...A água quente do chuveiro se misturava às lágrimas e ao ódio de Maria Gabriela. “Canalha! Ordinário!” Vinte e cinco anos de servidão, subserviência, solidão noturna... E aquele majestoso topete cinza navegando na “nigth candanga”. Quantos homens a cortejaram, quantos a desejaram? Todos dispensados austeramente em nome da honra e da fidelidade prometida no altar. E agora? Que rumo tomar?
Maria Gabriela vestiu o sóbrio vestido azul escuro e analisou o guarda-roupa monocromático, triste, antiquado. Naquele momento queria as vestes da loura do Tchan, para humilhar o canalha. Ah! Seria o ápice das delícias adentrar o gabinete do todo-poderoso-senhor-seu-marido, trajada de maneira ousada; apreciar a secretária bilíngüe e os preparados acessores de curriculum invejável, ante suas carnes à mostra, ante sua postura vívida e não lívida como de costume.
Pegou um táxi e rumou para a boate citada na carta anônima. Fumava, fumava...
- A senhora quer que abra os vidros, madame?
- Faça como achar melhor.
Classe masculina inútil. Ela ali se esvaindo, se consumindo e a sensibilidade de hipopótamo do motorista se incomodava com a fumaça. Teve vontade de dizer que não, que queria os vidros fechados e acenderia mais três, quatro cigarros de uma vez, até que o interior do veículo fosse somente uma nuvem cinza. Cinza como sua alma e seu guarda-roupa.
E eis a boate.
- É aqui, madame. Quer o total da corrida, ou quer que espere?
Maria Gabriela observava o letreiro em neon piscando.
- Madame, a senhora vai esperar alguém aqui mesmo?
Maria Gabriela não fazia a menor idéia de como agir, seus músculos estavam travados.
- A madame podia pelo menos me dizer se devo desligar o carro? Sabe como é, a gasolina está pela hora da morte! E a próxima corrida do rádio é minha, se a senhora for ficar aí parada, me avise e eu cancelo...
O blá blá blá do motorista e suas posturas pouco condizentes com aquela situação constrangedora, a retiraram do transe:
- Ah! Cale a boca! Estou pensando.
Pegou o celular e ligou para o cafajeste. Toca, toca, toca e cai na caixa postal. Liga de novo. De novo a caixa postal. Ela não desiste e liga outra vez. Atende.
- Maurício Henrique? Onde você está?
- Aqui não é o doutor Maurício Henrique, não, dona Maria Gabriela, é o segurança. O doutor mandou dizer que tá numa reunião com os gringos e agora não pode atender a senhora não.
Desligou o celular e sentiu a fúria renascer e sepultar o medo que impedia seus movimentos. Saltou do táxi:
- O senhor não me saia daqui!
- Claro madame, sem o valor da minha corrida, não saio mesmo...
Maria Gabriela varou a entrada da boate como um furacão e o salão enorme, as luzes loucas, o som bate-estaca, nada amansava a ira. Um grupinho chamava atenção num dos cantos, uma mulher ensaiava um strip-tease sobre a mesa e outras tantas figuras batiam palmas alucinadas. No meio, um homem topetudo jogava dólares em cima da mulher, com um charuto no canto da boca. E o homem era ninguém mais que... Maurício Henrique.
- Filho da Puta! É essa a reunião com os gringos?
- Mas que diabos! O que essa vaca faz aqui?
- Ah! Eu sou uma vaca? Vamos ver se os jornais também tem a mesma opinião...
Maurício Henrique agarrou o braço de Maria Gabriela e a arrastou pra fora da boate.
- Porra! Quem trouxe você???
E Maurício Henrique vislumbrou o taxista que curtia o espetáculo encostado no carro, com os braços e pernas cruzados, fumando um cachimbo enorme. “Putz!” pensou Maria Gabriela, o miserável fuma!
Maurício Henrique, mostrando uma agilidade e virilidade dignas de nota num homem sessentão, sem largar a esposa, agarrou o taxista pela gola da camisa.
- A quenga da sua mãe ainda é viva? Por que se não for, é hoje que você vai encontrar com ela!
- Calma aê, calma aê! Vamos conversar como gente civilizada, eu só dirijo o táxi! Veja aí com sua senhora os entremeios, que eu não tenho nada com isso não!
O marido, arvorado em super homem às avessas fez a raiva de Maria Gabriela se moldar em pânico.
- Como é que você veio parar aqui, vaca?
E Maria Gabriela, esposa fiel, casta e de postura ignóbil, balbuciou, num fio de voz:
- Mandaram uma carta... Carta anônima...
- Me dá a carta!
Maria Gabriela obedeceu. Maurício Henrique leu o teor do papel amarfanhado, iluminou o rosto, soltou uma gargalhada e largou o braço da esposa inútil. Chamou o segurança.
- Adão! Leva esse traste pra casa e despensa o babaca ali – apontou o taxista apavorado, tão apavorado, que se tivesse algo nos intestinos teria posto pra fora.
Adão obedeceu prontamente, encaminhando a humilhada Maria Gabriela para a Mercedes prateada, estacionada irregularmente ao longo da calçada. O taxista ficou angustiado, ainda com medo, mas perguntou:
- Doutor! Doutor! E minha corrida, como é que fica?
Maurício Henrique estava quase entrando na boate e se virou com os olhos brilhantes de ódio, puxou de novo a gola do motorista e apertou nas costelas do homem algo que ele identificou como o cano de uma arma.
- Sua corrida, palhaço, vá cobrar do bispo!
O pobre taxista realmente não tinha nada nos intestinos, mas tinha na bexiga e foi com as calças encharcadas que retornou ao veículo, zarpando para o desconhecido.
Maurício Henrique retornou serenamente à boate, encostou no balcão e chamou o garçom:
- Pedro, meu filho, me dê aí um troço quente.
- Pois não, doutor. – atendeu prontamente e, respaldado na confiança de anos e anos de confidências de balcão, perguntou - Que rolo foi esse lá fora?
Maurício Henrique e seu topete cinza arrasador de corações, soltou outra gargalhada homérica.
- Sabe aquela ruiva? A que toma margueritas e vira um furacão? Pois é, não quis me dar, fez o maior jogo duro, um doce danado. Agora mandou uma carta anônima pra vaca da minha mulher... Agora já sei o que ela quer... Vou tomar esse veneno que você me serviu e vou pra lá. A noite vai ser looonga, Pedro.
E no apartamento enorme, mais vazio que nunca, Maria Gabriela cortava os pulsos com uma gilete, fazendo questão de esguichar seu sangue sobre os móveis e tapetes caros. Deixaria muitas e muitas marcas indeléveis que os jornais adorariam expor nas fotografias de primeira página.
Antes de partir, Maria Gabriela ainda pensou que melhor seria forjar um assassinato, mas a paz – paz incomensurável – a inebriava, a sedava... Pensou no e-mail que tinha mandado para a redação do JB, tão mal escrito, tão mal estruturado.
A carreira de Maurício Henrique também finalizou naquela noite, não por causa dos jornais, mas por causa da ruiva que realmente aguardava o doutor, mas com instinto nada sexual e intenções homicidas que, posteriormente, se revelaram também suicidas.
Os repórteres tiveram um trabalhão pra alinhavar as três mortes e tanto cavaram, que encontraram o taxista que, obviamente, foi o herói da noite.
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