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Contos-->Uma História Comum -- 16/07/2002 - 22:35 (JANE DE PAULA CARVALHO SANTOS) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Se chamava Walter e fazia questão de frisar que se escrevia “com dáblio”, embora não soubesse direito o que vinha a ser um dáblio.
Trabalhava na construção civil e nunca se importou de ser chamado de pedreiro, servente, peão, orelha seca. Tudo bem, foi menino pobre, não teve estudo mesmo. Era artesão, sabia trabalhar com couro e esse era o seu verdadeiro ofício; quando chegou na cidade grande, tentou com afinco procurar um curtume para trabalhar, mas chegou à conclusão de que isso era coisa de gente da roça - na cidade, até mesmo os artesanatos eram feitos em fábricas... A opção por virar massa de concreto para fazer arranha-céu, veio como consolo depois de muitas tentativas – lavador de latrina, catador de papel, ciscador de lixo.
E numa bela tarde de verão, quente como o inferno, o mestre da obra lhe trouxe o pagamento: um cheque nominal para ser descontado no banco. Ah! Banco, não! A velha fobia lhe subiu pela espinha e se alojou nas meninges, pulsando como um bicho vivo. “Ei, seu Antônio, me faz um vale... Esse negócio de banco...” Sem acerto. “Amanhã você vai lá e recebe. Não tem vale”.
A cabeça virava mais que a betoneira. Olhava o cimento cair e se via lá dentro, sufocando. Acenou para o colega: “Luiz! Me troca esse papel... Te dou metade do dinheiro...” Não. Não faria isso com um amigo e não deixaria ninguém fazer! “Vou com você”. Ah! Muito pior! Alguém para testemunhar sua inaptidão, seu aleijão de não saber escrever. “Não, deixa prá lá...”
Passou a noite em claro, olhando os carros na rua. Rabiscou mais de cem vezes num papel, tentando escrever W A L T E R. Mas não lembrava as letras e não conseguia segurar a caneta; pesava tanto a mão que rasgava o papel, o suor escorria da testa e banhava a mesa velha junto com as lágrimas ardidas que feriam os olhos. W A L T E R. Com dáblio. É o diabo quem vai escrever o inferno desse nome infeliz!
A manhã o encontrou desperto e triste. O papel rasgado e jogado no canto da parede suja, fazia questão de lembrar o que haveria de vir. A dona da pensão o chamou para o café, mas não teve boca para comer. Levantou e foi para a obra. Para o inferno o dinheiro da semana, depois dava um jeito de trocar o cheque na sinuca. Mas o mestre da obra não estava lá. Ninguém estava. Estavam todos no banco. Tentou ligar a betoneira pra virar cimento, mas não tinha material, estava tudo trancado no cercado – esperasse o seu Antônio. E ele esperou, esperou. Viu quase o dia todo passar e voltou pra pensão.
Outra noite do capeta, olhando as paredes. De manhã, tomou um banho, vestiu o terno de missa, botou a gravata velha escondendo o lado rasgado para dentro da camisa, que também estava puída. O terno verde oliva brilhava na luz forte do sol da rua e gritava suas cores pela estrada. Parou na porta do banco. Olhou sua figura no vidro espelhado: a barra da calça descosida, os joelhos sem as listras brancas do tecido, os sovacos amarelados, o casaco curto. Passou a mão nos cabelos que fincou com banha de galinha pra assentar. Tomou coragem, entrou.
A testa não parava seca, as mãos geladas. Muita gente ia e vinha com ar apressado, papéis e mais papéis, canetas, computadores. Ar condicionado. As mãos mais geladas, a testa molhada de novo. Olhou o vigia, achou que encontraria ali um companheiro, tirou o cheque do bolso e o mostrou. Mas, qual o quê! O sujeito se achava muita coisa, se limitou a erguer o indicador na direção de um monte de gente que fazia uma fila esquisita, toda torta. Entrou no que achou ser o fim da fila e lá ficou até alguém gritar: “sai daí, ô paraíba!” Só então entendeu que o final era muito mais longe. Demorou muito para ser atendido, mas bendisse a demora.
Chegou sua vez e foi um rapazote metido a engraçado que o atendeu. “Tá vindo de um enterro?” Walter nunca teve tanta vergonha na vida. Esticou o braço por sobre o guichê, entregou o cheque e esperou pelo pior. E o pior veio: “assina aqui”. Uma gota grossa de suor desceu e pingou bem no lugar do “aqui” indicado. “Eu... eu não...” outra gota de suor inutilizou o campo da assinatura. “Ei, pára! Assina embaixo, agora!” A mão tremia tanto que teve que apoiá-la no balcão. “não sei assinar”. A frase desceu como um meteoro por dentro do que restava de dignidade e saiu como um fio de voz, que o caixa adivinhou do outro lado: “ah...”
O caixa se levantou e vasculhou ruidosamente umas gavetas no armário. Todos olhavam o que se passava e o som das gavetas ecoava por todo o salão. Depois de um tempo incontável, o caixa voltou e pediu o polegar de Walter. E ele estendeu a mão grossa, calejada, sábia do ofício que o pai lhe ensinara, sábia de tantas coisas da vida, mas que agora não passava da mão de um andrajoso peão de obra, bruto e ignorante.
Saiu do banco e andou a esmo por entre os prédios e as gentes inteligentes e doutoras de si. Era, naquele momento, a mais estúpida das criaturas da terra. Não pertencia àquilo tudo, nunca pertenceria.
Tomou o rumo da rodoviária. Pegou o ônibus sem mala nenhuma, em direção ao nordeste. Em direção à sua casa e às suas coisas. O seu povo e sua ignorância coletiva.
Aturaria a sogra o resto dos seus dias (e os dela) e seria feliz lá. Lá onde a seca maltrata, o futuro não existe e o mundo está estacionado em algum lugar do passado.
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