A história que se inicia foi escrita quando eu tinha entre doze e quatorze anos, numa das primeiras investidas no mundo da literatura. Eu a considerava perdida, mas por sorte do destino há pouco mais de um ano minha irmã a encontrou ao revirar velhos documentos na casa de meus pais, onde eu já não vivia há alguns anos.
Quando a reli meses atrás, achei que não valia a pena torná-la pública, pois se tratava de um texto escrito quando eu não tinha experiência, não possuía vocabulário, enfim, não dispunha das mínimas condições para escrever uma narrativa longa e de certa forma um tanto complexa.
No entanto, eu não queria jogar essa narrativa no lixo, pois se tratava de uma ideia interessante, ainda mais se levando em conta que possivelmente havia mais de mim mesmo nesse texto do que hoje eu pudesse supor. Se os erros eram incontáveis e o texto um diamante bruto, a ideia era boa; aliás uma história intrigante. De forma que, agora mais experiente, resolvi rescrevê-la, mantendo na medida do possível não só a sequencia dos acontecimentos como também os diálogos, embora em muitos casos precisei aprofundá-los para dar a dimensão desejada.
Quanto à história, trata-se das aventuras de quatro adolescentes -- um garoto e três meninas -- entre treze e quinze anos que, após um naufrágio, ficam presos por um longo período numa ilha (safadinho eu hein!). O texto narra as dificuldades para se sobreviver, os conflitos e a perda de inocência com a descoberta da sexualidade e do poder dos instintos; e por fim, mostra a degradação moral desses jovens.
Não se trata de uma semelhança com a Lagoa Azul ou o Senhor das Moscas, uma vez que quando escrevi este livro, na primeira metade dos anos 80, não conhecia nenhuma dessas duas obras. Hoje porém é inevitável em alguns pontos uma certa semelhança entre minha narrativa e os dois romances, principalmente com a obra de William Golding
Optei por publicar um capítulo por vez, a medida que estes vão sendo digitados e revisados. De forma que peço um pouco de paciência ao leitor, pois todos os capítulos serão publicados.
Guarujá, julho de 2005
Obs.: Em 2014 o texto passou por uma nova revisão, apenas para correções e solução de algumas contradições, presentes no texto original. Foi acrescida uma coisinha aqui e outra ali para dar uma melhor compreensão de certas passagens. É essa versão que o amigo leitor lerá aqui.
Guarujá, abril de 2014
1
A tempestade parecia chegar. O vento soprava forte a estibordo e as nuvens deixavam o céu com aquela cor de chumbo, como se o dia fosse transformar-se em noite. As ondas cresciam pouco a pouco, causando-nos apreensão, e o mar tornava-se mais revolto e assustador inclusive. De tempos em tempos, um raio cortava o céu deixando para trás um estrondo terrível, o que fazia com que as meninas ficassem mais apavoradas. E eu também, diga-se de passagem. A lancha na qual estávamos balançava e inclinava demasiadamente ora para um lado ora para outro ao se chocar contra uma onda obrigando-nos a segurar firme.
Eu e as meninas estávamos todos juntos, encolhidos bem atrás de meu tio, quase se borrando de medo. E nosso medo crescia ainda mais toda vez que um estrondo chegava aos nossos ouvidos.
Não era a primeira vez a ser apanhado por uma tempestade no mar. Eu já havia passado por isso uma ou duas vezes com meu pai num de seus barcos de pesca, mas mesmo assim isso não me confortava em nada, ainda mais que isso me trazia as piores lembranças do alto mar, pois, diferentemente de outras vezes, agora encontrávamos longe da costa e o meu tio não era o meu pai, o qual manejava aquela lancha tão bem quanto seus barcos de pesca. Outra razão para estar com tanto medo é que eu nunca vira o tempo mudar de forma tão rápida.
Mais cedo, quando saímos para dar uma volta, o dia estava bonito, ensolarado, e pensávamos que teríamos sol o dia todo. Talvez por isso, por acreditar que o tempo não mudaria, meu tio tenha adentrado em alto mar, mesmo sabendo que aquela lancha, uma lancha pequena, de uso para navegação costeira, uma vez que ela só tinha 17 pés, não era adequada para ir tão longe. Não que a lancha não fosse apropriada para se afastar um pouco da costa. Por mais de uma vez o Rosaldo afastara algumas milhas, mas fora feito com certa segurança. O problema era que não estávamos preparados para ir tão longe. Além de que, tio Jamil não era experiente o bastante para navegação em situações adversas, como acontecia com meu pai – um marinheiro nato. Na maioria das vezes, era o senhor, Rosaldo, o marinheiro de meu tio, quem a pilotava.
Era a primeira vez que ele se dispunha a sair com aquela lancha sem alguém com mais experiência ao seu lado. Foi uma imprudência por parte dele, contudo, só se ofereceu a sair ás sós com a gente porque nossa intenção era tão somente dar uma volta, navegando pela costa e não ir muito longe. Aliás, lembro-me da insistência de meu pai para que o Rosaldo fosse, mas tio Jamil insistiu que não precisava, que ele já tinha saído sozinho com aquela lancha e que a gente não ia muito longe.
Éramos cinco pessoas na lancha, ou seja: capacidade máxima. Um adulto e cinco jovens entre 12 e 16 anos. Outro erro: pois no caso de uma emergência, excetuando o tio Jamil, ninguém saberia o que fazer. Nesse ponto, a culpa foi toda minha. Eu não devia ter convidado as três meninas para vir conosco e incentivado meu tio a dispensar a companhia de Rosaldo. Todavia, como quase todo adolescente, eu queria fazer bonito e chamar a atenção daquelas “gatas”. Afinal, Não é assim que os jovens fazem? Aliás, não perdem uma oportunidade de se mostrar. Dessa forma, eu mesmo disse para Rosaldo que ele não precisava ir porque “a gente só ia dar uma voltinha”. Contudo, meu tio deveria ter pedido alguém que realmente pudesse auxiliá-lo para ir com a gente. Não sei se foi para me agradar ou se foi porque a filha e era um das passageiras, o que deve tê-lo levado a querer mostrar para ela, já que era a primeira que Ana Paula o via pilotando sozinho; aliás, ocupando um dos lugares ao seu lado.
Quanto à lancha, esta não era nova. Possuía alguns anos de uso, embora eu não soubesse quantos. Sei que o tio Jamil a adquirira num leilão há pouco mais de um ano. Lembro-me de ouvi-lo dizer que pagara uma pechincha. Antes desta, ele tivera uma menor ainda, a qual vendeu ao adquirir esta. A lancha porém estava em bom estado e até onde sei passara por uma revisão tempos atrás. Não havia nada que a impedia de navegar. Meu tio gostava tanto da lancha, principalmente do nome, que só se referia a ela pelo nome. Jamais alguém o viu chamar sua “LIBERDADE” de lancha ou barco, tamanho apego. Vez ou outra alguém o inquiria acerca de quem era essa tal “LIBERDADE”, talvez pensando tratar-se de uma mulher.
A turbulência estava ficando cada vez mais pior. Via-se que meu tio também estava apreensivo e preocupado, pois diferentemente do que sempre fora, mantinha-se calado e agitado. Talvez por isso tenha pedido para pormos os coletes salva vidas. Ele tentava manter o controle da situação, mas a medida que as ondas atiravam o barco para lá e para cá, obrigando-nos a segurar firme, via-se uma falta de indecisão, um não saber o que fazer. Possivelmente porque o Rosaldo estava conosco. Ele tentava a todo custo nos trazer à costa, mas nada de avistarmos a cidade, pois parecia que estávamos mais longe da costa do que meu tio supunha. Não tenho certeza, mas algo me dizia que aquilo não terminaria bem.
Súbito o motor parou.
-- Tem alguma coisa errada aqui – disse ele, como se pensasse alto.
-- O que foi pai? – perguntou Ana Paula, a mais jovem dentre nós. Tratava-se uma menina baixinha, de doze anos, de cor parda, cabelos pretos e olhos um pouco puxados como se fosse descendente de orientais. A menina era quase uma cópia perfeita da mãe, exceto pelos olhos que lembravam um pouco o pai.
-- O marcador diz que ainda temos bastante combustível.
-- O que a gente vai fazer agora? – arrisquei a perguntar.
-- Não sei. Fiquem calmos que vou dar uma olhada. -- Nas suas palavras porém via-se um quê de confusão e insegurança, como se ele não tivesse a menor ideia do que fazer.
Tentou de todas as formas fazer o motor pegar. Nada porém surtiu efeito. A verdade é que estávamos à deriva em plena tempestade.
O pior ainda estava por vir. A tempestade desabou e definitivamente o dia tornou-se noite, dando a impressão de estarmos no meio do nada. O vento e as ondas, mais intensas, atirava-nos para tudo enquanto era lado ao mesmo tempo que invadiam a lancha, muitas vezes desabando por cima de nós. E quanto mais o tempo passava, mais desesperado ficávamos. As meninas, histéricas (não sei porque as mulheres têm o dom de ficar histéricas diante do perigo), começaram a chorar e o tio Jamil teve de gritar e ameaçá-las com uns tabefes para que se contivessem. Embora estivesse apavorado, eu não chorava, não porque não estava com medo, mas por vergonha mesmo. Afinal, não queria dar a impressão de covarde, medroso e fracote, pois certamente era isso que pensariam de mim.
Em dado momento, ouvi tio Jamil dizer que o painel já não marcava mais a posição em que estávamos. O rádio estava mudo, quanto a isso não havia dúvida. Eu via o desespero nos olhos dele. Talvez ele tivesse mais consciência do que nós de que a coisa estava preta, de que estávamos à deriva. A verdade era uma só: não sabíamos onde estávamos, se longe ou perto da costa. De forma que só nos restava esperar a tempestade passar e então pensar no que fazer.
Eu não sabia há quanto tempo jazíamos à deriva. Poderia ter se passado meia hora, uma ou até bem mais do que isso. Quis perguntar ao tio, mas temi pela sua resposta. A incerteza me parecia bem mais reconfortante do que uma negativa. A tempestade não dava trégua e nem sinal de que as coisas ficariam melhores. E com o aproximar da noite parecia escurecer mais e mais. Não sei se era apenas fruto de nosso desespero, ou se realmente a tempestade tornara-se pior. Por questão de segurança, meu tio havia nos mandado por o salva-vidas.
Uma onda gigante começou a se formar a poucos metros a nossa frente. Só a vi quando estava bem próxima. Já havíamos enfrentados outras, mas esta parecia ser absurdamente grande. “Só faltava essa agora! É o nosso fim!”, pensei, embora houvesse dito isso momentos antes.
Confesso nunca ter sentido tanto medo quanto naqueles segundos. Enquanto ela se aproximava feito um monstro crescendo em nossa frente, pronta a nos engolir, eu só pensava em minha mãe e naqueles últimos instantes. Era como um carrasco erguendo as mãos para descê-la pela derradeira vez. Eu sentia medo, um medo indizível; ao mesmo tempo, tentava pensar em algum momento especial de minha vida para morrer tendo-o como minha última lembrança. Sim, eu pensava que morreríamos. As meninas gritavam e choravam, mas eu não prestava atenção a isso.
De repente a onda atingiu a proa do barco e nos atirou longe. Recordo-me de voar e em seguida chocar contra a água. Não sei quanto tempo fiquei submerso até voltar a tona. Ainda me lembro que, ao voltar a superfície, encontrei tão somente destroços da lancha. Alguns metros adiante ouvi alguém gritar desesperadamente por socorro. Era Marcela, amiga de minha prima. Acabara de completar quatorze anos no último domingo. Era por ela que estava encantado, dir-se-ia apaixonado. Na verdade, ela ainda não sabia de meus sentimentos, mas sua beleza me fascinava desde a primeira vez em que a vi seis meses antes, na casa de meu tio.
Quando ouvi seus gritos, respondi de imediato e nadei em sua direção. Instantes depois, ouvi os gritos de Ana Paula. Naquele momento, não me passou pela cabeça procurar por meu tio Jamil e pela Luciana. Queria tão somente aproximar-me da Marcela para saber se ela estava bem. E só me dei conta de procurar pelos outros quando Ana Paula chamou pelo pai.
Tudo se passou em poucos minutos. E quando Ana Paula chamou pelo pai, a voz ao longe que ouvimos não foi a dele. Era Luciana, prima de Ana Paula e a mais velha das meninas, quem gritava por socorro e perguntava onde estávamos.
Apesar do mar revolto, a muito custo, conseguimos nadar uns em direção aos outros, e assim nos mantermos vivos. Pouco depois, a tempestade foi passando e as águas do mar foram ficando menos agitadas, como se a ira de Poseidon houvesse abrandado. Aliás, ainda me recordo bem de ter pensado: “Parece até que Deus só queria destruir o nosso barco”.
Tentamos encontrar meu tio, contudo nenhum sinal dele. Lembro-me de ter nadado até os destroços do barco, mas nada encontrei. Havia partes da lancha boiando em meio a pedaços de papel e plástico. Procuramos eu e a Luciana entre aquilo tudo, algo que pudesse ser útil e nos ajudasse a sair dali, mas nada encontrei. Ocorreu-me apenas a ideia de me apoiar num dos pedaços da lancha -- aliás um dos maiores que pude alcançar -- e chamar as meninas para que fizessem o mesmo.