O seqüestro de Tutankhamon
Athos Ronaldo Miralha da Cunha
I
O professor Gaudêncio ministrava uma aula sobre história do Brasil Império. Era empolgado e satirizava as idas e vindas de D Pedro I. Entusiasmado, diante da turma, numa generosa tarde de primavera, tecia comentários sobre o dia da Independência e a improvável diarréia imperial que acelerou o grito do Ipiranga.
- Vejam, caros alunos, o que fazia nosso herói momentos antes de gritar “Independência ou morte”. Herói brasileiro!! – brincou com os alunos.
Gaudêncio elaborava aulas bem-humoradas. Era engraçado e abusava dos gestos.
Nesse instante a secretária bate à porta da sala 23, toda esbaforida. Com uma obesidade quase mórbida, qualquer escada a deixava com o coração na boca. Mas a notícia era de urgência. Avisa, quase sem fôlego, que a mulher de Gaudêncio está passando mal. Havia chegado o momento. Finalmente os trigêmeos chegariam ao mundo. Agora era a vez do professor correr.
Montezuma, Nabucodonosor e Tutankhamon esses eram os nomes dos filhos que nasceram no Hospital de Caridade na tarde límpida e cristal de uma primavera azul. A correria dos enfermeiros e dos médicos foi intensa, mas nesse momento a calmaria estava de volta na maternidade e três meninos ressonavam no berçário.
O professor Gaudêncio, prontamente, providenciou, por via das dúvidas, umas identificações para os guris. Faceiro, colocou uma pulseira em cada criança com os respectivos nomes. Nomes pomposos. Estranhos para os auxiliares de enfermeiros. Mas de grande significação para um dedicado professor de história.
- Montezuma? Nabucodonosor? Tutankhamon? Isso lá é nome de gente? – era o comentário corrente no hospital, principalmente dos enfermeiros da maternidade.
Gaudêncio estava no quarto acompanhando a recuperação de Matilde. As crianças ficariam ainda dois dias na maternidade para uma avaliação do pediatra.
Matilde era o retrato da felicidade. Olhava para o esposo e imaginava o futuro dos guris.
- Estou imaginado a bagunça em casa daqui uns três anos. – comentou a mãe cheia de felicidade.
- Estou muito feliz, Mati, tu me deste os filhos mais lindos deste mundo. Tenho vontade de sair dançando pelos corredores do hospital e gritar ao mundo que sou um homem realizado.
- Não vá fazer escândalo amor.
- Sabe, o Tutankhamon é o mais gordinho e o mais arteiro.
- Como tu sabes?
- Ele está sempre mexendo os bracinhos e as perninhas, os outros dois dormem que nem os reis. Ah! São todos parecidos comigo.
- Coitadinhos. – sorriu Matilde para o esposo.
Uma pequena agitação, um princípio de tumulto, desperta a breve sonolência de Gaudêncio recostado em uma poltrona do quarto. Matilde, bela e serena, com um leve sorriso, estava em sono profundo.
- Roubaram o menino! Roubaram o menino! Roubaram o menino! – gritava desesperada a enfermeira, Iracema, a chefe da maternidade.
- O quê? – exclamou o professor já em estado de choque.
- Levaram o menino, alguém seqüestrou o Tutankhamon.
No berçário do hospital naquela tarde azul de primavera dormiam o sono dos justos apenas dois meninos, o terceiro e mais agitado havia sumido. Para espanto geral de todos que presenciaram a felicidade do nascimento dos trigêmeos.
II
Na sessão de colação de grau, 64 jovens estavam recebendo o diploma de Bacharel em Ciências Sociais. Montezuma e Nabucodonosor estavam lado a lado. Matilde na imensa platéia assistia emocionada a formatura dos filhos. Seus olhos estavam fixo nos dois guris e o pensamento preso ao passado.
- Ah! Tutankhamon, por onde andarás?
- Calma Mati. Nós temos Nado e Monte.
- O Tukha deveria estar lá com eles... seria lindo... os trigêmeos. Os meus três doutores. – suspirava inconformada.
Naquela manhã, chorou, como em todas as manhãs desde que Tukha tinha ido embora. Só que as lágrimas daquele dia especial ela não sabia se eram de felicidade por formar dois filhos ou de tristeza e saudade do pequeno Tutankhamon, que nem chegou a conhecer.
Gaudêncio e Matilde não mediram esforços para localizar o filho seqüestrado, mas tudo foi em vão. Foram atrás de todas as pistas, incansáveis e determinados. No princípio Gaudêncio pensou tratar-se de um seqüestro, mas diante dos indícios e o silêncio dos seqüestradores evidenciou-se um rapto.
- Sabe-se lá onde está nosso filho? - Indagou-se certa vez, Gaudêncio, diante de uma foto das pirâmides do Egito, que ele mantinha na parede de seu quarto de estudos.
À medida que o tempo foi passando já não tinham o mesmo ímpeto até que se conformaram restando a saudade de um filho, o pequeno tukha. Como Matilde chamou certa vez.
Matilde quando estava grávida dizia que aceitava os nomes, tão estranhos, para os guris. Mas não conseguiria chamá-los com aqueles palavrões históricos.
- Imagina! Chamar os três ao mesmo tempo?
Não havia jeito. Tinha até pensado nos apelidos para facilitar a sua vida. Já que ela era pouco entendida em história mas acatava o “capricho” do marido. Seriam: Monte, Nado e Tukha.
- Tukha... até que ficou engraçadinho. – comentou, à mesa de jantar, no oitavo mês de gravidez.
Em todos aqueles anos de angústia, Matilde misturava momentos de extremada felicidade e melancolia. Desde o rapto de seu filho, há vinte e dois anos, Matilde nunca teve uma noite tranqüila de sono. E o momento de maior emoção ainda estava por vir. Quando foi anunciada a colação de grau dos gêmeos, Nabucodonosor e Montezuma, o mestre de cerimônia convidou os pais para fazerem a entrega simbólica dos diplomas aos dois formandos.
Quando desceu do palco, abraçada em Gaudêncio, Matilde ainda conseguiu balbuciar, com uma voz trêmula. - Tukha, onde você está?
III
Ao término da solenidade os formandos jogaram suas togas para o ar e os presentes aplaudiram e foi formada a alegre confusão que é comum no final das formaturas. Todos querendo cumprimentar e abraçar os recém-formados.
Aos poucos o salão do clube vai se esvaziando os familiares se aglomeram em frente a Sociedade Amigos 3 de Outubro. Tradicional entidade daquela cidade.
Nesse instante um automóvel, em alta velocidade, cruza em frente ao clube. Em seguida ouve-se o estrondo de uma trombada. Espanto e alarido das pessoas que estavam deixando o local da formatura.
Imediatamente chega o carro da Brigada Militar com a sirene acionada. Uma das policiais salta do veículo e dá voz de prisão ao jovem que tenta abrir a porta do carro. O automóvel havia colidido com um caminhão que descarregava eletrodomésticos em uma loja.
- Esteja preso Mataquatro!
Houve um alerta geral nos presentes pois o bandido Mataquatro era um dos mais procurados dos últimos dois anos. Até aquele momento sua fisionomia era desconhecida do público em geral. Mataquatro havia se transformado em uma lenda viva, um mito do horror. A alcunha estava na boca das pessoas que tinham fobias com assaltos, seqüestros e tráfico de drogas: Claudião Mataquatro.
Dizem que o nome é Cláudio, o Mataquatro foi anexado após ter reagido a assalto, em sua adolescência, e trucidado a golpes de facão quatro dos cinco assaltantes. Cláudio ficou com fama de valente e destemido passando a chamar-se Cláudio Mataquatro... ou simplesmente Mataquatro.
Claudião olha com desprezo para a policial e não dá ouvidos a voz de prisão. Segue em disparada pelo meio da rua.
- Pare Claudião! Alto lá Claudião!
- Atira filha da puta!
Ouve-se um estouro na arma da policial seguido do tombo do bandido. Mataquatro está estendido no meio da rua. E uma poça de sangue forma-se próximo a sua cabeça.
- Mataram o Mataquatro! - Exclamou alguém.
Os policias tentam conter a aglomeração mas as pessoas querem ver o rosto de Claudião. Todos desejam conhecer o Mataquatro estendido no chão.
Gaudêncio não era movido pela curiosidade, mas conhecer o bandido mais famoso da cidade seria interessante. E foi conhecer o bandido morto. Diante da cena trágica ainda teve tempo de cantarolar uns versos com um breve batuque na mureta do hall do clube. “Cenas de sangue num bar da avenida São João”.
- Gaudêncio isso não é hora de gracinhas... uma pessoa foi baleada e está caída no meio da rua. – interrompeu Matilde.
- Vamos lá conhecer o elemento...
Enquanto isso no salão do clube continuavam os cumprimentos e a festa dos formandos e o choro das despedidas. Abraços e felicidade. Na rua sangue e tragédia.
Matilde e Gaudêncio chegam ao grande bolo que se formou em volta do morto. Estão receosos em olhar a morte num dia de felicidade, no dia da formatura dos filhos.
- Meu deus! Não é possível! - fala Gaudêncio com o rosto assustado, totalmente transtornado.
- Tutankhamon! – desesperada, Matilde, reconhece seu filho que há 22 anos havia sido raptado da maternidade.
Era uma situação inusitada. Os pais conhecem o filho no derradeiro instante de sua morte. Nesse momento de trágica emoção, ainda assim, Gaudêncio percebe que a mão direita do homem estendido no asfalto estava firmemente fechada. Era um punho cerrado que escondia algum objeto. Lentamente o professor abre os dedos do filho e, para seu maior espanto, vê dois anéis de grau do curso de Ciências Sociais.
A crônica abaixo foi classificada em primeiro lugar no XXVI Concurso Literário Felipe D’Oliveira de Santa Maria em 2003.