho que nós deixamos, acrescentando uma nota de advertência em que declaram, de modo contundente, que ou se faz uma alteração radical na legislação, ou se moraliza o serviço através da Corregedoria do Estado.
Agripino não ligou para as observações do outro e observou:
— Pois eu acho que, apesar de ter ficado contente com a repercussão inicial de nosso trabalho, deveríamos ter sido reprovados, o que nos traria como conseqüência alguma proposta para subirmos de posto, porque estaríamos tornando-nos um perigo para a administração. Quem sabe os que nos elogiaram não estejam, ladinamente, barganhando sua opinião por cargos ou funções melhor remunerados?
Norberto não pôde deixar escapar a oportunidade:
— Meu patrãozinho querido e meu augusto orientador espírita, cuidado com essa sua maldade. Não se esqueça de que quem julga será julgado e com a mesma medida...
Os três se abraçaram, sorrindo, mas Norberto tinha, como sempre, fresca na memória a longa tertúlia que mantivera com a esposa. Perguntou aos outros:
— Vocês estão dispostos a ouvir-me falando de um projeto que Durvalina e eu começamos a bolar?
— Claro, meu irmão, disse Agripino, vindo de vocês deve ser bem interessante.
Norberto, sem preâmbulo, reproduziu o diálogo integralmente, sendo aqui e ali interrompido pelos companheiros para esclarecimentos. No final, quis saber o que achavam da idéia.
Valdemar logo se manifestou:
— Vocês precisam tomar todos os cuidados do mundo com a terminologia. Qualquer palavra ou expressão considerada vulgar irá logo receber o pecha de malícia ou, o que seria muito pior, de sem-vergonhice. Aí, os luminares do movimento espírita iriam proibir que os adeptos da doutrina sequer chegassem perto do livro.
Norberto observou:
— Dizem que, quando algo é proibido, fica mais atraente.
Valdemar redargüiu:
— Isso é válido pra quem não tem nada a perder, em situação social, vamos dizer assim, neutra. Quando está em jogo ir pra uma esfera de luz ou cair nas sombras do umbral, as almas humanas se deixam envolver por um halo de medo e as pessoas se apavoram com um possível desvio do reto caminhar, segundo a prática que vêm adotando.
Agripino, observando a seriedade com o que o tema estava sendo tratado, colaborou com a tese do outro:
— Não são poucos os administradores de centros espíritas e até outros das uniões e federativas que velam pela pureza da doutrina de Kardec. Simples textos mediúnicos que poderiam acender a curiosidade para certos temas muito comuns na sociedade em geral, comuns até mesmo na televisão dita cultural, naqueles programas a que comparecem lentes universitários ou nomes de projeção nacional e internacional, quando se trata de assuntos sob a ótica científica, recebem o veto de uma apresentação diante do público espírita, ainda que reservada ou por distribuição interna de impressos apenas para os adultos. É muito freqüente falar-se em contenção dos entusiasmos individuais. Por isso, vocês precisam captar antes o beneplácito das autoridades, ficando desde logo preparados para os cortes que lhes recomendarão, caso contrário, fica implícito, não só não darão seu apoio, como exercerão uma pressão de cima para baixo para que a publicação, caso vingue, seja boicotada. Por outro lado, veja as obras do José Carlos e do Aristeu: aprovadas pelas pessoas mais influentes, receberam mais que o alvará para divulgação; receberam o apoio financeiro, gráfico e de distribuição, além de farta propaganda interna e externa.
Norberto via bailar em seu cérebro uma questão pendente:
— Vejo que vocês dois são extremamente prudentes e acato os seus conselhos in totum, no entanto, eu sinto que o movimento espírita precisa consorciar-se com a vida fora dos centros, preparando-se pra expor aos filiados e adeptos seu ponto de vista a respeito, vejam bem, não quanto aos aspectos simplesmente morais, que esses são intocáveis, mas quanto aos pontos básicos dos relacionamentos humanos, vendo-os sob o prisma cristão mais puro, não como um rol de recomendações e outro de proibições, mas sob o ponto de vista crítico, argumentando principalmente com a necessidade de todos os ramos do conhecimento humano serem analisados e codificados, pra tornar a vida bem mais próxima dos valores que subsistem na esfera imediatamente mais adiantada, quando partirmos da Terra rumo à bem-aventurança.
Agripino começou a dar sinais de impaciência. Norberto calou-se a ver aonde iam as considerações do outro:
— Você disse que, em sua conversa com Durvalina, André Luís foi citado em suas obras mais fáceis e em seus tratados mais complexos. Muito bem. Antes, porém, de fixar uma diretriz mais moderna para os textos, cuja linguagem se define claramente nestes tempos como um tanto refratária para a maioria, no que tange, principalmente, às obras de maior cunho científico, veja agora aqui um detalhe que poderá causar certa celeuma, caso não se dêem as explicações gramaticais de sentido histórico. É muito pequeno o problema, mas, se você citar na sua obra o nome do médico e escritor, vai escrever Luís com s ou com z? Se escrever com z, quase ninguém porá atenção na falha ortográfica, pelo hábito ou pela ignorância. Pela mesma razão, se escrever com s, poderá não ser compreendido, porque haverá sempre de parecer que você esteja exercendo um espúrio direito de corrigir o mestre e mais quem deu guarida à forma corrente nos anos em que as primeiras obras dele apareceram. Veja que estou trazendo uma bizantinice para exemplificar a crítica que lhe desejo fazer, no bom sentido. É louvável que você, estudioso inteligente dos acontecimentos espíritas desde Kardec, conclua pela necessidade de ampliar o círculo social para abranger muito mais camadas sociais. Você há de concordar comigo que o nosso espiritismo de auxílio pessoal e espiritual iria enfrentar poderosas confrarias religiosas interessadas justamente em arrebanhar todos os públicos, em função (eu lhe assevero que não existe nenhum resquício de maldade no que vou dizer) em função de tornar cada igreja uma instituição de grande poderio econômico, a ponto de mandar para todas as casas legislativas um contingente cada vez mais significativo de crentes, com o fito de assumir, de um modo ou de outro, o controle secular da sociedade. Estou indo muito longe? Então, retorno ao ponto: tanto quanto concluímos que existem leis suficientes para que os fiscais atuem com discernimento e coragem, leis que lhes dão total amparo e resguardo contra os sonegadores, também no que diz respeito à literatura espírita existem obras de todo tipo, tratando de todos os temas, a partir dos livros da codificação. Você diz que é preciso atualizar. Pois eu lhe afirmo que os bons aplicam esse conceito a si e aos seus. Os medíocres não têm como criticar e não saberiam o que fazer com os novos conceitos científicos que seriam aprovados pelos dirigentes interessados em preservar a tal pureza doutrinária a que se referiu Valdemar. Os outros são quase analfabetos e comparecem aos centros para os passes e a água fluidificada, do mesmo modo que vão à missa ouvir os cânticos, ou aos cultos evangélicos com a esperança de que as espórtulas que passam para os pastores se multipliquem por força da intervenção divina. Em que ficamos? Faça como o José Carlos, que se limitou a alguns comentários e que encheu sua obra de exemplos de casos de regressão de memória, sempre acautelando-se atrás de observações sobre a possibilidade da influência de obsessores. Ou faça como o Aristeu, que empesta seus textos de citações, abrindo e fechando aspas a cada assertiva que faz, abonando-as todas com transcrições de autores consagrados.
Norberto e Valdemar permaneceram calados. Não imaginavam o chefe tão enfático na orientação de seus discípulos, não fora ele quem lhes dera as primeiras noções de espiritismo.
Naquele momento, assomou Durvalina à porta, pálida, apoiando-se no batente. Valdemar correu e a trouxe para a cadeira que estivera ocupando. Norberto saltou detrás da escrivaninha e veio amparar a esposa:
— Que é isto, querida? Que esforço é esse?
Num fio de voz, ela respondeu:
— Rompeu-se a bolsa. O bebê vai nascer. Vamos pro hospital. Não se preocupe: vai dar tudo certo. Eu já liguei pro Doutor Jaime e pro José Carlos. Pegue a mala. Doutor Agripino, desculpe-me. Valdemar, avise a Sofia: ela vai querer acompanhar o parto.
Cinco minutos depois, avisados os pais de ambos, servindo Valdemar de motorista, partiam os quatro para a maternidade.
9. TRANSIÇÃO
Tendo Durvalina sido levada diretamente para a sala de partos com o diagnóstico de placenta prévia, recomendando-se uma cesariana, Norberto não pôde acompanhá-la, permanecendo na sala de espera, na companhia de Valdemar e de Agripino.
Pela mente do rapaz passavam as tristes lembranças de quando Nelma faleceu em circunstância semelhante. Elevava ele os pensamentos diretamente ao Pai:
“Deus, seja misericordioso e permita que mãe e filha sobrevivam. Nelma, querida, eu sei que você está aqui comigo. Faça que os espíritos de luz venham assistir ao nascimento de minha filhinha, pelo amor de Deus. Jesus, mestre dos mestres, estenda o seu manto de paz sobre aquelas duas criaturas em seu transe e exerça mais uma vez o seu poder de cura, o seu dom da vida.”
Mercê de sua esplêndida memória, podia desfilar rapidamente todos os casos narrados nos evangelhos em que Jesus se compadecia dos sofredores, e repetia, do fundo do coração, que a esposa e ele mesmo tinham muita fé, contando com a benevolência do espírito perfeito do Cristo.
Abraçava-o Valdemar, dizendo-lhe que não perdesse a esperança, que ele mesmo e Agripino estavam invocando toda ajuda possível da esfera da espiritualidade superior.
Quando Sofia chegou, entrou com ela o Doutor José Carlos. Foi ele direto para Norberto e abraçou-o com lágrimas a lhe verterem dos olhos. Nem precisou dizer nada. Norberto compreendeu que tinha de enfrentar uma nova tragédia.
Sussurrou-lhe o médico ao ouvido:
— Deus foi complacente para com sua dor: ele deixou sua menininha com vida. Mas Durvalina, nós não conseguimos trazer de volta de uma parada cardíaca. Seja forte, meu amigo. Lembre-se de que sua esposa era virtuosa, era caridosa, era iluminada. Neste mesmo instante, ela deve estar acordando do lado de lá, preocupada apenas com a tristeza, com a mágoa dos que ela deixou neste mundo.
Norberto se manteve agarrado ao médico por um tempo que não foi capaz de determinar. Enquanto isso, Sofia punha os outros dois a par do passamento da amiga, esperando sua vez de confortar o viúvo.
No etéreo, os protetores da recém-chegada faziam um círculo de fluidos benéficos, iluminando o ambiente em que a moça iria despertar, dando-lhe um aviso de que voltava para o seio da comunidade espírita após uma encarnação vitoriosa.
Glauco dava assistência a Etelvino nos fluxos de vibrações com que envolviam Norberto, assimilando-as às que ele emitia tremendamente emotivas. Ficava-lhes evidente que a reação do rapaz estava compatível com o que se pudesse esperar de quem se depara com uma desgraça inesperada, mas que possui uma força íntima que o induz a aceitar os desígnios do Pai resignadamente.
Quando Agripino se referiu à condição moral superior de Durvalina, de imediato Norberto se concentrou na filha, sabendo que ela deveria estar lutando para sobreviver. Mas José Carlos procurava tranqüilizá-lo:
— A sua Neusa Maria, pelo que se pode esperar de uma prematura de um quilo e quatrocentos gramas, está passando muito bem. Já foi colocada na incubadora e será transferida, assim que possível, para sua casa, exatamente como ocorreu com o Titinho.
— Deus o abençoe, Doutor! Eu pretendo fazer o que estiver ao meu alcance, mas devo dar atenção às exéquias de Durvalina...
Não deu para prosseguir. O termo esquisito repercutiu em sua alma com uma tonalidade francamente pedante. Recolheu-se o mais que pôde em suas fibras emocionais e se angustiou pelo fato de se manter tão intelectualmente lúcido num momento de tanta dor.
Etelvino e Glauco se regozijaram com as reflexões do encarnado e intensificaram ainda mais a sua ajuda para manter-lhe o equilíbrio, no sentido de que fosse capaz de controlar as suas reações, apesar do grande influxo dos milenares conceitos incrustados em sua personalidade quanto à necessidade de sofrimento pela perda das pessoas amadas.
Logo chegaram os pais da moça, informados do passamento à porta do hospital, desesperados e inconformados. Raul e Neusa apareceram pouco depois e os avós da netinha prematura formaram uma corrente de muita fé em que a pequena criatura iria vingar. No entanto, era Norberto quem catalisava a piedade de todos, que ninguém deixava de se lembrar de que o moço enviuvava pela segunda vez, coincidindo o modo do desenlace das duas jovens senhoras, o que daria muito que pensar a toda a gente, especialmente ao povo espírita sempre desejoso de decifrar os mistérios dos carmas humanos.
Quando a notícia do falecimento se espalhou, muitas lágrimas umedeceram olhos e lenços, que a médica era uma benfeitora e uma amiga de todos.
Eram cinco horas da tarde e o hospital prometeu liberar o corpo apenas de madrugada, de forma que a família podia deliberar a respeito do velório. Ficou combinado que o féretro seguiria para a câmara mortuária do cemitério, onde o povo poderia render a sua última homenagem durante todo o dia seguinte, até às dezesseis horas, para quando marcariam o sepultamento.
Essas medidas davam tempo para as providências de praxe quanto à papelada para o competente atestado de óbito. Valdemar se dispôs a correr atrás dos documentos, mas Raul tomou a iniciativa, convidando Agripino para acompanhá-lo.
Apenas Norberto teve permissão para entrar no centro de terapia intensiva destinado aos prematuros, ficando impressionadíssimo com o tamanhinho de sua princesinha que se agitava durante o sono. José Carlos estava com ele e lhe fornecia todos os dados técnicos para tranqüilidade do pai.
Titinho servia-lhe como termo de comparação, mas a menininha perdia em todos os quesitos, exceto na graciosidade feminil precoce, conforme parecia aos olhos do temeroso pai.
Quando voltou para a sala de espera, foi encaminhado, juntamente com todo o pessoal que lá se achava, para um salão reservado nos fundos do prédio, local destinado a guardar os sofrimentos dos que perderam seus entes queridos e a resguardar, do lado de fora, a felicidade dos que obtinham o crédito da vida dos filhos e das parturientes.
Apesar de haver corrido a notícia do horário e do local do velório, mesmo assim, muitos companheiros compareceram para o primeiro abraço de conforto e consolação aos familiares lá mesmo no hospital.
Um dos primeiros a chegar foi Claudiomiro, trazido por Juvenal, carregando Clotilde a tiracolo. Logo o presidente do Centro Espírita do Amor Fraterno de Jesus, desejando valorizar a vida da querida irmã, estava propondo:
— Eu quero que se vele a nossa mais distinta colaboradora, a irmãzinha de todos nós e principalmente a querida benemérita da pobreza do bairro, lá em nossa casa mediúnica. Não vou abrir mão disso, nem que Aristeu venha a nos condenar a todos com seus artigos. Agora é que é a hora de demonstrar nosso reconhecimento pelo trabalho da Doutora Durvalina.
As pessoas que o ouviam não se empenhavam nem em dizer que sim, nem que não. Norberto, que seria o mais interessado, não atinava com a importância para o povo de prestigiar o cadáver de uma figura tão prestigiosa para aquela comunidade. Parecia estar alheio a tudo, imerso em dor, recapitulando, como se fossem cenas de um filme, todos os momentos em que convivera com a segunda esposa. Às vezes, se surpreendia remetendo o pensamento para os tempos do primeiro casamento, mas Nelma lhe aparecia no horizonte da memória como um anjo de candura, alguém que ultrapassara os limites do círculo em que o moço situava todas as outras criaturas conhecidas. Foi com essa disposição que se manifestou, cordato:
— Por mim, se vocês estão dispostos a enfrentar todos os transtornos que um velório pode causar, inclusive com a possível recriminação dos padres e dos próprios espíritas, tudo bem. Mas são os meus sogros que devem dar a última palavra e eu acho que eles não estão em condições de tomar uma decisão muito lúcida.
Realmente, o casal estava simplesmente derreado. Não fora a poder de tranqüilizantes e, com certeza, estariam precisando ser contidos em seu desespero. Mas com eles estavam muitos elementos de sua família, os irmãos de ambos e concunhados, outros filhos, sobrinhos, todos muito unidos naquela dor tanto mais profunda quanto Durvalina era de todos admirada e estimada.
Quando Claudiomiro foi propor-lhes a sua idéia, a velha senhora foi taxativa:
— Não era lá que ela passava a maior parte de seu tempo? Não era para seus pacientes que ela dedicava todas as suas horas de folga? Então, que seja lá que se dê a ela o conforto espiritual de estar na companhia de tantos amigos reunidos, cuja vibração irá alcançá-la e consolá-la.
Todas as providências, então, foram tomadas e logo se espraiou a notícia de que o caixão permaneceria exposto no centro.
10. UM DIA PARA QUEM SABE RECORDAR
Às dez da noite, Raul conseguiu convencer o filho a ir para casa. Deveria descansar porque o dia seguinte seria muito cansativo. De fato, Norberto precisava providenciar a roupa com que Durvalina seria vestida, para o que levou consigo Sofia, que se mantinha firme e bem disposta, apesar do sexto mês de gravidez. Valdemar, evidente, foi junto.
No apartamento, Norberto pôde reparar que a mãe havia tomado algumas providências, eliminando os vestígios da tragédia, levando embora as roupas manchadas de sangue, ajeitando os utensílios na cozinha e acomodando tudo quanto o filho costumava desarrumar. Nessa azáfama, Dona Neusa, que se fizera acompanhar da empregada, juntou numa caixa todos os medicamentos que encontrou, sem estranhar a enorme quantidade deles, médica que foi a sua nora. Pensou que poderiam ainda servir e guardou o enorme volume para que o filho lhe desse a destinação de melhor proveito.
Entre as roupas que Sofia achou as mais convenientes, estava o tailleur com que se casara e que acabou sendo a escolhida no hospital para o evento fúnebre.
Com a desculpa de atender aos telefonemas, Raul e Agripino se revezaram na vigília noturna, até que, às quatro da madrugada, Norberto se levantou para se preparar para a longa e angustiante jornada.
— Pai, o senhor quase não dormiu. Vá pra casa e descanse até a hora do almoço. Eu levo Agripino embora e o deixo no prédio dele.
Mas nem um nem outro concordaram. Foi Agripino quem ponderou:
— Hoje você não deve dirigir. Nós vamos de táxi e eu não quero que você fique sozinho, porque existem condições de inferioridade física conseqüentes das fortes emoções que lhe podem causar transtornos súbitos. Vá que sua pressão suba ou desça, por exemplo, sempre haverá de estar acompanhado caso desmaie. Respeite os meus cabelos brancos.
Raul concordou com o chefe do filho e logo estavam cada qual rumando para seu destino. Iam sair quando receberam um telefonema de Claudiomiro, informando que não fossem para o hospital, que o corpo havia sido liberado e que já estava sendo levado para o centro espírita.
Naquela hora não foi difícil chamar um táxi que, encontrando as ruas livres, logo deixou o moço à porta da casa espírita, enquanto partia com Agripino.
No prédio, grandes preparativos, sendo visível que o pessoal havia passado a noite trabalhando. No auditório em que Norberto e Durvalina se haviam casado, as cadeiras estavam encostadas às paredes formando uma fila tríplice, enquanto no centro se erguia um estrado totalmente envolto em flores coloridas, mas onde predominava o branco. À entrada e no pequeno palco do fundo, as coroas, que começavam a chegar enviadas por muitos amigos e pelas instituições em que o casal trabalhava.
Eram cinco horas quando chegou o rabecão com o féretro. A empresa mortuária contratada evitou colocar símbolos de outras religiões, de modo que não compareciam nem crucifixo, nem castiçais, nem panejamentos negros ou roxos. Só flores. Só o caixão branco sem enfeites. Só as lágrimas silenciosas de todos os que foram receber os restos mortais da irmãzinha querida.
Chegavam também muitos que haviam passado a noite no hospital, agora efetivando com maior empenho o ato de velar que até então se vira frustrado.
Norberto tentou ajudar a transportar o caixão, mas quando assomou à porta já todas as alças estavam ocupadas, na frente, de um lado Claudiomiro, do outro, Juvenal. Também José Carlos contribuía com seu esforço. Assim que o caixão de Durvalina foi acomodado, pôde o marido aproximar-se para contemplar-lhe longamente o semblante pacificado pela rigidez cadavérica, onde se notava o tom levemente rosado da derradeira maquilagem.
Debruçou-se o moço e deixou expandir seu sofrimento mudo, acelerado o coração, manchando com suas lágrimas o vidro do visor. Passado um tempo que lhe pareceu infinito, solicitou que tirassem a tampa, para que os familiares pudessem acariciar a face gélida da moça dando expansão a seus afetos.
Nesse momento, José Carlos o conduziu até a cadeira mais próxima, sentando-se ao lado dele, iniciando uma explicação necessária:
— Meu querido amigo, fui eu que recomendei que se mantivesse lacrado o esquife. Mas não há nenhum problema em tirar a tampa, só que devemos cercar a essa porque não convém que se mexa no corpo, uma vez que precisamos, como você deve ter ficado sabendo, realizar um procedimento exploratório, uma microautópsia para determinarmos o que de fato levou ao óbito. Agora não é a hora mais adequada para lhe apresentar um relatório, nem temos ainda nada conclusivo. Em tempo oportuno, você tomará conhecimento de tudo.
O médico falava pausadamente, medindo os termos segundo as reações que percebia no infeliz, que tremia sob o braço que ele lhe mantinha no ombro.
José Carlos prosseguiu por mais algum tempo até que enfatizou a necessidade de ir descansar, prometendo voltar para acompanhar o féretro ao cemitério. Antes de sair, porém, providenciou que se retirasse a tampa e ainda que se cercasse a essa com um cordão preso a balaústres, para que não ficasse fácil tocar no corpo.
Com o passar das horas, o recinto foi ficando cada vez mais cheio, todas as pessoas indo dar seus pêsames ao viúvo e aos familiares, sendo atendidas sempre nominalmente por Norberto, que conhecia a todos por nome e sobrenome.
Às nove da manhã, já se formava uma fila que passava continuamente. Era o povo do bairro que vinha prestar homenagem à médica tão caridosa.
Juvenal, incansável, providenciou uma guarnição de policiais para disciplinar a entrada e a saída de molde a organizar a visitação.
Desde cedo, Durvalina acordara no etéreo, completamente liberta de seus despojos materiais. Em momento algum deixara de compreender que trocara de condição, alertada para a possibilidade da morte desde algum tempo, quer pelos sintomas, quer pela suspensão do tratamento de certa moléstia com medo de afetar a filha.
Mas seu despertar fora até que feliz para alguém que tinha consciência de que deixava entes muito queridos em dificuldades. Era impossível, no entanto, conter a alegria de reencontrar tantos companheiros de existência, os quais fizeram questão de vir recebê-la, testemunhando-lhe benquerença e amor muito profundos. Não havia uma única pequena vibração ruim a perturbá-la. A espiritualidade lhe demonstrava total solidariedade, comprovando-lhe tacitamente que lhe daria toda a assistência de que necessitasse para cumprir suas obrigações.
Especial fora a troca de carinhos com Nelma, ambas reconhecendo-se reciprocamente vitoriosas em sua dedicada afeição a Norberto. Mas a recém-chegada estava interessada na missão da outra:
— Irmãzinha, a que você se dedica, além, é claro, dos estudos? Cabe-lhe prestar atenção no desenvolvimento do Titinho?
— Sim. É como você diz. Mas preciso da ajuda de meus protetores, além dos seres maravilhosos que me ensinam na Escolinha de Evangelização.
Durvalina, que havia passado por diversos cursos naquele educandário espiritual, ia aproveitando tais deixas para restaurar as lembranças mais recentes anteriores à reencarnação. Teria realizado uma incursão mais completa em seu passado, conforme o interesse que vinha demonstrando nos últimos tempos pelo tema da regressão de memória com finalidades terapêuticas, se não tivesse sido como que sugada pelo influxo de saudade e de admiração para junto dos viventes, a cujos sentimentos se via na necessidade de corresponder.
Foi assim que se deparou com Etelvino e com Glauco, cujos eflúvios energéticos mantinham a base perispiritual de Norberto em pleno vigor. Ambos eram seres muito amados desde épocas imemoriais, únicos que abriram os escaninhos de sua memória para a felicidade de um convívio de muitos séculos.
Após uma efusão de grande força sentimental, Etelvino e Glauco relataram, em ondas de pensamentos imediatamente captadas e descodificadas por Durvalina, como se postava o esposo perante as leis universais colocadas em jogo naquela circunstância emotivamente delicada.
Aproximando-se do campo de força em retração da alma do encarnado, Durvalina tentou passar-lhe a intuição de que estava ao lado dele, informando-o de que tomaria conta pessoalmente da filhinha.
Naquele instante, chegavam Dona Isaltina e a filha Beatriz, trazendo com elas, no plano etéreo, a esplêndida figura de Pai José, que logo se identificou como protetor e guia da mocinha, a qual Durvalina sabia afetivamente ligada ao amigo de tantos anos e que lhe causara não poucos momentos de intranqüilidade, pelas reações à sua figura de esposa e, depois, de mãe de empréstimo do Titinho.
Norberto recebeu mãe e filha com extremos de atenção. Mas Isaltina, que se vestia de branco, assim como a filha, indicando sua filiação à umbanda, havia preparado uma homenagem à ilustre figura desaparecida, de modo que, a um sinal seu, todo o povo de seu terreiro avançou de fora, entoando um ponto de lamento e de gratidão aos orixás pela felicidade e pela perda de pessoa tão amada.
Quem se incomodou com a presença daquela gente aguerrida foi Aristeu, que, desde bem cedo, trazido por Oliveira, acompanhava com viva atenção os acontecimentos dentro do Amor Fraterno de Jesus. Especialmente, os petrechos que se depositavam ao derredor da essa punham o escritor e expositor da federação espírita bastante preocupado, passando-lhe pela mente que os adeptos do kardecismo ali presentes poderiam bandear-se para a outra esfera doutrinária, caso tanta gentileza e tanta manifestação de união e de graça material lhes parecesse atraente.
Enquanto isso, fortemente emocionado, Oliveira ia registrando os flagrantes que sabia valiosos para um álbum de recordações, ainda que os retratasse com o cuidado de quem já fora culpado de interpretações errôneas.
Quanto a Durvalina, viu-se forçada a ligar-se às calorosas manifestações de benquerença, indo postar-se ao lado dos pais, que traduziam para ela, em forma de comoção amorosa, os sentimentos que lhes transmitiam os cânticos e as homenagens do candomblé.
Norberto sensibilizou-se com a lembrança de Isaltina, fazendo-a sentar-se ao seu lado, enquanto Beatriz se acomodava do outro. Durante todo o tempo da demonstração de afeto afro-brasileiro, o jovem senhor manteve na sua a mão da mocinha, apertando-a significativamente, agradecido pelo conforto moral que recebia em emanações fluídicas que lhe repercutiam na organização perispirítica e que se traduziam por um ouriçar da pele de todo o corpo.
De onde estava, Aristeu podia observar as emoções que reverberavam na fisionomia do viúvo como também era capaz de avaliar as transformações faciais de Beatriz, as quais Norberto não tinha em seu campo de visão. Foi assim que o articulista e orador espírita pôde perceber que a jovem estava passando por um transe mediúnico absolutamente controlado, já que as expressões de seu rosto demonstravam os mais variados sentimentos.
Mas alguém passou de repente pela frente de Aristeu, interrompendo-lhe a contemplação. Era o Padre Tiago, que chegava num momento crucial para a efetivação de um ecumenismo particular entre as fés que admitiam o mediunismo. Aristeu passou então a observar as reações do sacerdote católico, mas o máximo que captou foi um olhar de extrema severidade acompanhando os movimentos lentos e compassados dos filhos e pais de santo.
Terminada a cerimônia, os umbandistas distribuíram flores para todos os presentes, com a recomendação de que, antes de depositarem junto ao caixão, elevassem uma prece aos espíritos superiores em favor da alma de Durvalina. Talvez tivessem preferido dizer orixás, guias, encantados ou mesmo caboclos, mas cumpriram a obrigação de respeitar o pensamento e o sentimento dos kardecistas.
Quando Tiago recebeu a sua flor, amavelmente deu-lhe um beijo e encostou-a ao peito, numa homenagem de muita consideração pelas pessoas da outra crença. Nada disso passou despercebido aos olhar arguto do conferencista.
Quando Norberto se levantou para receber a sua flor, desprendeu a mão de Beatriz, que estremeceu, despertando para a realidade. Isaltina despediu-se, afirmando que iria ao cemitério, dando um abraço muito comovido no filho de sua ex-patroa. Depois foi a vez da rapariga, cujos olhos se encheram de lágrimas, fazendo questão de dar-lhe um amplexo como nunca o fizera antes, imprimindo no inconsciente do homem que ela era mulher formada, indo longe os tempos em que, meninota, brincava e passeava com o patrãozinho.
Tiago, estranhamente, retirou-se, levando consigo a flor, sem externar seus sentimentos às famílias. Seguiu-o Aristeu com os olhos, não atinando com as razões de tão esquisita atitude. Se tivesse saído, teria presenciado um encontro do padre com Claudiomiro em que ambos acertaram os ponteiros de seus relógios.
De fato, exatamente às três horas da tarde, Tiago estava de volta, portando a flor dentro do breviário, trazendo com ele uma extensa fila dupla de Filhas de Maria, todas de branco com sua indefectível fita azul ao pescoço, de senhoras do Movimento Eucarístico e Carismático, de Congregados Marianos, de coroinhas vestidos a caráter, todos trazendo seus terços à mão.
O padre entrou primeiro e foi, respeitosamente, depositar sua prece e sua rosa branca junto ao caixão. Depois se dirigiu aos pais e demais familiares da falecida. Em seguida, deu seus pêsames aos pais de Norberto, aos amigos dele, finalmente indo até o rapaz, a quem abraçou com lágrimas verdadeiras a escorrerem por suas faces, sem palavras, ele sempre tão loquaz.
A porta de entrada ficou interditada por alguns minutos até que os que passavam acabaram deixando o vão central livre. Então, a um sinal do sacerdote, ouviu-se um canto em louvor a Nossa Senhora e os católicos entraram, solenes e compenetrados de que sua presença ali valia como se a própria Igreja Apostólica houvesse enviado de Roma seus representantes.
Mais um sinal, o canto se encerrou e Tiago foi postar-se à cabeceira da essa, puxando o terço, que todos respondiam, até mesmo os kardecistas presentes.
Aristeu, que voltara há pouco do almoço frugal que lhe fora oferecido pelos comerciantes do bairro, os quais abasteceram a cozinha da casa, situado agora junto ao estrado do palco, acabou perdendo o jogo fisionômico de Tiago, mas pôde testemunhar que a sua voz, de embargada, foi aos poucos readquirindo o timbre que conhecia desde a célebre reunião na casa de Norberto.
Quando se encerraram as orações, Tiago abençoou a todos, mas não se atreveu a realizar nenhum gesto que indicasse a encomenda do corpo. E seu pessoal saiu tão disciplinado quanto quando entrou.
Mais tarde, no campo santo, puderam realizar suas orações fúnebres os amigos mais chegados, elevando sua voz principalmente Claudiomiro, que, dentre todos, era o que mais de perto acompanhara a verdadeira missão cumprida por Durvalina. Falaram também José Carlos, Agripino e Aristeu, este muito emocionado por haver compreendido o quanto aquela jovem senhora era querida pela população do bairro.
Todos teceram elogios às virtudes muito ponderáveis da esposa de Norberto e alguns rogaram pela proteção divina, para que o rapaz superasse aquele transe dolorido.
Na espiritualidade, Durvalina se recolheu no momento em que seu corpo estava saindo do centro espírita, solicitando e sendo atendida para visitar a filha internada. Ali, vários mentores dos seus tempos de aprendiz do evangelho puderam explicar-lhe que a criancinha estava fortemente amparada, mesmo no setor dos atributos físicos, apesar da aparência de extrema fragilidade, o que seus conhecimentos de medicina humana ia confirmando.
Foi com muita paz que adormeceu, mercê dos fluidos regeneradores administrados por irmãos especializados. Recebera um apoio anteriormente que a sustentara firme e lúcida. Chegara a hora de repousar dos fortes impactos emocionais de que se vira envolvida. No entanto, mesmo em estado de inconsciência, irradiava ainda vibrações de benquerença que os guias e protetores canalizavam para quantas pessoas no círculo terrestre necessitavam ser tranqüilizadas. Não fora por isso, Durvalina teria requisitado imediata matrícula num dos cursos da Escolinha de Evangelização.
Quem se deslumbrara com tamanha capacidade de adaptação no etéreo fora Glauco, que, com Etelvino, se desdobrava em atenções junto a Norberto. Este, no entanto, juntava ao presente o histórico dos fatos passados, compreendendo perfeitamente que, para os seres encarnados, resta lutar para captar com honestidade as lições que a vida sói ministrar, não deixando jamais de lembrar que a ninguém o Pai daria um peso a carregar superior à força de cada qual. Neste ponto de sua concentração, no momento mesmo em que Aristeu falava sobre os dons que o espiritismo distribui a seus adeptos, Norberto agradecia fervorosamente a Deus, a Jesus e a todos os seus amigos da espiritualidade, sua condição de entendimento das leis naturais, conformando-se a elas, à medida que ia enfronhando na alma o sentido mais profundo do amor que lhe dedicavam as duas ex-esposas, conforme testemunhava em correntes energéticas que era capaz de perceber. Agradeceu, portanto, em seguida, essa sua abertura para a percepção das mensagens espirituais, solicitando às forças que o envolviam que lhe desenvolvessem a mediunidade, achando que era bem hora de traduzir para os irmãos encarnados os fluxos de inspiração que lhe chegavam, acreditando que Durvalina ainda permaneceria com o intuito de escrever a obra que haviam combinado.
Quando foi visitar a filhinha na maternidade, bem tarde da noite, finalmente, deu vazão às lágrimas, que sempre lhe foram fartas e que mantivera estanques desde o dia anterior.
Em casa, conforme havia planejado no caminho, sempre conduzido pelo amigo Valdemar, quis brincar com o filho, liame que sabia agora ser o mais forte com a vida. Mas Titinho dormia e Dona Neusa explicou que ele passara o dia muito agitado, que era melhor que dormisse. Então, Norberto acomodou-se no sofá do apartamento do pai e adormeceu ali mesmo, deixando para a manhã seguinte as emoções do reencontro com os objetos da esposa.
11. NOVOS RUMOS
Ao acordar, Norberto foi logo sendo avisado pelo pai que, desde bem cedo, duas irmãs de Durvalina estavam, com Dona Neusa, embrulhando os pertences da falecida.
Passara pela cabeça do moço que Durvalina teria doado tudo aos pobres. Sendo assim, foi logo ao seu apartamento, onde encontrou vários pacotes e caixas já fechados.
Foi a mãe quem lhe explicou:
— Elas receberam ordem para só pegarem algumas lembranças dos tempos de solteira. Não fazem questão nem das jóias nem de nenhuma peça de roupa. Mas querem falar a você a respeito da propriedade, que se acha no nome de Durvalina.
Pouco se importava Norberto com os valores, com os móveis, com nada. Tinha presente na memória as palavras de Kardec a respeito dos bens materiais e não se incomodava que tudo voltasse a pertencer à família da esposa. De qualquer modo, ouviu atento o que a irmã mais velha lhe disse:
— Você sabe que nós temos posses. Nada significa para nós qualquer coisa que esteja neste prédio; aliás, nem mesmo o apartamento nos interessa. Mas minha mãe teve a idéia de lhe pedir, lembrando que você é advogado, que, como Durvalina recebeu de herança esta propriedade, seria lógico que a filha ficasse com ela. Que lhe parece?
Norberto ponderou que talvez a solicitação pudesse ter resquícios de contrariedade íntima dos familiares da esposa, mas nem sequer esboçou algo que tivesse o condão de representar uma nuança diferente do que lhe estava sendo pedido. Então, afirmou:
— Eu não havia pensado ainda nisto, mas acho justíssimo que seja assim. Quando chegar a hora, eu passo tudo para o nome de minha filha, que não possui ainda nem mesmo certidão de nascimento. Mas dou minha palavra de honra. Se vocês me permitirem, por algum tempo ainda vou ter de residir aqui, mesmo porque tenho de transformar o nosso quarto em uma espécie de câmara de resguardo para que a menininha possa receber os cuidados hospitalares, fugindo do ambiente contaminado da maternidade. Vocês sabiam disso?
— Dona Neusa já nos contou a respeito do neto e nós consideramos que é de obrigação de nossa família contribuir para amenizar as despesas, tanto que nossa mãe está em contato com o Doutor Jaime e também com o Doutor José Carlos para que selecionem duas enfermeiras especializadas, cujo ordenado correrá por nossa conta. Quanto às roupas que empacotamos, nós achamos que Durvalina gostaria que fossem doadas aos pobres do centro espírita. Você não pensa assim?
Tudo acertado, passaram a separar o que iria para a casa espírita, até que chegaram à caixa dos remédios. Dona Neusa foi quem a apresentou ao filho:
— Existem muitas amostras grátis e alguns frascos e caixas fechadas; mas também há outros vidros e cartelas que estão pela metade. Nenhum tem a data vencida. Separo ou deixo como está?
Norberto não se interessou pelos medicamentos:
— Feche o pacote que o médico que está no lugar dela no ambulatório do centro irá dar um destino recomendável a tudo isso. Só que eu quero que vocês providenciem para que todas estas coisas sejam transportadas hoje mesmo. Eu não posso me preocupar com isso, porque tenho de cuidar de Neusa Maria.
Quando voltasse às noite, Norberto acharia o apartamento limpo e desinfetado, sentindo, inclusive, a falta de alguns quadros. No quarto, nem armário, nem cômoda, nem cama, nem cortinas. Estaria completamente despojado, pronto para receber os petrechos hospitalares. Sua roupa estaria no apartamento dos pais.
Mas, tendo ido à maternidade, encontrou-se com o Doutor José Carlos, que o chamou para o competente relato do resultado da autópsia.
— Como está o coração do meu jovem amigo? Saiba que eu o admirei muito quanto à sua reação a evento tão dramático. Em minha profissão, o encontro cara a cara com a morte é constante, mas eu acho que nunca vi alguém aceitar a tragédia com tamanha resignação. Não sei quanto às outras pessoas, mas a mim me pareceu que você colocou tudo nas mãos de Deus.
— Nas mãos de Deus, em primeiro lugar, mas também nas de Jesus e de todos os protetores e guias familiares, que, se a gente divulga o espiritismo e não pratica, no mínimo é hipócrita. Mas isso não quer dizer que não fiquei triste...
— Eu sei que foi um choque e que a dor deve perdurar e irá perdurar por muito tempo ainda. Eu, que o vi sofrendo pela primeira esposa, Nelma, posso dizer-lhe que foi notório o seu progresso no sentido da compreensão do que seja a vida e do que representa um quadro de luto e de sofrimento, mesmo que sejamos capazes de tudo encarar com extremos de filosofia e de doutrina. Mas vamos ao que interessa, se é que de fato interessa.
Norberto aparteou-o:
— De fato, já que você lembrou a morte de Nelma, com relação a ela até que eu poderia levantar suspeitas quanto ao atendimento que lhe foi dispensado, porque meus conhecimentos eram muitos precários. No que diz respeito a Durvalina, no entanto, eu não posso falar nada, porque, não apenas ela praticava a medicina como ainda se mantinha atualizada. Qualquer dificuldade ela saberia diagnosticar. Mas se a autópsia revelou alguma coisa...
Desta feita foi José Carlos quem interrompeu o interlocutor:
— Esse é o ponto. A autópsia não revelou nada que a nossa médica não soubesse. Confirmou, apenas, conforme me expôs o Doutor Jaime, que acompanhava o pré-natal. É que ela fez uma opção, à vista de um tumor que foi detectado durante os exames rotineiros. Ela não lhe disse nada?
— Isso pra mim é novidade. Quer dizer que ela tinha uma doença que me escondeu?
— Sim. Mas estava sob tratamento. Só que ela deve ter, a partir de certa data, parado com os remédios, pra não arriscar a vida do feto. Foi uma opção em que aplicou plenamente o seu livre-arbítrio, preferindo correr todos os riscos.
— O senhor me permite...
— Continue, por favor, com o você de nossa amizade.
— Doutor, posso adentrar um pouco na doutrina espírita? Os espíritos responderam a uma questão de Kardec, afirmando que a vida da mãe é que deveria salvar-se e não a do filho. Se ela tivesse discutido isso comigo...
— Ela não discutiria nem raciocinaria pela lógica da doutrina. Ela estava estimulada pela preservação de uma vida e altruisticamente decidiu que era pela filha que deveria sacrificar-se. Mas você não deve julgar o fato depois de acontecido. Na hora em que suspendeu o tratamento, havia uma boa perspectiva de que sua decisão não redundaria em óbito. Ao contrário, se não houvesse nenhuma complicação, o que infelizmente ocorreu, as duas teriam sido salvas, mesmo porque a operação cesariana permitiu a extirpação do tumor cuja biópsia revelou ser benigno. Quanto a ela não lhe haver dito nada, certamente tinha as suas razões.
— Eu desconfio de uma dessas razões: ela me via completamente feliz, impado com meus sucessos em todas as minhas áreas, trabalhando muito, é verdade, mas com objetivos muito elevados. Ela não quis me causar nenhuma preocupação.
Chegou Norberto quase a perguntar se a atitude da esposa não raiava pela inconseqüência de uma irresponsabilidade do tamanho de um suicídio, mas se retraiu por haver vislumbrado na alma uma situação que se definia de modo um tanto diferente de quando a segunda esposa estava viva, ou seja, que o nome de Nelma foi ouvido e repetido de maneira absolutamente natural, sem peias emocionais que contivessem um sentimento de amor que não deveria aflorar.
Então o médico teceu algumas considerações a respeito do caráter e da probidade da ex-aluna, lamentando sua partida quando ela lhe manifestara vivo interesse pelo tema que o vinha absorvendo, o da regressão da memória com fins terapêuticos. Isso deu tempo a que Norberto se restabelecesse das íntimas comoções, fazendo que desviasse a atenção do facultativo para os cuidados com a prematura.
Norberto ainda ficaria uma hora inteira na maternidade observando a filha e aguardando o competente atestado para providenciar a certidão de nascimento.
Mais tarde, em casa, conversou longamente com os pais sobre como fariam sem as mães das duas crianças, mas Dona Neusa foi categórica:
— Você tem de me garantir que me entrega a minha netinha saudável depois que receber alta. Aí eu prometo que dou conta dos dois, já que minha secretária do lar (no tempo de minha mãe, ela diria simplesmente empregada) é muito boa e está afeiçoada a nós.
Durvalina mantinha uma faxineira que comparecia uma vez por semana para arrumação e limpeza geral. Norberto se lembrou dela:
— Mãe, e se nós arrumássemos uma auxiliar para a sua empregada? Eu acho que a nossa faxineira...
Dona Neusa cortou a fala do filho:
— Você não tem que se preocupar com nada. Basta passar uma quantia qualquer, que você vai combinar com seu pai, pra ajudar nas despesas. O resto pode deixar com a gente. Eu não faço outra coisa na vida e seu pai tem dado uma ajuda muito forte. Quanto tempo você pretende passar com o Titinho?
— Como assim?
— É que ele faz tempo que fica com a gente, tanto vocês saíam pra reuniões, palestras, sessões e não sei que outras atividades.
Dona Neusa não se atrevia a censurar o filho desde que o padre Timóteo não conseguira dissuadi-lo da confissão espírita. Mas a sua expressão deixava bem claro que não era o que ela gostaria que estivesse acontecendo.
Norberto recorreu ao pai:
— O senhor não acha que a gente deveria voltar a morar numa casa, onde houvesse mais espaço pras crianças?
O Senhor Raul ponderou:
— As nossas economias vão sofrer um baque muito forte com isso, ainda mais agora que você parou de receber os estipêndios da esposa. É melhor continuar como estamos. Eu acho que até o fato de a gente tomar o elevador pra subir e descer mantém a privacidade que você deve estar querendo. Vamos deixar passar os próximos três ou quatro meses, até a menina adquirir força, e depois a gente toma uma decisão definitiva. Sua mãe me falou a respeito da pretensão de Dona Maria e eu achei que está muito certo. Como este apartamento aqui está em seu nome, você pode passar pro Titinho e assim o jogo vai terminar empatado.
Aquela noite Norberto estava reservando para brincar com o filho, mas recebeu um telefonema de Claudiomiro que lhe pedia para ir ao centro, porque pretendiam evocar o espírito de Durvalina ou de um guia que pudesse explicar tudo quanto fosse possível a respeito das condições dela, como ele disse, na pátria espiritual.
— Quem está sabendo disso?
— Só o pessoal da reunião reservada: os médiuns de sempre e mais Juvenal, Clotilde, Sofia e Valdemar. Nós convidamos o Doutor José Carlos, mas ele não prometeu comparecer. Valdemar disse que iria trazer, se possível, o Agripino.
— Vocês não estão fazendo isso só por curiosidade?
— Não. O que nós pensamos é que a doutora gostaria de se manifestar, tantas foram as pessoas que demonstraram sua benquerença. Por outro lado, temos a certeza de que nossos sentimentos vão repercutir em seu espírito, ajudando-a a fixar as virtudes evangélicas que já eram apanágio dela. Você sabe dizer estas coisas melhor que eu. Mas, se não quiser vir, a gente vai entender.
— Podem contar comigo, porque, se ela comparecer, eu serei o primeiro a expressar-lhe o meu preito de saudade.
Exatamente às sete horas da noite, Norberto estacionava o carro junto à porta lateral do centro espírita. Chegava com uma hora de antecedência.
Ao entrar, deparou-se com o aspecto habitual do auditório, sem indício nenhum da cerimônia fúnebre do dia anterior. As pessoas que haviam tomado conta da instituição benemérita durante a tarde estavam de saída e, timidamente, iam cumprimentando o palestrante famoso no bairro, não sem se espantarem com a sua presença ali.
Das pessoas que permaneceriam para a sessão noturna, apenas figurava Clotilde, que logo se dispôs a recepcionar o viúvo, levando-o a visitar o ambulatório, desejosa de mostrar-lhe que tudo fora preservado conforme as prescrições de Durvalina.
De fato, com exceção da caixa de medicamentos que ele reconheceu como a que havia doado, tudo o mais estava impecavelmente disposto como antes.
Norberto sentiu um impulso de abrir o pacote, mas segurou o ímpeto, raciocinando que havia certa morbidez em descobrir o segredo da falecida. Pensou que seria melhor deixar para o médico substituto avaliar os remédios, dispensou a ajuda de Clotilde e voltou ao auditório, onde se sentou na primeira fileira diante do estrado e da mesa principal.
Enquanto esperava, evitou o mais que pôde emocionar-se com as lembranças de tantos episódios de sua vida passados naquele ambiente rústico, onde o que havia de melhor era uma lousa branca moderna, em que se escrevia com canetas coloridas e não com giz. O nome de Kardec, na célebre inscrição: Estudar Kardec para viver Jesus, sugeriu-lhe a elaboração de algumas questões para propor aos espíritos. Mas não quis escrever nenhuma, embora houvesse folhas de papel e alguns lápis sobre a mesa. Foi guardando uma a uma na célebre memória:
“Querida Nelma, que bênçãos de amor você ainda reserva para mim? Querida Durvalina, explique-me, por favor, por que você não me revelou sua misteriosa moléstia. Se não for possível elucidar-me, faça uma referência qualquer à hipótese do José Carlos a respeito. Nelma, confirme se é você mesma quem está revestida da nobilíssima condição de guia e protetora do nosso Titinho. Durvalina, a quem está reservada a tutoria espiritual de Neusa Maria? Sei que uma orientação precisa dificilmente lhe será permitida, mas me informe se devo ou não levar adiante o nosso projeto de escrever a obra a respeito da orientação sexual com finalidades não só materiais, mas também espirituais para os adeptos do espiritismo. Eu também gostaria de saber se devo submeter-me a uma regressão de memória, tendo em vista analisar os nossos vínculos afetivos de outras épocas, para que eu possa adquirir certezas quanto a melhor me preparar para a recepção que me for oferecida, quando chegar a minha vez de partir.”
O último tema absorveu-lhe a mente e Norberto passou a divagar a respeito dos conhecimentos que adquirira a respeito, através da leitura de duas obras que Durvalina enfatizava como esclarecedoras. Daí passou a refletir a respeito dos livros médicos da esposa, deliberando que deveria doá-los à biblioteca da Faculdade de Medicina, através de José Carlos.
Ainda passaria mais uns quinze minutos atarefado em afastar-se das emoções do ambiente, quando chegaram os primeiros companheiros dos trabalhos mediúnicos: Beatriz, Sofia e Valdemar, este sobraçando um pacote volumoso.
Beatriz postou-se atrás do casal, deixando-se ficar para o fim dos cumprimentos. Na verdade, quando Sofia e Valdemar abraçaram o amigo, este encompridou o olhar, a admirar a esbelta figura de modelo da adolescente e mulher, e seu rosto belíssimo de princesa núbia. Norberto não sabia a razão de lhe passar pela tela do cérebro tal comparação, mas lhe veio, de súbito, que seu pensamento se contaminava irresistivelmente pela associação com as idéias de nubente e de núbil que o termo estranho lhe despertou. Mas não teve tempo de explorar tais lampejos, que Valdemar foi logo explicando:
— Estou com todo o material do livro da nossa Beatriz. Aristeu ficou de vir buscar, porque eu faço questão de um prefácio dele. Ele me pediu pra trazer a médium responsável pelos desenhos, porque deseja fazer-lhe umas perguntas.
Norberto precisou fazer um grande esforço para realizar uma observação aceitável:
— Será que ele não vai querer transformar a nossa reunião íntima numa sessão de efeitos físicos?
O cumprimento de Beatriz foi meramente formal, mas ofereceu ambas as faces para os ósculos protocolares.
Valdemar imaginava o que responder, quando chegou Claudiomiro acompanhado de Juvenal e de duas senhoras que desempenhavam as funções de médiuns, uma vidente e a outra escrevente.
Logo Claudiomiro foi distribuindo as pessoas:
— As médiuns podem acomodar-se junto à mesa. Juvenal e Beatriz, também. Norberto, Sofia e Valdemar vão ficar aqui embaixo. Conforme as pessoas forem chegando, irão tomando assento aqui ou lá. Eu acho que doze pessoas são suficientes pra darem andamento à sessão. Ainda estão faltando Clotilde, Agripino, Aristeu, José Carlos, Oliveira e mais três companheiros médiuns. Sendo assim, pelas minhas contas, dos que estamos esperando, só Aristeu vai ficar de fora.
Nem passou pela cabeça de Norberto que deveria estar junto à mesa. Não se sentia emocionalmente estável para dar margem a que nenhum espírito se utilizasse de seu aparato mediúnico para se comunicar.
Valdemar foi ajudar Juvenal a acionar o aparelho de som e logo uma música suave preencheu o espaço, apelando para o silêncio e a concentração.
Não demorou e chegaram todos os citados por Claudiomiro e logo foram postando-se nos lugares designados pelo orientador da sessão. Apenas Aristeu veio com novidades. Trazia uma caixa cheia de lápis de variadíssimas cores, alguns de cera, e um maço de folhas grandes. Era o material que havia imaginado que Beatriz poderia utilizar, caso desse oportunidade a que algum espírito de desenhista ou de pintor manifestasse o desejo de realizar algum trabalho.
Bem que Norberto desejou burlar a pretensão do articulista e orador, de seu colega advogado, mas bloqueou a vontade por considerar o momento assaz inoportuno.
Quando se deu início aos trabalhos, Valdemar e Sofia cuidavam de registrar todas as manifestações orais em seus gravadores.
Ao término da sessão, havia diversas mensagens escritas, três gravadas e muitas folhas incrivelmente coloridas por Beatriz. Quanto a Norberto, uma sonolência inexplicável dado o interesse dele pelas comunicações impediu-o de ouvir e de ver tudo quanto se passou. Mas recordava-se perfeitamente de que se mantivera espiritualmente lúcido, compreendendo que conhecera o fenômeno do sonambulismo natural e espontâneo a que tantas referências fizera Kardec em suas obras.
Ainda durante a prece de encerramento, o moço rememorou os principais acontecimentos mentais, adquirindo consciência de que conversara realmente com Nelma, com Durvalina e com um espírito que se apresentou com o nome de Etelvino, o qual se dizia seu protetor designado pelo anjo guardião. Foi o próprio guia espiritual quem explicou que não pertencia à família atual ou antiga do protegido e que só estava substituindo o verdadeiro tutor, porque este fora convocado para serviços extraordinários.
O diálogo que se seguiu fixou-se indelevelmente na memória de Norberto. Perguntara ele:
— Não teria sido melhor que me oferecessem um espírito envolvido comigo mais sentimentalmente? Um parente próximo ou mesmo um amigo?
— Foi o que eu observei ao meu mentor, mas recebi como resposta que o direcionamento dos conselhos deveriam eleger, de preferência, o prisma intelectual, de forma que, caso houvesse enredamento emotivo entre encarnado e desencarnado, se perderia o foco principal de sua programação reencarnatória.
— Estou na companhia de minhas duas amigas e companheiras na atual peregrinação terrena. Vejo-as absolutamente tranqüilas e diria até que estão contendo o brilho de seus perispíritos para que não me sinta ofuscado. Por que me preocupo mais em saber o que se passa em relação a mim, em vez de me congraçar a elas? Terei menos méritos do ponto de vista de um acendrado egoísmo? Sinto-me inibido para dar expansão aos meus sentimentos a uma e à outra, por estarem juntas aqui? É isso a que Kardec denominava de predominância da matéria sobre o espírito, uma vez que me encontro ainda encarnado? Mais uma coisa: é uma atitude sensata esta de acumular pergunta sobre pergunta, ou seja, não deveria apenas deixar que as mensagens me chegassem de vocês, uma vez que reconheço a minha necessidade de esclarecimentos?
Etelvino foi muito breve em sua resposta:
— Devo avisá-lo de que a sua chegada se deu com alguma dificuldade, especialmente por ter sido esta sua primeira experiência. Você não percebeu, mas até adaptar-se à nossa realidade você gastou bastante tempo, permanecendo, eu diria, deslumbrado, para não dizer propriamente extático. Mas as suas questões não ficarão sem resposta. Você as receberá na forma de intuição, porque as informações vão requerer profunda meditação de sua parte. Vá em paz!
Assim que as luzes se acenderam, todos se espantaram com a paz reinante durante toda a sessão.
Aristeu, que havia dobrado uma folha e solicitado em segredo que houvesse ali o registro de uma mensagem através de escrita direta, foi logo abrindo o papel, disfarçadamente, tendo a surpresa de ler uma palavra única: scanner. Estranhou o advogado sobremodo a mensagem cifrada, mas não pôde levantar nenhuma dúvida quanto à origem espírita da comunicação. Deixou para resolver depois o enigma e se deparou logo com outro: os desenhos de Beatriz, que eram absolutamente incompreensíveis.
Na verdade, todo o pessoal se voltou para aquelas formas aparentemente coerentes, mas sem nenhuma continuidade, a não ser o fato de as cores de cada folha não se repetirem nas demais.
Foi Oliveira quem teve a idéia de sobrepor duas delas, levantando-as para olhar contra a luz, a ver se os traços combinavam de algum modo.
— Vejam que os movimentos sugerem que se trata de um desenho ou de uma pintura só.
José Carlos pegou outras duas folhas, Agripino, Claudiomiro e Valdemar fizeram outro tanto e foi possível cotejar os resultados. Então, Aristeu surpreendeu a todos:
— Não há nenhuma dúvida de que se trata de uma fórmula absolutamente original de apresentar um quadro. Eu afirmo que nunca ouvi falar em nada semelhante. O artista que concebeu essa idéia deve ser dos mais inspirados e nunca se poderá dizer que se trata de um espírito inferior. Resta saber qual é a mensagem pictográfica que ele deseja transmitir-nos e eles me forneceram a solução.
Imediatamente mostrou o resultado da escrita direta e inferiu:
— Eu nunca vi isto. Este fenômeno é para mim totalmente inédito. Vocês sabem o que significa a palavra scanner? Pois se trata de um aparelho que capta as imagens e as transpõe para o computador. Ora, se nós fotografarmos por esse processo todos os desenhos, através da eletrônica seremos capazes de sobrepor todas as figuras, obtendo o resultado ou os resultados finais.
Oliveira se apresentou:
— Se vocês me permitirem, eu tenho tudo fácil na redação e amanhã mesmo providencio pra que todos recebam cópias do desenho completo.
Enquanto isso, Valdemar punha a imaginação para funcionar e pôde sugerir algo relativo à composição da tela:
— Gente, prestem atenção, por favor, e vejam se não são dois rostos de mulher.
E apontava para os cabelos, as faces, os pescoços.
Logo todos estavam de acordo e só então se lembraram de perguntar à médium se ela sabia de que se tratava. Mas Beatriz não pôde dar nenhuma informação útil, a não ser que permanecera alheia aos movimentos de seus braços, exatamente como ocorria nos tempos em que desenhava sozinha no quarto.
Claudiomiro foi quem pôs ordem no bulício dos desenhos:
— Vocês não acham que devemos ouvir a nossa médium vidente?
De imediato todos se calaram. Talvez pudesse a senhora esclarecer as dúvidas. Ela tomou a palavra:
— Eu estive vagando por todo o ambiente etéreo e pude ver quando cada espírito se aproximou dos médiuns pra ditar as mensagens. Quem falou pra as recomendações de amor e pra agradecer em nome da falecida foi o nosso guia de sempre, o pai de Clotilde, Adélcio, como ele mesmo declarou. Eu vi os espíritos de Nelma e de Durvalina, conforme Norberto poderá comprovar, já que ele lá estava a prosear com elas e com mais outros espíritos.
Norberto, cuja referência ao fato tinha levado a se arrepiar todo, logo quis saber como é que ela o reconheceu.
— O seu perispírito reproduzia a sua imagem tal e qual. Além disso, havia um rastro luminoso inconfundível que unia a sua forma no etéreo ao corpo. Quanto a estar o ambiente envolto em paz, devo dizer que não reconheci nenhum irmão daqueles que se apresentam nas sessões de desobsessão, trazidos pelos protetores. Vocês se interessaram pelo artista e esse eu não me lembro de ter visto. Parecia um clarão que envolvia Beatriz, mas...
Claudiomiro fez um sinal para que a médium não adiantasse mais nenhuma informação e perguntou ao grupo:
— Vamos ler as mensagens psicografadas ou vamos fazer como sempre, isto é, deixar que alguém as estude, as corrija quanto à gramática e à doutrina e faça seus comentários na próxima reunião?
Foi Aristeu quem se manifestou:
— Eu não sabia que vocês são tão cuidadosos. Todos os médiuns estão de acordo com que suas mensagens sejam analisadas e criticadas?
Tendo todos assentido, Aristeu prosseguiu:
— Pois vocês estão de parabéns, que isso é muito difícil de conseguir. Mesmo na federação...
Claudiomiro fez-lhe um gesto para que Aristeu se interrompesse e aditou:
— Meu caro amigo, não é porque nós não acertamos em tudo que vamos ficar nas mãos dos irmãozinhos menos evoluídos. Quando escrevemos a frase de que devemos estudar Kardec pra viver os ensinamentos de Jesus, quisemos tornar essa divisa num verdadeiro roteiro de vida espírita pra todos os que freqüentam a casa. Eu tenho a certeza de que a sua próxima crônica há de ser muito mais cordata que as anteriores, apesar de termos fugido tanto dos preceitos gerais expedidos pelas federações e uniões das sociedades espíritas, no dia de ontem, quando compareceram aqui, pras suas homenagens à nossa amiga queridíssima desencarnada, pessoas de outros cultos e religiões. Felizmente, os nossos guias e protetores vieram hoje com a maior boa vontade, porque viram a seriedade de nossas intenções, apesar da parte de experimentação que o nosso conferencista ilustre desejou introduzir. Temos dois médiuns pra efeitos físicos, além de possuírem outras faculdades desenvolvidas. Então foi fácil atendê-lo, mas eu não vou cometer uma deselegância lembrando-lhe que, provavelmente, tais fatos não se repitam, porque a manifestação que o senhor chamou de pictográfica de nossa Beatriz constituiu uma exceção, uma vez que há bastante tempo essa sua fonte medianímica se vem mantendo seca. Desculpe-me o sermão, mas eu quero que o senhor compreenda, de uma vez por todas, que, como disse Kardec, se existem os que falsificam vinho, não está em questão a existência de vinho puro. Se nós abrimos nosso espaço mais sagrado pra atividades que poderiam ser deturpadas em outros centros menos compenetrados das responsabilidades doutrinárias, nós o fizemos por um impulso de amor e de consideração pelos seres que se integraram em nossa congregação e que nos devem todo o respeito.
Claudiomiro iria fazer menção às lágrimas furtivas que Aristeu mal conseguia disfarçar, mas teve a intuição de que deveria parar por ali.
O máximo que Aristeu conseguiu demonstrar foi uma comoção profunda através de um abraço apertado em Claudiomiro, abraço que fez que se aliviasse a tensão criada em todos pelas palavras com que o presidente do centro honrou o ilustre visitante.
12. UMA DIFÍCIL SITUAÇÃO
Após a sessão mediúnica, Norberto teve a impressão de que seu luto estava totalmente aliviado. Durvalina, ele testemunhara, estava bem e na companhia de Nelma. Restavam-lhe as responsabilidades concernentes ao papel de pai.
No apartamento desfalcado de móveis, sentou-se junto à escrivaninha do escritório e pôs-se a ler e a corrigir as diversas mensagens psicografadas, atribuição que tomou para si por se considerar o mais livre de compromissos, durante aquela semana de nojo oficial.
Não teve dificuldade em ler e entender as mensagens, não se surpreendendo com nenhum conceito que pudesse ostentar algum ponto novo da doutrina. Eram informações a respeito do bem-estar da esposa e algumas orientações muito gerais a respeito do procedimento espírita de superior moralidade. Mas nada específico que representasse uma resposta categórica às questões que formulara sozinho no auditório.
Recordou-se do banho de convicção espírita que Aristeu levou e admirou-se ainda mais com a reação do companheiro. No entanto, bailou-lhe na cabeça uma idéia que tentou afastar, mas que foi ganhando vulto, até que lhe deu forma:
“Eu vi e senti toda a paz que nos envolveu antes, durante e depois da reunião. Eu ouvi a descrição do ambiente formado apenas por espíritos benignos. Se os malévolos lá não se achavam, quem me diz que não foram mantidos do lado de fora, onde ficaram aguardando a saída das pessoas, agora reduzidas à expressão de pessoas comuns, a enfrentar os problemas inerentes às suas personalidades e ao influxo ou assédio dos infelizes com quem estamos inconscientemente acostumados? Quem me diz que Aristeu não sofreu o sermão de Claudiomiro, tendo este falado sob inspiração dos mentores do centro? Quem me afirmará que, saindo para casa, não foi ele assaltado por intuições enviadas pelos obsessores habituais, a ponto de dar margem a julgar que estivera o tempo todo numa espécie de torpor, para efeito das infiltrações que se verificaram, até fazê-lo emocionar-se às lágrimas?”
Considerou, então, que a formulação do pensamento estava a eleger um ponto de vista meramente fictício, aventando que não tinha em seu poder nenhuma prova circunstancial, nem ao menos testemunhal, de tudo quanto lucubrara. Concluiu:
“Eis que eu mesmo devo estar sofrendo uma aproximação deletéria de inspiração maldosa, se não se tratar do simples afloramento das deficiências morais incrustadas em minha alma e que me forçam a elaborar tramas insidiosas quanto ao caráter das pessoas. Tanto tenho convivido com os efeitos ruins das atitudes das pessoas, que acabei por considerar cada uma um criminoso em potencial, caso não tenha praticado algum tipo de sonegação fiscal ou moral. Quando for rezar o pai-nosso, ao clamar ao Senhor que não me deixe cair em tentação e que me livre do mal, devo concentrar-me em mim mesmo, porque a tentação se situa no cerne de minha formação espiritual, sendo que o mal maior é justamente aquele que causo a mim mesmo.”
Repassou várias vezes os mesmos pensamentos, remontou os períodos, substituiu o léxico, aperfeiçoou o texto que ia delineando-se indelével para uma exposição oportuna e terminou por julgar que tudo o que imaginara em relação a Aristeu era bem possível que estivesse ocorrendo consigo mesmo. Por isso, impregnou-se de fé nos conceitos que expendera e orou comovidamente um pai-nosso, realizando, no trecho que assinalara, o propósito de liberar qualquer outra entidade da responsabilidade pelos insucessos de suas vidas interna e externa.
Passou, então, a objetivamente cuidar dos textos e logo terminou as correções, limitando-se a alguns aspectos meramente ortográficos, que o teor doutrinário se apresentava sem senões.
Uma hora depois, havia separado todas as obras médicas de Durvalina, que José Carlos aceitou distribuir a alunos carentes, de preferência a incluí-las no acervo da biblioteca da faculdade.
Como havia dispensado Agripino e Valdemar das reuniões daquela semana, foi com estranheza que atendeu ao toque do interfone:
— Doutor Norberto, estão aqui Dona Isaltina e filha, pedindo para subir.
— Faça-as entrar, por favor.
Naqueles breves instantes até que chegassem, Norberto foi capaz de relembrar todos os instantes de convivência com a jovem durante a noite anterior, até quando ela lhe sussurrou que estava chegando a hora de partir. Sentiu um constrangimento forte ao imaginá-la no navio, em busca de aventuras em países distantes e se espantou muito de que se colocava ao lado dela, deixando todos os problemas para trás, sem Titinho ou Neusa Maria para cuidar.
Pensou:
“Eis aí de novo a manifestação intempestiva de meus desejos intrínsecos, como se eu estivesse dividido entre um ser que deseja controlar e outro, íntimo, perverso, senhorial, que me domina de verdade.”
Mas além não foi que soou a campainha.
Isaltina entrou trazendo Beatriz pela mão. Pelo jeito que cumprimentaram o moço, este logo sentiu que o assunto que as trazia era muito sério. Ele ofereceu o sofá às duas, sentando-se na poltrona ao lado de Isaltina, aprestando-se mais para ouvir do que para falar.
Mesmo sentadas, mãe e filha continuaram de mãos dadas, notando Norberto que ambas traziam os olhos inchados. Ainda assim, dispôs a esperar que falassem.
Foi Isaltina quem rompeu a barreira emocional:
— Patrãozinho, o senhor precisa saber o que vem acontecendo com minha menina. Menina? Veja que bela jovem, uma verdadeira modelo, com muitas fotos já nas revistas. Até capa... Isso o doutorzinho já sabe.
Norberto fez um gesto impaciente, mas não pôs cobro às expressões da antiga empregada da família, senhora bastante jovem, considerando que era apenas seis anos mais velha que ele. Seu movimento de alma passou despercebido de ambas, enquanto Isaltina prosseguia:
— Dentro de três dias, nós vamos partir e ela botou na cabeça que tem de ficar pra cuidar de sua menininha, quando ela vier pra casa. Eu quero que o senhor diga a ela que a criança vai ser bem cuidada e também que o Norbertinho logo vai deixar de se lembrar dela, que ele é muito pequeno pra sentir saudade.
Norberto percebeu, olhando para a fisionomia de Beatriz, que ela criava uma expectativa em descompasso com a pouca gravidade do que a mãe afirmara. Então, abriu o jogo:
— Eu gosto muito de sua filha, Isaltina. Eu a estive observando e eu acho que ela é realmente uma criatura lindíssima, que logo vai fazer sucesso na carreira que está iniciando.
Isaltina complementou:
— Pois eu fui falar com a pessoa que está cuidando dela na agência e ele me disse que ela está quase pronta pras passarelas. A escolha dela pros produtos de beleza vai abrir caminho pra todas as coisas e ela vai ganhar muito dinheiro. Mas não pode ter medo, que é isso que eu acho que está acontecendo.
Beatriz, timidamente, apertava a mão da mãe, como que pedindo para ela parar.
Mas Norberto foi um pouco mais longe:
— Mas eu acho que o ponto não deve ser bem esse. Eu não conversei com ela, mas nem precisava; eu acho que ela está gostando de mim. Aliás, faz tempo que eu tenho notado isso. Também eu acho que você já sabe disso e que ela lhe deve ter contado seus sentimentos.
Beatriz escondeu o rosto atrás do braço da mãe, tacitamente confirmando tudo quanto ouvira. Isaltina, que não esperava algo tão franco, não sabia o que dizer. No entanto, tremia um pouco, que o seu desejo era não perder a oportunidade de viajar, ainda que, isto lhe passou como um raio pela mente, ouvisse ali um pedido de casamento.
Tendo Norberto mantido silêncio, Isaltina rearranjou os pensamentos e arriscou algumas palavras com claro sentido preconceituoso:
— A filha da empregada não serve pro patrão, ainda mais que é negra. Vocês dois juntos, não vai dar certo. As pessoas vão falar e vocês vão acabar sozinhos, que ninguém gosta de conviver com a pobreza e, mais ainda, com a desgraça desta cor.
Norberto redargüiu:
— Eu não penso exatamente assim, mas a senhora tem razão, se a gente considerar a sociedade em geral. Mas, veja bem, eu fiz apenas uma suposição, que a senhora está confirmando e que Beatriz não está negando. A gente não manda no coração; é ele que manda na gente. Mas não vamos colocar o carro adiante dos bois. Eu nem falei com sua filha a respeito de nada disso. Ela apenas me lançou uns olhares que me diziam muita coisa de seus sentimentos pra comigo. A sua dedicação e as suas atenções pro Titinho, eu bem sei, mesmo quando eu nem era casado ainda com Durvalina, eram como que a comprovação de seu bem-querer pelo pai. Mas eu acho que estamos indo muito longe. Você quer que eu diga que as crianças vão ser bem cuidadas. Não precisa. Ela sabe disso. Mas eu vou dizer que vocês devem viajar. Vamos dar tempo a que os sentimentos dela por mim fiquem absorvidos pelo trabalho intenso que vai assoberbar, que vai encher todos os momentos de seus dias. Ela me disse que vai ficar, no mínimo, seis meses viajando. Mesmo que fique cinco anos, até que ela complete a maioridade, ainda assim é pouco pra se saber se esse amor de adolescente vai perdurar, vai continuar.
Enquanto falava, Norberto ia percebendo que seu nível cultural o impedia de utilizar as palavras mais adequadas para exprimir seus pensamentos. Perpassou-lhe pela mente que essa diferença social, ele, advogado com vasta cultura profissional e espírita, se constituiria num óbice tremendo para sua convivência com uma jovem que nem se formara ainda no primeiro grau. Como que a responder a seu pensamento, Isaltina acabou por lhe propiciar uma resposta íntima sem querer:
— Eu fico muito contente que o senhor pense assim. É verdade que ela me confessou que está sentido uma coisa muito forte, que seu coração está muito mais pro seu lado do que do Claudinho, que, coitado, ficou no ar quando soube que ela foi escolhida e ele não. Foi aí que desmancharam; ele, tão bonito, tão inteligente e tão respeitador. Mas é uma judiação deixar de aproveitar o trabalho, agora que ela está praticamente falando inglês, tendo até ganhado um prêmio, porque foi capaz de conversar com uma pessoa que não sabia uma palavra de nossa língua. Até eu estou aprendendo, porque me contrataram pra ajudar as moças em tudo.
Beatriz, que havia mostrado a cara, já tinha as lágrimas controladas. Ela estava muito agradecida ao moço e, lá no íntimo, achava que mais generoso ele não poderia ter sido.
Isaltina percebeu que era bem hora de se retirarem, que os assuntos tratados haviam chegado a bom termo. Mas a filha fez questão de dar uma palavra:
— Norberto, por favor, diga que vai pensar em mim e que vai me esperar.
Não fosse pela presença severa da mãe, ela abraçaria seu amado. Mas foi este que, erguendo-se, a puxou para si, abraçando-a ternamente, sussurrando-lhe ao ouvido:
— Vamos confiar em que Deus tem planos pra nós. Mas não fique iludida, pensando que tudo é um mar de rosas. Eu perdi duas esposas que amava. Eu posso dizer que sei o que é sofrer. Você não está perdendo ninguém. Então, tem de confiar em seus guias, porque eles sabem o que é o melhor pra você. Nós somos jovens ainda e eu tenho de me recuperar de tudo quanto tenho passado. Aposto que, quando você voltar, vai chegar muito diferente, com muitas idéias novas, talvez até brava com você mesma por este momento de ilusão.
— Não é ilusão. Você está me machucando por dentro. Eu sei o que sinto e o que sempre senti. Você vai ver como é que os meus guias vão me trazer de volta.
Estava na hora de se desprenderem e Norberto precisou retirar-lhe o braço que o apertava. E foi logo dizendo:
— Eu fico muito contente que você tenha compreendido. Eu prometo a você e a sua mãe que vou orar muito pra que as duas tenham sucesso e sejam muito felizes.
Mais à vontade, Isaltina praticou uma inconfidência:
— Beatriz lhe contou que, no dia do enterro de sua esposa, ela esteve com o espírito de Nelma, que a levou a conhecer outras entidades?
— Ela não me disse nada.
— Pois algum dia ela vai dizer.
Era uma deixa que Beatriz não fez questão de aproveitar. A conversa morreu.
Compreendendo o risco de voltarem os temas perigosos, Isaltina abraçou a filha e conduziu-a até a porta, que Norberto abriu, despedindo-se de ambas, momento em que Beatriz voltou a abraçá-lo, depositando-lhe no peito um beijo que lhe marcou a camisa de batom.
Quando Norberto fechou a porta, sentiu um grande peso no corpo, precisando sentar-se, para não cair. Pela sua mente, desfilavam os mais desencontrados pensamentos. Era como um redemoinho a sugar todas as emoções, todas as noções de vida, todo o passado.
Ainda sem concatenar as idéias, conseguiu distinguir um perfume suavíssimo que emanava da roupa. Estava impregnado pela essência que Beatriz estava usando, certamente um dos produtos da indústria que a contratara. Isso desencadeou uma série de lembranças dos aromas que situavam Nelma e Durvalina em seu passado.
Nessa espécie de êxtase, ficaria ele pasmo por mais de meia hora e mais tempo ficaria, não soasse o telefone.
— Pronto!
— Doutor Norberto: Oliveira.
— Pois não! Como vão as pesquisas?
— Terminei. O resultado é surpreendente. Ligue o computador que estou lhe enviando um e-mail. Vou desligar. Quando puder, retorne a ligação.
De fato, na tela do computador, configurou-se um quadro colorido. Nelma e Durvalina retratadas de modo perfeito, uma verdadeira fotografia, com profusão de detalhes. Pareciam duas pessoas absolutamente saudáveis, no entanto, Norberto percebia uma nuança translúcida na tez de cada uma, como a lhes dar uma aparência etérea que absolutamente não se recordava de haver observado jamais em nenhuma das duas. Sem que houvesse na tela um foco de onde jorrasse a representação da luz, ainda assim nimbavam-se ambas como se os contornos se projetassem em forma de aura que preenchia todo o fundo do quadro com suavíssimas tonalidades pastéis verde-azuladas.
Norberto procurou o nome do artista, porque lhe parecia que só um gênio da pintura poderia executar obra tão acabada. Procurou em vão. Mesmo ampliando parte por parte, ainda assim não encontrou assinatura nenhuma.
Tendo trabalhado um pouco sobre a figura, conseguiu enviar a tela para a impressora dando-lhe as dimensões da folha. O resultado foi magnífico: a reprodução só ficaria melhor se tivesse utilizado papel especial. Fez dez cópias, rapidamente, pensando em distribuí-las entre as pessoas com quem estivera na noite anterior. Foi quando atinou que Beatriz nem por um momento havia sido sequer referida em seus pensamentos:
“No entanto, foi através dela que esta maravilhosa obra chegou ao mundo denso, ao plano material. E foi para atender a uma solicitação do Aristeu. Acho que devo refazer tudo quanto pensei a respeito de seu relacionamento com espíritos obsessores. Se ele estivesse mal assistido, não teria recebido tão cabal comprovação de que os trabalhos no nosso centro humildezinho se dão com tanta...”
Não quis tecer um comentário elogioso. Preferiu desviar a atenção para o momento, dispondo-se a ligar para o hospital. Precisava saber como estava a filha. As notícias não poderiam ser melhores: estava começando a ganhar peso e logo teria condições de se transferir para a incubadora que se instalaria no apartamento.
Perguntou sobre quem da família estava lá e soube que a sogra e uma das cunhadas.
Decidiu descer para o apartamento dos pais, pois lhe apertou o coração o desejo de brincar com Titinho.
A criança, amorosa, recebeu o pai com gritos de alegria. Falava já e repetia tudo quanto lhe diziam, acrescentando considerações inesperadas:
— Papai e mamãe vão levar Titi pra casa.
Norberto não decidiu investigar quem era a mamãe a que fazia referência. Nelma, não, com certeza. Quem sabe Durvalina? Seria Dona Neusa? Ou era Beatriz?
O pai pegou o filho no colo e encheu-o de beijos umedecidos. Naquele instante, decidiu que estava na hora de voltar a trabalhar. Precisava encher a cabeça de problemas objetivos, que o seu momento de vida estava ficando sem presente: era uma mistura de passado e de expectativas futuras, como se as coisas pairassem ao derredor tão translúcidas quanto as figuras do retrato.
13. RECORDAÇÕES DE UMA SEMANA CHEIA
Cinco dias após haver recebido Beatriz e a mãe em casa, na manhã de sábado, Norberto, impressionado ainda com as visões noturnas, quando tudo indicava que estivera em espírito visitando uma colônia na esfera astral, antes até de se levantar, tentou pôr em dia as recordações de tudo quanto vivera naqueles intensíssimos dias.
Passou rapidamente pelos insistentes telefonemas da rapariga, notando que não tomara a iniciativa de nenhum, apesar de se haverem encontrado na véspera da partida, que ela aparecera tarde da noite em seu apartamento, fugida da mãe, pronta para concretizar seu amor, que não desejava ir embora sem uma recordação de felicidade, pela correspondência de seus sentimentos.
Não era uma lembrança que Norberto acalentava com carinho, porque lhe fora doloroso ao extremo recusar-se terminantemente ao convite apaixonado, que aquela não teria sido uma situação de que se louvasse ou de que se honrasse. De qualquer modo, as lágrimas de ambos selaram uma espécie de pacto de vida, em que a palavra dada a Dona Isaltina se pôs como sólida barreira moral e como promessa a ser cumprida em tempo hábil, caso os corações se mantivessem fiéis ao ritmo com que batiam naquele instante.
Lembrava-se de que se beijaram no carro, no momento em que ele a entregava em casa e que suas emoções daquela hora ainda lhe acendiam ternura de afagos que, se não respeitasse a jovem por tudo quanto ela lhe representava na vida, não haveria hesitado em afastar-se, tendo em vista que ela se recusou a entrar, antes que ele desaparecesse com o carro, ao dobrar a próxima esquina.
Mas logo deixou a noite para passar à manhã seguinte, quando saiu decidido a reassumir suas funções, ao lado de Valdemar e de Agripino. Punha na mente toda a sanha daquele instante de se desfazer das tristezas de todos os tempos, particularmente a necessidade dos cuidados especiais da filhinha, a qual freqüentava regularmente por mais de três horas diárias, impedido contudo de se chegar a ela pela sábia recomendação médica de que as visitas poderiam infectar a sala.
Gravara uma fita de mais de uma hora em que lia histórias infantis, cantava canções de nanar, falava como quem embala ao colo as criancinhas, tudo para que a menininha se recordasse de sua voz, conforme as conversas que havia tido com Durvalina. No entanto, não tinha a certeza de que as enfermeiras ligavam o aparelho além daquele tempo em que ele aparecia a elas por fora da vitrina dos visitantes.
Passou do hospital para o prédio da administração pública e se viu entrando lépido, cumprimentando as pessoas, agradecendo quantas vira no velório ou no enterro, chegando, finalmente, à sala que ocupava com os amigos.
Essa teria sido uma volta às atividades, não fora pelas informações que a dupla lhe passou: os políticos ligados ao governador haviam censurado o projeto, recusando-se a tramitá-lo normalmente até a sanção em forma de lei, o que impedia sua aprovação até mesmo como portaria interna a normatizar a fiscalização pelos novos padrões. Tinham os da comissão de se louvar integralmente nas leis existentes, o que significava dizer que as coisas se mantinham intocadas, praticamente paralisando o serviço de assessoria.
Queria o viúvo voltar a trabalhar? Procurasse o que fazer fora, porque lá iria ficar vigiando as moscas. Em todo caso, aquela hora passada entretido com os temas relativos à profissão teve o condão de remetê-lo de volta ao mundo exterior, pensamento que, naquele instante de reflexão na cama, o levou ao passo seguinte, este, sim, capaz de lhe dar um novo rumo às aspirações profissionais.
Foi Agripino quem o pôs a par de que Aristeu talvez lhe abrisse uma vaga em seu escritório de advocacia. Tratava ele de defender os infelizes que caíam nas malhas da lei, principalmente os praticantes de crimes de sangue e contra o patrimônio. Mas ouvira Agripino que Aristeu estava desejoso de contratar alguém da área administrativa, setor que não se aventuraria a criar sem que tivesse consigo um colega de larga experiência. Norberto se recordava de ter dito que essa pessoa não era ele, mas Valdemar, sorrindo francamente, apoiou o que Agripino dissera, insistindo no ponto de que o que faltava ao amigo era apenas atravessar o rio, já que tudo que se passava em sua margem era de seu inteiro domínio.
Norberto sorriu com a recordação e se reviu argumentando que, se tentasse atravessar aquelas corredeiras de águas lamacentas, poderia soçobrar. Então os três concordaram num ponto: aquele barco não resistiria a uma viagem de volta. De qualquer modo, Aristeu, consultado por telefone, marcou uma entrevista para a tarde daquele mesmo dia.
As horas de intervalo deram ensejo a Norberto de imaginar as situações arrevesadas em que se meteria defendendo justamente as pessoas contra as quais era ele o mais ferrenho lançador de multas e, embutidas nelas, tacitamente, os conceitos da moralidade espírita e cristã.
Do diálogo lembrava-se, fala a fala:
— Com que, então, o meu amigo Norberto está cansado de levar pancada das autoridades corruptas?
— Apesar de todas as minhas decepções, Doutor...
— O doutorzinho poderia evitar os vossas-excelências e quejandas expressões, por favor. Trate-me pelo nome.
— Aristeu, à vista da iminência de se tornar meu patrão, permita-me, ao menos, o respeito de um senhor da praxe.
— O senhor é quem sabe...
— Então, você (soa-me muito esquisito), embora eu tivesse tido muitas decepções, precisa ficar sabendo que não saio das lides oficiais senão para estimular-me para uma carreira que me encha de trabalho. Em sua conversa com Agripino, ele deve tê-lo colocado a par de tudo.
— Sem dúvida, inclusive me recomendou sua contratação com muito empenho. Mas eu esperava colocar no meu escritório uma pessoa com mais vasta experiência, alguém que conhecesse os meandros das leis e que possibilitasse aos nossos futuros clientes uma sólida defesa.
— Estamos conversando como advogados ou como espíritas?
— Norberto, de acordo com meu ponto de vista, as coisas são indissociáveis quando se tem a convicção formada de que, acima de tudo, paira a moral do Cristo e as leis de Deus. Mas eu sei aonde você pretende chegar: à defesa do crime, em nome dos criminosos. É isso?
— Certamente.
— Então, vamos dizer que você me entrevistou e que acaba de me admitir como seu patrão.
— Desculpe-me.
— Se eu lhe pedisse para dizer sem titubear em que lei está incurso o sujeito que não declarou ao fisco as mercadorias do estoque, com certeza por causa de sua origem suspeita, você me diria...
Nesse ponto, Norberto omitiu a lembrança de mais de uma hora da entrevista em que fizera as citações mais minudentes das leis, decretos, portarias e atos oficiais, reproduzindo cada item, cada parágrafo, sem hesitar, enquanto Aristeu acompanhava tudo com a legislação aberta. Ali na cama, Norberto mais de uma vez sorriu ao se recordar das expressões de admiração e de espanto do seu novo patrão, porque, a par de tanto saber mnemônico, ele também dera prova de conhecer todos os trâmites que os processos administrativos percorrem nos tribunais.
— Aristeu, eu preciso de um tempo de aclimatação durante o qual pretendo manter o meu emprego. Assim, vou ficar para um estágio de dois meses, para o que me licenciarei sem remuneração.
— Ótimo, porque, se houver arrependimento, tudo voltará a se encaixar perfeitamente.
— Eu gostaria de insistir num ponto para mim fundamental. Se um criminoso confesso se apresenta para ser defendido por seu escritório, haverá uma escolha sutil entre um advogado e outro, conforme a elasticidade moral maior ou menor de cada um? Em outras palavras, antes que você se aborreça comigo, o criminoso será defendido até às últimas conseqüências, podendo ser inocentado por artimanhas jurídicas? Não haverá para ele a contrapartida de uma pregação moral, ainda que subliminar?
— Estava demorando, Norberto, para você demonstrar qual seria a causa possível de sua não-aclimatação. Fique descansado. Nós não adotamos o axioma da advocacia corrente, segundo o qual a culpa deva ser curtida no âmbito exclusivo da consciência, e não adotamos principalmente se danos foram cometidos a exigir reparações. Mas o meu discurso poderia ser longo e completamente afeto aos princípios exarados por Kardec; mais ainda, aos princípios evangélicos de Jesus. Prefiro, no entanto, calar-me e deixá-lo à vontade para observar, esquadrinhar e extrair suas conclusões. Mas também não espere a perfeição, porque dessa qualidade transcendental ao pobre homem encarnado você entende ainda mais que eu, não discorresse na própria federação a respeito.
Norberto se lembrava que a conversa se desviara para as fitas gravadas, que Aristeu não encontrara à venda e cuja existência não chegara a concretizar-se, porque sua palestra não havia encerrado os tópicos que programara e porque ele se recusara a completar em casa, para não incorrer numa falha de caráter prático. Lembrou-se da fotografia de Oliveira, que reuniu as quinze pessoas para dar a impressão de que a sala estava cheia, fez a comparação e chegou ao mesmo resultado de que a verdade dos fatos haveria de receber um tratamento absolutamente honesto.
Relativamente à remuneração, estranhou que Aristeu lhe propôs sociedade, definindo os percentuais dos lucros líqüidos em cinqüenta por cento para cada um, tendo explicado que haveria um salário mínimo cujo valor dobrava o que recebia dos cofres públicos, incluindo todas as regalias do comissionamento.
Pensou em dinheiro e recordou-se da surpresa ao transferir os fundos das duas contas mantidas por Durvalina, esvaziadas desde a época do casamento por retiradas constantes, com certeza para aplicação no ambulatório gratuito do centro. E sobre isso sentiu-se como a mão esquerda que não sabia nada a respeito do procedimento caritativo da direita.
Havia colocado o despertador para soar às sete horas. Tendo acordado antes, surpreendeu-se quando o rádio se ligou automaticamente e passou a ouvir uma resenha jornalística dos fatos do dia anterior. As notícias acentuavam os crimes, de modo que Norberto decidiu desligar o aparelho.
Levantou-se de sua cama de solteiro e se dirigiu ao quarto em que iria ficar Neusa Maria. Já haviam chegado todos os móveis hospitalares e respectivos aparelhos e haviam executado o serviço de limpeza e higienização, tendo o Doutor Jaime passado para testar os instrumentos e avaliar a segurança para a transferência da prematura.
Ali, encostado ao batente, cismou Norberto de que deveria ceder à intuição dos amigos, voltando à noite anterior, a uma palestra na federação, em que o orador discorreu a respeito da obra mediúnica que se realizava na instituição, durante a semana, concentrando-se nas censuras aos atrevimentos de certos espíritos que saíam das reuniões absolutamente sem darem a perceber que não aceitaram a doutrinação que lhes fora feita. Voltou-se, a seguir, para a formação dos dirigentes das sessões, pedindo-lhes que tomassem providências mais sérias quanto à disciplina e à ordem em que deveriam transcorrer os trabalhos.
Mas Norberto não via tanta importância em se atribuir a responsabilidade dos desvios de conduta dos seres do etéreo às pessoas que se reuniam com o intuito evangélico de prestar ajuda de caráter moral e doutrinário. Tanto não via que, durante o jantar na célebre cantina, fez questão de averiguar como é que Dona Rosinha e o Doutor Saraiva reagiriam, se fustigados com o tema do desempenho sexual durante a gravidez. Valdemar, Oliveira e Aristeu lá estavam. Faltavam Agripino e Sofia, esta extremamente deprimida desde a perda da companheira dos últimos tempos, especialmente pelo fato de estar grávida e saudável.
Norberto deu um salto mais para trás, voltando para a noite de quinta-feira, quando esteve na casa de Valdemar com o fito de demonstrar à amiga que era possível superar a dor, confiando nos desígnios do Pai como os mais perfeitos possíveis, embora muitas vezes tão enigmáticos. Lembrou-se de que fizera questão de saber se Durvalina havia posto Sofia a par do tema que pretendiam transformar em palestra e em livro e obteve como resposta que, na opinião dela, se deveria tratar de assunto tão melindroso do ponto de vista estritamente médico, mantendo-se a obra no plano das publicações científicas, portanto, sem vínculo direto com a doutrina espírita, enquanto a aplicação das teses deveria restringir-se ao público mais interessado das gestantes e dos maridos, estes quando seu modo de proceder recomendasse o esclarecimento. Também neste aspecto, Sofia achava que, em não havendo alguém especializado na área médica junto aos centros espíritas, as pessoas responsáveis pelos cursos deveriam orientar as mulheres para buscarem essas informações nos centros de saúde.
Ainda sob o impacto negativo da opinião da amiga, a qual não tentou abalar, foi que perguntou de chofre a Dona Rosinha:
— A senhora acha que cabe falar a respeito dos cuidados dos contatos sexuais durante a gravidez na federação?
Tendo sido argüida tão repentinamente, a pobre mulher apenas balbuciou:
— O senhor sabe que meu papel é secundário. Eu só ajudo na organização geral das apresentações e providencio para que tudo vá da melhor maneira possível. Tanto é assim que, quase sempre, invoco as forças e energias das entidades que nos assistem, através das preces.
— Quer dizer que a senhora está sugerindo que os espíritos protetores da instituição sejam consultados a respeito?
— Eu acho que eles poderão responder melhor do que eu.
Mas o Doutor Saraiva não ficou satisfeito com o rumo da conversa e interveio:
— É preciso tomar cuidado com as respostas dos nossos amigos da espiritualidade. Com certeza, pela minha experiência, eles vão responder que tudo é possível quando existe seriedade e todos se mantêm coesos nos sentimentos de elevada moralidade. Eu mesmo diria isso e acho que nenhum de vocês discordaria, uma vez que lá se encontra registrado em diversas passagens de Kardec. Tudo bem, se se tratar de um público seleto e restrito, por exemplo, uns dez presidentes de centros espíritas, previamente advertidos sobre o tema e a necessidade de implantação do serviço nos ambulatórios de cada casa. Se a gente for pensar num auditório cheio como o de hoje, com mais de trezentas pessoas reunidas, dificilmente encontraremos uma uniformidade de pensamentos, ou melhor, de visão superior dos serviços que podem ser prestados na área especializada. Não será de admirar se, à primeira citação dos órgãos genitais, ainda que pelo nome científico, alguns se retirem enquanto outros se levantem para proclamar que os dirigentes da federação estão apoiando uma sessão de pornografia, como já vi acontecer em uma simples peça de teatro em que uma das personagens, num momento de extrema dramaticidade, soltou um palavrão que se justificava plenamente. Pois, acreditem, a peça foi interrompida e o auditório se esvaziou, o que até eu achei compreensível, pois as pessoas lá compareceram no intuito de se recrearem, aprendendo algo de forma lúdica; não foram para ouvir discussões, ainda que pudessem apoiar o dramaturgo e não o censor. Consultar os espíritos a gente pode sempre, mas devemos estar prevenidos para o caso de eles darem respostas demasiado puras, absolutamente apropriadas para o grupo reunido, mas perigosa se dermos oportunidade a que outras pessoas tenham ocasião de exercer suas péssimas qualidades, em razão de determinadas frustrações cuja amplitude e profundidade não somos capazes de prever. Mas eu não quero ser aquele que vai tirar de você o desejo de servir à doutrina da maneira que julgar a mais correta. No mínimo, esta sua consulta está demonstrando um cuidado quanto a como as pessoas da diretoria receberiam sua proposta. Se você me permitir, e também o Doutor Aristeu, eu posso encaminhar a sua solicitação, na forma de consulta, ao colendo colegiado que irá reunir-se na próxima semana. Caso você tenha providenciado um resumo da palestra, eu a levo e leio; do contrário, defenderei o seu interesse, firmando suas razões, até mesmo na qualidade de advogado do diabo.
Quando Saraiva foi comer seu pedaço de pizza, verificou que esfriara no prato, precisando chamar o garçom para que providenciasse outra fatia, substituindo uma pela outra na forma que se mantinha aquecida no fogareiro ao lado.
Esta lembrança surgiu espontânea na mente de Norberto, pela comparação que fez na hora com o ânimo com que entrara e aquele que precisava aquecer-se no braseiro de seu entusiasmo já tão enfraquecido.
No dia anterior, deixara o assunto morrer ali mesmo, chamando a atenção dos demais para o espírito das pessoas que haviam assistido naquela noite a uma conferência de eminente caráter restritivo. Mas, naquela hora da manhã, compenetrou-se de que deveria aceitar a sugestão da amiga ou esquecer-se dos planos que elaborara com Durvalina, e esquecer, ele bem o sabia, era o que não lhe ocorria com facilidade.
Enquanto procedia à sua higiene matinal, foi elaborando, em termos muito gerais, um projeto de atendimento gratuito no centro espírita, uma espécie de ambulatório advocatício como existia o ambulatório médico. Imaginava ampliar os serviços dando possibilidade a que acadêmicos prestes a se formar viessem a estagiar sob a sua supervisão. Vira diversos trabalhando com Aristeu e julgou não ser de todo impossível fazer o mesmo, em menor escala, para os pobres assistidos, que nem reclamar sabiam quando lesados pelos comerciantes.
Sua imaginação vagava pelos casos específicos, quando soou o telefone.
— Pronto!
— Oliveira. O Doutor passou uma boa noite?
— Passei. E você varou a madrugada trabalhando?
— Estou me tornando menos notívago, tanto que me acomodo num sofá e durmo várias horas toda noite. Estou trocando a noite pelo dia. Não é engraçado?
— E o que manda o meu solerte repórter?
— Mando um e-mail com a cópia do comentário de Aristeu relativamente ao Amor Fraterno de Jesus. Não vou adiantar nada, mas eu acho que o título é sugestivo: Confiteor. Pelo que descobri, quer dizer: eu me confesso.
— Eu faria uma tradução mais livre: estou confessando-me; talvez esta seja a intenção do autor. Mas já que estamos demonstrando cultura, você sabia que existe um livro com esse título?
— Não sabia, não.
— Confiteor é um livro de um escritor católico da velha guarda paulista: Paulo Setúbal. Eu recomendo.
— Livro de memórias?
— Sim e de muitas confissões. Mas o que Aristeu trouxe de novidade?
— Eu acho melhor ler. Então, vou desligar, pra você poder entrar na Internet.
14. ENTREMENTES, NO ETÉREO
Etelvino e Glauco se haviam separado desde a noite da reunião mediúnica. Agora, enquanto Norberto assentava seus propósitos de vida, os dois resolveram manter uma conversação, no mínimo, estranha.
Dizia Glauco:
— Precisamos, urgentemente, solicitar permissão para examinarmos as relações passadas entre Norberto e Beatriz. Não que eu tenha muita coisa com isso, já que, dificilmente, a união desses dois afetará meu pupilo Valdemar de algum modo, mas acontece que é estimulante aplicar um pouco de nossa atenção para decifrar o mistério de uma atração simpática epidermicamente tão pouco natural.
— Eu não sinto a mesma ânsia dessa descoberta, mas garanto-lhe que o Pai José, na qualidade de guia da menina, sabe perfeitamente o que está causando a aproximação entre os dois.
— Então, sendo assim, estamos em desvantagem.
— Pior será se nem ele estiver a par do passado comum de ambos. Mas nós somos capazes de imaginar que, pelas reações da mocinha à presença de Durvalina, algum conflito pode ter havido entre ambas, em alguma circunstância de vida.
— Mas Durvalina não teve os mesmos estremecimentos. Eu sei que ela voltou cheia de energia, como muito pouca gente consegue, mesmo entre os espíritas mais convictos, e que, portanto, sua formação espírita e cristã lhe facultava espreitar os sentimentos da outra, em relação ao marido, com inteira compreensão. Em todo caso, também seria natural que emitisse vibrações de caráter negativo, pelo menos para afastar a rival.
— Glauco, não precipite conclusões. Não julgue natural nos outros o que você condenaria em si mesmo. Qual seria sua reação na posição dela?
— Eu elevaria meu pensamento em orações, aguardando dos protetores seus desvelos para com a pessoa que me vem considerando uma ameaça no plano das realizações íntimas.
— Não foi exatamente assim que ela reagiu?
Glauco não quis prosseguir na mesma linha de raciocínios e resolveu adotar o ponto de vista de Etelvino que acabou achando muito mais razoável. Mas insistiu num aspecto:
— E quanto a Norberto? Pelo que você me informou, ele está começando a ceder aos encantos da companheirinha da juventude. Terá sido filtrada para a memória atual algum fato, alguma situação, algo das existências anteriores em que Beatriz lhe fora muito querida, quiçá uma esposa, uma amante, alguém importante para o aprofundamento da amizade atual?
Como que evocado pela dupla, surgiu-lhes o Pai José, anunciando:
— Eis-me aqui.
Etelvino logo externou seu agradecimento:
— Muito obrigado por ter vindo, meu amigo. Penso que você esteja sentindo, como nós, a necessidade de juntarmos as nossas forças, agora quando está havendo a possibilidade de se unirem ainda mais estreitamente os vínculos existenciais entre a sua pupila e o meu.
— Vocês estão desejosos de saber onde se cruzaram aquelas duas criaturas. Pois eu conheço bem a história de ambos e obtive permissão, na presente circunstância, para lhes contar, sem cometer nenhuma indiscrição. Poderia abrir-lhes uma tela para exibição de diversos quadros animados, com a reprodução fidedigna de vários episódios, mas acho que o meu resumo poderá ser expressivo.
Diante da expectativa de ambos, Pai José prosseguiu:
— A existência deles, como da universalidade das criaturas, começou com sérios problemas, dado o mínimo de adiantamento espiritual de cada um. Beatriz começou como presa de guerra entre os povos bárbaros, tendo sido separada dos filhos, para servir a Norberto. Nesse primeiro contato, o coração da mulher encheu-se de ódio, mas ódio sufocado pelo medo, que tantas outras foram simplesmente trucidadas ou reduzidas a criadas das esposas. Mas Norberto era magnânimo e soube ser justo e compreensivo, na medida de suas prerrogativas de senhor. Deu a Beatriz condições de sobrevivência e, após vinte anos de cativeiro, entregou-a a outro dono, tendo percebido que iria morrer em breve. No etéreo, houve perseguições de povo contra povo; entretanto, Beatriz se recusou a odiar Norberto, limitando-se a recordar-se dele com mágoa e também com admiração. Outra vez se encontraram na carne, em situação invertida, ela no papel de homem e ele no de mulher. Mas se juntaram na mesma família, como irmãos de sangue, sem que, contudo, estabelecessem laços de amizade. Beatriz impunha-se a Norberto, reminiscência clara da condição de subalternidade da vida anterior. Envelheceram ambos e, no final da existência, tendo Norberto enviuvado, foi acolhido na casa de Beatriz, sem que passasse por humilhação. De volta à erraticidade, Norberto foi admitido numa colônia para as primeiras lições evangélicas, tendo instado junto aos mentores para que abrissem diversas vagas para entidades por quem ele se responsabilizava. Durvalina, Nelma e Beatriz foram três dos dez espíritos acolhidos. No retrospecto dos débitos, Norberto superava as três, de modo que, nas três vidas seguintes, serviu como esposa dedicada a cada um dos maridos, encarnações de cada uma delas. E nas três agasalhou no ventre as duas outras, criando-as como filhos. Vejo que vocês não estão entendendo a condição mais perversa, nesta existência atual, de Beatriz, que, apesar de todos os dotes intelectuais e morais, acabou, pela própria condição de criada da família e de pessoa de outra raça, sendo relegada a uma situação de inferioridade. Este é o nó da trama. Vocês conhecem o nível evolutivo de Nelma e de Durvalina. Vocês sabem que se trata de criaturas excelentes, em vias de serem guindadas a uma esfera mais elevada. Eu mesmo é que refleti com eles a respeito e lhes dei a sugestão deste derradeiro teste, para que comprovassem a benquerença além de qualquer pressão externa seja de que caráter for. Hoje, Beatriz se veste com um corpo de mulher; Norberto, de homem; é uma contingência para o desenvolvimento do amor como qualidade essencial da alma. No etéreo, somos todos espíritos e eu não os vejo senão como focos de energia, que seus corpos espirituais não se definem para mim como uma necessidade de referência. Não é assim que vocês me vêem e um ao outro?
Realmente, se, de início, os dois amigos receberam a figura do Pai José com uma aparência de preto velho, agora ele se fazia reconhecer por um feixe de luz com características individualizadas. Mas Etelvino e Glauco não se enxergavam assim, muito embora pouco restasse de suas figuras conhecidas, porque a felicidade das lições que receberam proporcionava-lhes uma emanação áurea de profunda beatitude.
Glauco se encheu de vontade de inquirir a respeito de uma série de assuntos, mas se deixou inibir por não estar relacionado a Norberto senão pela amizade com Etelvino. Este, no entanto, recebeu todo o influxo do sadio interesse do companheiro e, telepaticamente, requereu de Pai José se dignasse esclarecer.
— É importante para o nosso irmão Glauco saber que Valdemar e Sofia, assim como outras pessoas dos círculos familiar e de amizade de Norberto, estão sendo integrados ao imenso grupo de espíritos em ascensão moral a que pertencem as três criaturas a que nos referimos antes. Mas, além disso, eu não posso adiantar mais nada, primeiro, porque seria apenas para matar sua curiosidade, segundo, porque eu mesmo não tive tal curiosidade em ir atrás dessas informações, terceiro, porque sempre é bom manter acesa a expectativa de como as circunstâncias vão aproximando e afastando as pessoas, conforme seus níveis de simpatia e antipatia, níveis decalcados no adiantamento espiritual de cada um.
Sem palavra de despedida, Pai José retirou-se tão inopinadamente quanto chegou, deixando Etelvino e Glauco às voltas com muitas questões sem solução.
— Quer dizer, perguntava Glauco espontaneamente, que os quatro programaram, ou programaram por eles, voltar ao plano terrestre, tendo sido previamente estabelecido que Nelma e Durvalina logo regressariam e de forma semelhante?
Etelvino gostava dos rompantes do amigo mas, analisando a questão, não pôde oferecer uma resposta definitiva. Em todo o caso, arriscou:
— Confiar no acaso, sendo criaturas de certa evolução, de certo cabedal de conhecimentos, eu não acredito que tenham feito. Entretanto, configurado o fato real de que Nelma era católica e de que sua morte é que deu azo a que Norberto e Durvalina, esta espírita de berço, se encontrassem, temos de supor que, sem o afastamento da primeira esposa, talvez Norberto nunca se encontrasse com a segunda.
Glauco acrescentou outra pergunta:
— Quando Beatriz nasceu, os outros três espíritos já se haviam encarnado há alguns anos. Quer dizer que o amor dela por Norberto, e pelas outras duas, é que determinou uma escolha humilde de empregada doméstica, surgindo diante dele antes até da primeira esposa?
— Este ponto me parece menos controverso, porque o Pai José nos disse que teve oportunidade de aconselhar que tal situação ocorresse e com o objetivo de ser efetuado um teste, o que eu interpreto como uma provação de caráter sentimental, com o intuito de alguma purgação, como seria o caso de haver ciúme em relação às outras duas.
— Permita-me, Etelvino, considerar que Beatriz foi quem ajudou a desencadear, através de sua mediunidade, uma série de efeitos físicos solicitados por Norberto com o fito de se inteirar da verdade espírita. Isto necessariamente significa que ela veio apoiar a realização de toda a obra posterior de um espírita convicto, alguém que se nota estar destinado a contribuir para a propagação da doutrina.
— Infelizmente, Glauco, a autenticação dos conhecimentos doutrinários de Norberto vem sendo realizada com percalços, estando ele sempre em situação delicada por realizar atos desafiadores para o stablishment, ou seja, a classe dirigente do movimento espírita organizado oficialmente. Veja que ele está insistindo, de resto insuflado por mim, em elaborar um roteiro em tudo e por tudo contrário às normas elementares mais corriqueiras da didática federativa e da grande maioria das casas de atendimento evangélico e mediúnico.
— Por que, então, meu caro Etelvino, Valdemar não sente os mesmos comichões revolucionários, ele que topou, via Norberto, com os mesmos problemas, a partir do momento em que se viu às voltas com o processo que quase fez que perdesse o emprego?
Calou-se Etelvino pensando em que Glauco talvez gostasse de enfrentar um nortear de decisões mais dramático, mais conturbado, como o dele mesmo; julgando que talvez o amigo estivesse sendo arrebatado por vislumbres de soluções que não ousava definir. Então, perguntou, por sua vez:
— Está você imaginando que nós estamos desempenhando papéis de tolos, envolvidos no mesmo emaranhado dos destinos de nossos protegidos arquitetados pelos seres que nos dão assistência, mas que não nos colocam a par de tudo, como ficou evidente pelo que o Pai José revelou, ele mesmo mais consciente do que se passa até com os nossos próprios pupilos?
Glauco foi rápido na resposta:
— Eu não desconsidero tal possibilidade mas não lhe atribuo nenhum sentido negativo. Não é verdade que nossas atribuições estão delimitadas por uma área de competências voltada para os ganhos espirituais de nossos protegidos? Compete-nos auxiliá-los a tomar a melhor deliberação perante as situações de enrosco em que se metam. Mas também temos de cuidar para que se metam nessas situações, caso contrário há de ficar muito superficial uma vivência sem problemas a fustigarem as reflexões mais importantes relativamente à existência como um produto do Criador, cujos desígnios, temos de convir, são bem mais misteriosos do que estes eventos para cuja decifração estamos tendo dificuldades.
— O homem mais esperto, aquele que resolveu o enigma da Esfinge, Édipo, não conseguiu fugir ao seu destino. Eu sei que isto é puro mito; mas que dá vontade de afirmar que os cordões estão sendo manipulados, lá isto dá. E, no entanto, estou eu aqui a realizar, meu caro Glauco, estas malfadadas considerações sob inteira responsabilidade minha, já que estou exercendo o meu direito de livre-arbítrio. Não é esquisito que a gente goste de chuchar o leão com vara curta e, ao mesmo tempo, estremeça todo, receando estar sendo injusto para com quem nos oferece amor absoluto?
A meditação de Etelvino remeteu ambos ao exame minucioso das lições incrustadas em suas consciências, lições que lhes cabia assimilar e aplicar em sua excelsa função de orientadores espirituais.
15. CONFITEOR
O texto de Aristeu, basicamente, contrariava os anteriores que havia escrito a respeito das atividades no Centro Espírita Amor Fraterno de Jesus. Mas também não avançava muito nas reformas conceituais de como deveriam passar a agir os federados. Reconhecia que muitos preceitos por ele mesmo expendidos tinham de ser revistos, mas pautava o discurso pela descrição pura e simples dos fatos presenciados durante o velório de Durvalina e durante a sessão em que compareceram os espíritos com palavras de muita serenidade e paz, deixando-se admirar sobremaneira pela figura resultante dos estranhos esboços que redundaram no retrato duplo.
Mas a ilustração do artigo não elegeu as cenas com os irmãos católicos nem com os umbandistas; fixou-se em dois desenhos separados e no resultado final do trabalho pictográfico, de modo que, pelo menos neste aspecto, os amigos do centro não tinham de que reclamar, como quando as fotos do casamento incentivaram observações desairosas.
Aristeu, ao final, mencionava a próxima aparição do livro de Beatriz, prometendo um trabalho gráfico de primeira.
Norberto leu o texto com muita atenção, buscando pontos em que poderia rastrear sutis transformações no modo de pensar do autor, mas acabou concluindo que o homem era rígido demais em seus pontos de vista, considerando um desafogo o fato de que o centro não terminou sendo acusado de abuso ou de desvio das normas estabelecidas desde os tempos de Kardec.
No entanto, vislumbrou certa possibilidade de captar o interesse do novo patrão no fato de ele haver reconhecido que estigmatizara um grupo de denodados e conscientes militantes do espiritismo experimental, fundamento do título do artigo, título, aliás, extraído, como se recordou, diretamente do nome da prece que antecede o sacramento da confissão entre os católicos.
Imaginou-se o moço, enquanto fazia a barba, um tanto já atrasado para o que tinha de fazer naquela manhã de sábado, dialogando com o jornalista:
“Doutor Aristeu, por favor, considere a possibilidade de mudar sua atitude pessimista em relação aos trabalhos desenvolvidos nos centros espíritas que não pautam seus hábitos exclusivamente pelas recomendações das autoridades espíritas. Posso afiançar-lhe que todos os grupos erram nisto e naquilo, mas são defeitos de pequena monta. Na realidade, o cerne do espiritismo, considerado como meio e fim do relacionamento entre os planos físico e imaterial, sempre se respeita, como se pode avaliar pelos dizeres de Kardec que se repetem, ou seja, fora da caridade não existe salvação.”
“Meu jovem e querido amigo, eu reconheço que você tem razão, mas há de concordar comigo que, se dermos corda, aprovando tudo quanto passa pela cabeça das pessoas, em pouco tempo os companheiros estarão, não recebendo pessoas de outros credos ou de outras religiões, mas executando eles mesmos os cultos, segundo...”
Norberto exerceu o direito de interromper à vontade o seu fictício interlocutor, fazendo-o calar-se, para revidar:
“Os desvios outros problemas não trazem senão para quantos não desempenham satisfatoriamente as suas funções. Nem a federação, nem as sociedades, nem os próprios centros podem assumir a responsabilidade pelos erros dos outros. Afinal de contas, todos estamos em fase de aprendizagem e a perfeição paira muito longe de nós, reles criaturas habitantes de um orbe de provações e de expiações. Então...”
Estranhamente, sentiu no âmago da alma que Aristeu deveria estar precisando expor um ponto de vista contrário e ficou a ouvi-lo:
“Veja bem, meu caro e preclaro advogado e amigo, a responsabilidade dos irmãos dos centros mais concorridos ou dos grupos que se reúnem em casas de família, particularmente, se atém a eles mesmos e, enquanto não dominarem a doutrina, estarão sujeitos a enganos que podem vir a ser fatais até para seu próprio adiantamento, uma vez que, sem vigilância, vão acabar nas mãos de espertalhões da espiritualidade, espíritos obsessores que causarão os maiores transtornos, inclusive o desligamento desses grupos da sociedade em geral. Lembre-se, para citar um exemplo extremo, de que há sessões de magia negra em que se sacrificam até seres humanos, contrariando todas as mais lídimas recomendações contidas nas obras espíritas, mesmo as mais rústicas e ignorantes. Então, em se tratando de responsabilidade, está inscrito no roteiro de atividades da federação que seus membros têm de fornecer apoio, esclarecimentos, cursos, palestras etc. a todas as pessoas que se interessem, de um jeito ou de outro, por realizar uma obra espírita de cunho kardecista. Se nós não cumprirmos esta parte de nossas obrigações, não teremos razão de existir como órgão de consulta e de orientação. Você não acha que é preferível sermos acusados de excessivamente zelosos a recebermos o epíteto de...”
Antes de sair, Norberto ainda teve tempo de um último parecer:
“Meu sutil argumentador, de qualquer maneira, você tem de reconhecer que houve uma transformação essencial em sua atitude, qual seja, a de que se abalou a averiguar in loco antes de exarar os comentários. Veja que, em seu último artigo, você tomou o cuidado de não censurar ninguém, admitindo que houve muito respeito pelo lugar sagrado em que se deram ambas as atividades, respeito decorrente do amor, da solidariedade, do carinho fraternal com que todos foram levados a tratar as entidades espirituais que nos rodeavam, pela benquerença da falecida. Escrever que não se deve fazer isto ou aquilo, é lógico, deve fruir de fatos extraídos da realidade, mas após um trabalho sério de investigação, para não dar a impressão de que tudo o que se faça não pode sair um milímetro dos dizeres das autoridades com poder de falar de escrever nos órgãos de divulgação para públicos mais ou menos entendidos. Em suma, como não tenho mais tempo, eu estou confessando-me ainda um pouco verde para uma exposição mais profunda sobre o tema, já que eu mesmo não tenho um volume muito grande de textos lidos e que posso cair na mesma esparrela que estou criticando.”
Após tomar seu café da manhã com os pais e Titinho, Norberto saiu com a família para assistir à missa de sétimo dia, oficiada por Tiago, ocasião em que a igreja se encheu com todas aquelas mesmas pessoas que velaram Durvalina e as que compareceram ao cemitério.
Dona Neusa sentia uma emoção muito forte, uma alegria profunda ao ver que o filho não opunha nenhum obstáculo em acompanhar o sacramento, deixando-se orientar pela necessidade de erguer-se, de sentar-se, de ajoelhar-se, não se furtando mesmo a persignar-se, sob a bênção do sacerdote. Mas teve seu momento de decepção quando percebeu que os familiares da nora se mantiveram no fundo da nave, de pé, sem se concentrarem no ato religioso. Culminou a sua preocupação quando Raul fez que se mantivesse atenta ela mesma às orações, indicando-lhe o altar e a imagem da santa padroeira.
De volta para casa, conforme haviam combinado na igreja, Norberto encontrou Aristeu à sua espera, carregado de processos para estudarem em conjunto.
— Com que, então, meu caro chefe, o senhor também se viu obrigado a reconhecer que no Amor Fraterno de Jesus a gente vem trabalhando decisivamente em prol do espiritismo!
— Pois eu me confessei admirado e reverencio tudo quanto vocês realizam naquele prédio vetusto; mas saiba que, acima de tudo, vocês devem estar mui gratos ao Pai e a Jesus por enviarem até vocês espíritos de tamanha envergadura moral, de tanto adiantamento que bem poderia eu referir-me a eles, se não estivesse impedido pelas minhas barreiras físicas, como sendo verdadeiros espíritos de luz.
Mas ambos não podiam perder muito tempo, porque tinham apenas até às três horas da tarde para deslindarem os principais problemas legais da pauta. Depois disso, cada qual iria para um centro, Norberto desejoso de ouvir a palestra do médico e amigo José Carlos, que falaria a respeito da regressão às vidas passadas como terapia; Aristeu para desenvolver o tema da união das fés religiosas, palestra em que propugnaria uma certa abertura aos adeptos do espiritismo, desde que houvesse a contrapartida da aceitação pelas demais dos dados filosóficos e científicos da doutrina inaugurada por Kardec e acrescida de numerosos elementos por um século e meio de trabalho nas esferas carnal e espiritual.
16. NASCE PIERINA
Dois meses depois dos últimos acontecimentos, vinha ao mundo a filha de Sofia, saudável e robusta.
Valdemar, que havia engordado bastante nos últimos tempos, ostentando uma protuberância respeitável de abdômen, não cabia em si de contentamento, com certeza pelo tanto de dor e de trabalho que o amigo Norberto estava tendo com os dois filhos, muito embora Neusa Maria já houvesse dispensado o quarto de hospital que se montara no apartamento, permanecendo apenas aos cuidados de duas enfermeiras, que se revezavam muito especialmente porque incumbidas de providenciar-lhe o leite humano que passava pelo controle de qualidade do hospital.
Ao contrário de Valdemar, Norberto perdeu para mais de doze quilos e, com eles, a exuberância das carnes, escaveirando o rosto, mantendo, porém, no fundo das órbitas, o brilho de sua sagacidade. Não se podia dizer que os traços de sua beleza feneceram, mas ficaram apagados e inexpressivos.
Instado pelas cartas de Beatriz que lhe enviasse pelo menos uma foto a cada quinze dias, o que ela retribuía com prazer, recortando as páginas das revistas que faziam a divulgação dos produtos da empresa de cosméticos, pôde a jovem acompanhar, com o coração cada vez mais opresso, a transformação física do amado.
Quando recebeu uma foto de Norberto com os dois filhos no colo, ao lado do feliz casal com a recém-nascida, pensou de início que era Raul com os netos, que o moço estava visivelmente envelhecido.
De fato, se Norberto já possuía alguns cabelos brancos antes de se casar com Durvalina, agora suas cãs estava bem pronunciadas e a calva avançava nas têmporas. Via-se assediado pelas mulheres, mas não prestava atenção em nenhuma. Estranhava que aquilo estivesse acontecendo mas Sofia, que não havia deixado passar nada, afiançou-lhe:
— As mulheres gostam da aparência de fidalgo dos senhores de meia idade, o que não é o seu caso. Ainda mais se entusiasmam, então, quando existe um perene ar de tristeza, cuja cura elas gostariam de patrocinar. E, se acrescentarmos a isso a fidelidade a suas ex-esposas, mais um bom rendimento mensal, mais a segurança das propriedades, mais a cultura e a inteligência...
Foi quando Valdemar interveio:
— Não me diga que eu preciso que a minha amada esposa se vá, emagrecer trinta quilos, ter um ar de cachorro perdido...
— Querido, de tudo quanto você disse, pro bem de seu coração e pra que eu fique mais tempo ao seu lado, a única coisa certa é a sua necessidade de um bom regime, porque o meu amor deve bastar-lhe, que eu também não quero ver nenhuma sirigaita arrastando as asas...
Norberto sorriu enternecido ao presenciar aquelas declarações de amor, mas não deixou de observar que os exercícios matinais estavam fazendo falta ao amigo, enquanto notava um visível depauperamento de sua própria musculatura, mercê de um duplo regime de trabalho, enquanto não saía publicada a sua licença sem remuneração.
Naquela mesma tarde de sábado, enquanto os filhos dormiam com a avó, Norberto ficou sabendo que Dona Neusa havia protagonizado um episódio no mínimo interessante, em favor do batizado de Pierina. É que os familiares católicos de Sofia, unidos aos de Valdemar, foram requerer ao Padre Frederico que abrisse uma exceção quanto à exigência da Igreja de que os pais devessem freqüentar o curso correspondente, o que ele negou peremptório.
Explicava Valdemar:
— Aí sua mãe foi falar com o Frederico.
E o amigo exclamava:
— Pois ela não me disse nada!
Sofia dava o seu palpite:
— Pois ela estava preparando um outro batizado.
Continuava Valdemar:
— Pois foi o Tiago quem me contou que Dona Neusa foi até a nossa paróquia exigir que Frederico transferisse a responsabilidade do sacramento do batismo, caso contrário, se acontecesse qualquer coisa às crianças, ele iria pro inferno (não sei se ela não disse purgatório, que o pecado não era mortal) pelo fato de ter impedido a uma alma de ir ao Paraíso, devendo passar a eternidade nas tétricas regiões do limbo.
Norberto se admirou:
— Mas até eu sei que a Igreja aboliu o conceito de limbo, transformando o batismo em um sacramento de efetivação dos adeptos no círculo católico, como membro da comunidade cristã.
— Pois Tiago me afiançou que Dona Neusa argumentou com a tradição, fazendo que Frederico lavasse as mãos como Pôncio Pilatos. Imagem que ele deve ter-se recusado a fazer, atribuindo certa razão à sua mãe, tendo em vista que as idéias dela foi a própria religião quem forneceu.
Na semana seguinte, voltando a visitar os amigos, Norberto encontrou Pierina já com um sorriso fácil no rostinho rosado. Comparando com Neusa Maria, não apresentavam outras diferenças a não ser genéticas, que o tamanho, o peso e o desenvolvimento geral se equivaliam, dado que a filha nascera de sete meses.
Enquanto Sofia se retirou para cuidar da filha, Valdemar, triunfante, apresentou o livro já editado:
— Eis aqui meu primeiro rebento intelectual. Não está linda a capa?
Ali o amigo leu: Efeitos físicos dos tempos atuais. Havia uma foto de Beatriz ainda bem mocinha, extraída de um dos flagrantes antigos de Oliveira, ao tempo dos apedrejamentos. Tinha ela um certo ar distante, como que em transe, o que Valdemar explicou:
— Essa fotografia foi trabalhada eletronicamente. O que não faz a tecnologia moderna! Eu queria que Beatriz desse um de seus retratos atuais, como modelo. Mas Aristeu achou melhor que não: “Para público espírita, disse ele, é mais eficaz uma imagem de recolhimento e paz de espírito, que é como eu vi a jovem em transe mediúnico sério e produtivo.”
— Pelo menos os desenhos não foram retocados.
— Veja o quadro com Nelma e Durvalina. Que beleza! Aristeu fez questão de reproduzir todos os esboços. Aliás, o prefácio que ele escreveu está magnífico. Eu acho dez mil exemplares um exagero, mas ele me garantiu que a federação não ia ter prejuízo. Ele não lhe disse nada?
— Eu quase não estou me encontrando com ele. Mas ele me avisou que o livro estava quase pronto e que vocês iam fazer o lançamento numa noite de autógrafos.
Lembrou-se de Beatriz como co-autora principal, que os espíritos, se comparecessem, não assinariam, a não ser pela mão da médium. Mas não quis chamar a atenção para essa lembrança, que a benquerença entre ambos fora já motivo de comentários naquela casa amiga. Entretanto, Valdemar se antecipou:
— Beatriz foi avisada do dia e da hora. Por e-mail, respondeu que talvez desse pra comparecer. Ela não lhe disse nada?
— Estou sabendo disso neste instante. Pensando bem, é estranho que ela tenha usado esse meio de comunicação. Dela eu só recebi dois e-mails que nem pude responder, que o endereço dela tem mudado muito. Como você sabe, as cartas vão por conta da agência. E já foi marcada a data?
— Corre por conta dos dirigentes. Quem sabe coincida com a sua palestra a respeito dos problemas sexuais das gestantes. Aliás, em que pé mesmo estão as coisas?
Norberto sentiu uma sorte de alívio em voltar os pensamentos para outra direção, que seus sentimentos fizeram que se agitasse com a possibilidade do encontro.
— Pois bem, a diretoria, tendo, com certeza, ouvido Saraiva e Aristeu, marcou uma espécie de sabatina, e vai reunir todas as monitoras dos cursos para gestantes, com a presença obrigatória do José Carlos e de outros médicos, em que eu deverei expor minhas idéias principais, ficando depois à disposição do auditório para as perguntas que se julgarem oportunas. Pode parecer excesso de zelo, mas estou cada vez mais tendendo a aceitar que todo o cuidado deva ser tomado para que ninguém se equivoque quanto à honestidade de propósitos na prática do bem.
Naquele instante, chegavam mãe e filha e Norberto fez questão de carregar a pequena Pierina, que se sentiu à vontade em seu colo, a ponto de Sofia comentar:
— Mais uma que caiu nas graças do viuvinho casadoiro.
17. AS ASAS DOS ANJOS
Mais dois meses se passaram, e o destino das famílias não se alterou. Nem as perspectivas de trabalho de Norberto se alinharam de forma a possibilitar-lhe aquela satisfação do dever cumprido. Nem os eventos espíritas propriamente ditos, patrocinados por ele frutificaram, pois a época ainda era de plantio.
Beatriz veio, autografou, dominou o público com sua simplicidade estudada, que os artifícios dos produtos que divulgava ela já utilizava com astúcia. Mas não tentou passar a imagem de um ser de excelsas virtudes, bastando-lhe ser o mais natural possível, que a sua realidade mental daquele momento elegia a discrição pessoal para deixar a beleza eclodir em admiração.
Foi reconhecida por muitas senhoras e senhoritas pelas fotos e também por algumas reportagens que a indústria cosmética encomendou, de sorte que, antes de a questionarem a respeito das atividades mediúnicas, as perguntas se voltaram para seu sucesso no exterior. E logo as encomendas chegaram de todas as plagas em que havia um centro espírita, esgotando-se o livro três semanas após o lançamento.
Brincando com Titinho, ela descobriu que estava encarando extremamente acanhado o círculo familiar em que crescera. No exterior, os momentos de folga eram preenchidos com intermináveis serões com os companheiros de viagem, todos altamente interessados em dominar o básico dos idiomas pelas nações por onde passavam. Foi assim que ela descobriu sua facilidade extraordinária para exprimir-se em diferentes línguas, fossem neolatinas, fossem anglo-saxônicas, fossem mesmo germânicas.
Prometera, ao partir, que iria visitar os núcleos espíritas em cada cidade onde permanecesse no mínimo uma semana. Mas o máximo que conseguiu foi visitar o túmulo de Allan Kardec, onde teve uma visão, única até aquela data, em que um espírito de muita luz se achegou para perto dela, com a mão no peito, sorrindo e demonstrando carinhoso afeto pela jovem. Sentiu-se muito bem, porque lhe ficou na lembrança um quadro exposto no plano espiritual, em que ela se retratava tendo ao derredor uma porção de crianças brincando. Era uma expressão de felicidade que não fez questão de interpretar. Sabia, no fundo do coração, que se acharia, em alguma ocasião, com a responsabilidade de ser o ponto de convergência de pequenos seres em fase de crescimento espiritual.
Viera para encontrar-se com Norberto. Encontraram-se, ambos em lágrimas de extraordinária felicidade, compreendendo que se amavam acima até da distância e das necessidades materiais. E ambos entenderam que não estava na hora de se reunirem, que os objetivos de suas vidas não se confundiam.
— Você, querido, tem de cuidar da saúde. As crianças precisam de você. Eu não quero mais receber fotos tão feias de uma pessoa tão linda e maravilhosa. Eu sei que você sente saudade dos tempos passados. Eu compreendo isso. Eu também sinto. Mas agora chegou a hora de a gente realizar alguns sonhos: os meus se definiram em dar-me por inteiro à profissão, que é preciso que a pobreza ceda a vez a uma excitação que nos provocará, minha mãe e eu, para a firmeza de nossos pensamentos de tudo fazer para o bem dos outros. Você, que tanto queria reformar as consciências, deve estar, com suas decepções, pensando em fazer algo mais abrangente. Pois vá em frente, mas não se deixe afogar, que o mundo nos oferece a todos nós as oportunidades de crescermos.
Norberto não punha admiração nas palavras sussurradas pela amiguinha. Tinha a sensação de que estava sendo inspirada, misturando, nos conselhos sensatos e prudentes, muitas de suas emoções. Também sentia que as palavras de Beatriz constituíam um conjunto de lições que aprendera ao estudar espiritismo no centro, palavras que demonstravam juventude e inexperiência. Irresistivelmente, era levado a recordar-se das manifestações tão adultas e racionais de Durvalina, que o compreendia em toda a extensão de suas incursões pela filosofia e pela ciência espírita.
Indo por duas vias opostas, ambos chegaram ao mesmo ponto em que os caminhos cruzavam e concordaram em que cada qual devia prosseguir em seu roteiro de vida. Foi um encontro inesquecível pelas emoções que a presença do outro despertou em cada coração. Mas, se havia anteriormente um desejo de união, este ficou naturalmente adiado, sem adrede deliberação. A separação que, alguns meses antes, se dera entre hesitações e temores, em ânsias e expectativas, agora transcorria serena, como se ambos finalmente atinassem que o futuro, em qualquer esfera, lhes reservava momentos de felicidade sem mácula.
— Querida, deixemos a nossa sorte nas mãos de Deus!
— Assim seja, meu amigo, meu amor!
Voltara Beatriz com o fito de obter uma promessa de Norberto, a de cuidar da saúde pelo bem das crianças. Obteve muito mais, pois o moço acabou percebendo que precisava ampliar o seu campo de atuação no plano das realizações mundanas.
Avaliou os benefícios que trazia aos irmãos encarnados na qualidade de fiscal afastado das lides para responder pela melhoria dos procedimentos legais e concluiu que perdia tempo sem proveito para ninguém, já que seus projetos eram muito aplaudidos mas não rompiam as barreiras burocráticas. Analisou também a sua participação no escritório de Aristeu, onde defendia a tese de que os comerciantes e industriais deviam arrostar com a parte moral das culpas, chegando ao mesmo resultado de que, embora seus clientes acabassem reconhecendo que lesaram o povo lesando o fisco, sua atuação se limitava a uns poucos, os quais nem sempre desenvolviam o interesse de se manterem dignos perante o Criador, deixando de consignar a correlação servir ao Pai servindo aos semelhantes.
“Ou entro na política e adquiro um assento na câmara ou na assembléia, onde irei propor diretamente as mesmas leis que agora não passam dos bastidores do poder, alcançando as mesmas decepções, que a maioria não sabe ler na minha cartilha, ou torno-me mais influente no meu setor, vestindo a toga dos magistrados, para aplicar aos que chegarem às barras do tribunal todo o vigor da lei, sem lavar as mãos, uma vez que os recursos irão buscar instâncias mais elevadas e outros serão os responsáveis, caso as sentenças que eu tiver pronunciado forem reformadas.”
Ao pensar assim, Norberto tinha bem presentes os fatos que o afastaram da federação espírita, onde sua palestra fora repudiada. Apesar de francamente angariar a simpatia das senhoras responsáveis pela orientação das gestantes, os membros da diretoria fundamentaram sua recusa a autorizá-lo a expor em pleno auditório justamente nas observações daquelas, quanto à necessidade de se empregarem os termos mais adequados à compreensão das futuras mamães, que as mais cultas não necessitavam de palestras públicas, já que eram acompanhadas por facultativos especializados. Por outro lado, aconselharam-no a tentar ministrar cursos para grupos pequenos de seis ou sete casais, o que Norberto desconsiderou, porque seu tempo à noite se restringia a uma sessão de desobsessão e a uma exposição sobre tópicos das obras de Kardec, conforme solicitação dos amigos dirigentes, dentro da programação do centro, além das tardes de atendimento gratuito dentro de sua área profissional, aos sábados.
“Mais que isso seria deixar de cumprir as minhas obrigações paternas, que meus filhos já não têm mãe e acabariam não tendo também pai.”
Foi com esses pensamentos que começou a interessar-se mais vivamente por oferecer seu concurso à magistratura, passando a realizar os estudos concernentes ajudado pela memória excepcional.
Tendo dado conhecimento de sua decisão aos amigos, não houve um único que deixasse de apoiá-lo, embora todos lamentassem que iriam perdê-lo para as reuniões públicas ou privadas, que ninguém se lembrava de conhecer juiz de direito nenhum atuando no dia-a-dia das casas espíritas. Aos que manifestavam seu temor, Norberto garantia:
“Você está insinuando que Kardec não possuía um círculo de amizades onde exercesse um papel diferente do severo codificador da doutrina? Pois saiba que, a espelhar-me no exemplo do nosso mestre, eu terei de me tornar a pessoa mais esfuziantemente alegre de todas, pois era assim que se comportava Kardec na intimidade. Leia a sua biografia e colha nela os ensinamentos de como proceder além das fronteiras do espiritismo propriamente dito.”
E quem iria dizer o contrário ao soberbo cultor dos textos espíritas e paralelos?
18. À GUISA DE EPÍLOGO
Nada de maior importância têm estes membros do Grupo dos Cometimentos Insólitos para narrar.
Em todo caso, ânimo não nos falta para apontar, dentro de um futuro bem próximo, que Claudinho irá conseguir aprovação no exame vestibular para o curso superior de Artes Cênicas, que custeará com os proventos de sua próspera carreira como modelo fotográfico e de passarela. Encontrará ele quem o faça esquecer-se de Beatriz? O que é que a experiência de nosso leitor lhe informa? Pois é como sói acontecer a quem se vê rejeitado: arruma outro ou outros amores, que a vida deve continuar. De qualquer modo, o futuro a Deus pertence e quem sabe, se não nesta, numa outra encarnação, dentro de perspectivas mais favoráveis, os dois possam viver juntos uma aventura de completa felicidade.
Se alguém aventar a hipótese de satisfação sentimental de superior categoria em esfera mais elevada, estará pondo fé num aproveitamento integral, ou quase, dos enleios naturais que sofrem os encarnados. Neste ponto, concordamos, porque temos acompanhado o desempenho de ambos e não existe sequer um sombra de maldade, de ódio ou de qualquer sentimento de rancor nem num, nem no outro. Sendo assim, eles fazem a alegria de seus protetores, que os receberão, em tempo hábil para o júbilo coletivo dos seres vitoriosos, em nome de Jesus.
Valdemar ainda haveria de engordar mais um pouco, tendo Sofia planejado pelo menos um irmãozinho para Pierina. Ao contrário de Norberto, acomodou-se o nobre amigo nas funções de comissionado, passando a exercer papel mais ativo, na falta do colega, tentando suprir-lhe a falta.
Agripino intensificou sua labuta junto ao centro espírita a que servia, à vista da aposentadoria que se avizinhava. Ficaram-lhe na memória os tópicos desenvolvidos por Norberto na célebre palestra do homem perfeito, acreditando piamente que muitas outras encarnações deveria enfrentar até cumprir roteiro missionário de iniludível submissão aos preceitos da caridade.
Juvenal e Clotilde, sem que ninguém suspeitasse, terminaram unindo suas vidas, ambos satisfeitíssimos com as funções mediúnicas que desempenhavam modestamente. Era como realizavam seus objetivos de vida, em sua compreensão de que não apenas os encarnados precisavam de auxílio. Aliás, bastava para eles as intensas atividades, digamos assim, assistenciais, junto ao pessoal carente que procurava a casa espírita, para terem acesso a um bom grupo de socorristas após o desenlace de suas vidas. Ambos, porém, não perdem palestra alguma proferida pelos amigos mais ilustrados na doutrina espírita, criando consciência de que os estudos são fundamentais para a percepção mais acurada das soluções aos problemas que vão tornando-se cada vez mais complexos, à medida que vão desvendando os segredos filosóficos da teoria.
Quanto a Claudiomiro, tendo ouvido uma exposição de Aristeu a respeito dos dirigentes dos centros de periferia e tendo lido uma pequena obra do orador sobre o mesmo assunto, decidiu pôr seu cargo de presidente à disposição, desejoso de tornar-se mero coadjuvante de alguém mais jovem e mais dinâmico. Tal qual Kardec, cuja história bem conhecia, teve a satisfação de ver seu desejo frustrado pela comunidade, que o manteve no cargo e, pelo que tudo está indicando, o manterá até que as forças físicas venham a abandoná-lo.
Oliveira tornou-se assíduo na federação, ajudando no que pode na área profissional de fotógrafo e também de redator, empolgando-se pela faculdade psicográfica que se desenvolve de forma muito acentuada. Passou a ser o braço direito de Aristeu, principalmente depois que este creditou em favor de suas pesquisas teóricas uma incansável peregrinação aos centros, para colheita, como ele diz, dos frutos opíparos da doutrina bem interpretada e melhor executada.
Saraiva e Rosinha continuaram muitíssimo prestativos, auxiliando os integrantes da diretoria da federação a organizarem os eventos semanais na área das palestras, dos seminários, dos fóruns, dos congressos e demais reuniões públicas de vulto. Não haveria contestação se alguém supusesse que terminarão seus dias treinando sucessores.
José Carlos, que por aquele tempo havia aberto um consultório para aplicar o processo terapêutico da regressão às vidas passadas, almejava escrever uma obra cabocla, como ela a denominava, que não devesse nada às estrangeiras quanto aos casos analisados, mas superior quanto à conceituação espírita e doutrinária, segundo as teses de Kardec, que não encontrava nas obras similares vindas do exterior. É certo o seu êxito.
Dona Neusa e Raul criavam os netos com a ajuda dos outros avós, sem grandes sacrifícios, porque as babás de ambos eram excelentes. Terão as crianças seqüelas emocionais pelo desequilíbrio fundamental causado pela ausência das mães? Era em que Norberto constantemente pensava, rogando às esposas que, do etéreo, providenciassem intuições esclarecidas a todos os que lidavam com os petizes, principalmente a Dona Neusa, para quem solicitava especial atenção no campo das noções espíritas fundamentais. Neste caso, sem saber como estariam atuando os protetores, passou a oferecer ao pai as obras que o inteligente professor ia assimilando em particular, considerando as razões lógicas ali exaradas bem mais compreensíveis que os dogmas a que se apegava a esposa. Teria ele tempo de exercer uma influência positiva? É o que ficaremos sem saber.
Mas, no etéreo, houve algumas transformações mais profundas, porque Etelvino e Glauco foram chamados de volta à colônia, sendo substituídos junto aos protegidos por componentes do grupo de espíritos a que pertenciam Valdemar e Norberto, antigos familiares e parceiros de diversas passagens terrestres, os quais se encarregaram de monitorar também o desempenho de Nelma e de Durvalina, esta já refeita dos quiasmas produzidos em seu organismo perispiritual pela persistência das ânsias do amor materno acalentadas durante o processo de gestação.
Na verdade, ambos apenas estagiavam junto a encarnados em dificuldades, para sentirem como é que podem as entidades benfazejas estimular as reações contra os impulsos de caráter vicioso. Como vimos, saíram-se muito bem, não precisando continuar desvelando-se junto aos pupilos, agora afeitos à percepção dos valores espíritas, para lhes assoprarem à consciência a continência e a atenção.
Cumprido o tópico curricular, voltavam ao curso de formação de socorristas, inscrevendo-se ambos numa turma de estudo das resultantes morais, no plano espiritual, dos males do orgulho e do egoísmo de quem malbaratou na Terra superiores faculdades intelectuais.
Antes da primeira aula, pensaram ambos que iriam mergulhar nas consciências alijadas do convívio humano desde há muito, seres sofredores imersos nos báratros das trevas. Mas, na primeira aula, foram surpreendidos pela introdução do tema pelo Professor Otávio:
— Queridos amigos, prezados colegas e alunos, meus irmãos. Nós vamos dedicar-nos ao exame dos temas concernentes às preocupações dos amigos espíritas, principalmente dos dirigentes das casas de assistência e de caridade que aspiram, voltando para a nossa esfera, a conquistar postos elevados na hierarquia das colônias, quando não crentes de que são merecedores de passar para círculos de maior luz, envergando perispíritos mais sutis, discutindo os rumos e diretrizes para sua elevação à bem-aventurança, junto aos eleitos do Senhor. Quem tiver tido alguma experiência neste sentido, poderá argamassar os elementos primários de suas observações, propondo, em forma narrativa, algo que se poderia transformar em obra mediúnica, a favorecer a humana percepção dos problemas relativos a este tópico. Em havendo quem se atreva, iremos, todos os demais, ficar atentos para que não se atirem pedras nesses telhados de vidro, cuidando que a nossa obra se realize sob os princípios mais elevados do amor ao Pai e às criaturas, no desejo mais sadio possível de efetuar roteiro que estimule a reflexão e incite os leitores às decisões esclarecidas e sábias do melhor aproveitamento do trabalho realizado por Kardec e por todos os demais luminares da doutrina espírita. É de todo recomendável que o sofrimento se transforme em elã para a luta de cada hora e que o maior consolo do espiritismo, ou seja, a realidade da vida de além-túmulo, fique iniludivelmente registrado como algo perfeitamente natural, até mesmo objetivamente descrito no que concerne ao relacionamento possível entre nós e eles. Vamos orar.
Então, todos os presentes sentiram no âmago de seus seres que deveriam estar gratos ao Pai por aquele instante de plena felicidade e de esquecimento de si mesmos, na ventura de se irmanarem em pensamento e em sentimento, voltados para suas realizações de toda a existência que merecessem projeção vibratória em busca dos entes queridos, onde quer que se encontrassem, para o conforto de se saberem amparados pelo Criador.
Assim seja!
Graças a Deus!
Indaiatuba, de 16.07 a 18.10.99.
|