É noite. Faz frio de trincar os ossos. Marlene se aproxima da pilastra da rodoviária, com o seu saquinho de supermercado (cujo dono é candidato à reeleição para deputado). Dentro do saquinho, seguem todas as coisas que possui nesse mundo: um pente, uma revista “Bom Astral” de maio do ano retrasado com a foto do galã da novela na página central, um toco de lápis, um maço de cartões de visita velhos e ensebados, um sabonete “seiva de alfazema” intacto, um par de chinelos de dedo, uma calcinha vermelha, um soutien sem alças com o fecho quebrado, uma camiseta com propaganda política, um batom vermelho.
Marlene ajeita o seu cabedal em forma de travesseiro e se deita pra esperar o sono. O chão, a pilastra, a poeira... Poderiam ter encostado ali mais de mil pessoas durante o dia, esse povo que finge limpar o chão pode até ter passado a vassoura... Tanto faz, o cheiro é só dela.
O povo ainda passa, mas a freqüência vai rareando; os botequins vão fechando, as portas se lacrando. Essa é sua canção de ninar.
Esta noite está mais difícil que as outras, a tosse catarrenta não para – às vezes vem sangue junto – a base das costas dói muito. Está mais frio que o normal, hoje. Marlene se aninha e se espreme mais junto à pilastra, mas, sem conseguir alívio, resolve se sentar e distrair a cabeça conferindo seus pertences.
A revista e suas cores brilhantes entretêm os olhos – Marlene só sabe que a revista é Bom Astral, por que o moço da farmácia disse. As letras não passam de desenhos hieróglifos que nunca dizem nada; os cartões de visita e o lápis são postos de lado, Marlene pega o sabonete e cuidadosamente retira da embalagem, dá uma poderosa fungada, retém o ar, relembra o perfume e o homem amado, sente as forças renovadas.
Ela não sabe o nome do homem amado, sabe que um dia, há muitos anos, este homem a pegou nos braços e a levou para o chafariz – era uma noite quente – e ambos se banharam com sabonete seiva de alfazema e fizeram amor sob a lua cheia, longe dos olhos da humanidade. Na manhã seguinte, não viu mais o homem dos seus sonhos. Nem na manhã seguinte, nem nunca mais. Chegou a pensar que tivesse sido só sonho mesmo, mas nove meses depois nascia uma criaturinha de seu ventre. Marlene se lembra pouco desse dia, mas sabe que embrulhou o monte de carne rosada numa camiseta velha e deixou na porta do restaurante. Se viveu ou se morreu, é papo pra outras transações, o fardo não mais lhe pertencia, outras cabeças que cuidassem do assunto. Nem sabe explicar direito por que se deixou ficar embarrigada, tão fácil furar com arame e esperar a sangüeira... Claro que dói um pouco, às vezes dá desmaio. Mas é sempre melhor que deixar virar menino.
Marlene recolocou cuidadosamente o sabonete e as lembranças na embalagem e passou direto pelo soutien e pela calcinha que eram guardados para o dia em que visse o seu amado novamente.
A noite ia alta, quando Marlene sentiu o corpo pesado e quente. Engraçado, não tinha fome. Decidiu dormir, voltou a se ajeitar como era possível, a essas horas haviam muitos outros nas pilastras do vão da rodoviária. O barulho dos ônibus cessava, as luzes pareciam diminuir.
Marlene dormiu rápido e sonhou... Sonho estranho; sonhou voar entre as nuvens do céu, mas ela não era ela – ela era outra, tão leve, tão solta. O perfume da alfazema espalhado no ar, só trazia de volta a lembrança do amado. Foi quando o viu, era ele! Era mesmo ele! Lindo e fogoso em direção a ela e todo o céu não era mais céu, era um grande chafariz cósmico cheio de estrelas brilhantes onde fizeram amor com cheiro de alfazema e transmutaram seus corpos numa só chama de energia mágica, que explodiu todo o universo em bolhas grandes de espuma de sabonete azulado.
Quando o dia amanheceu, as pessoas se levantaram e foram tratar de achar alguma coisa pra comer, os transeuntes habituais voltaram à sua peregrinação diária, a farmácia abriu, o restaurante serviu café quente e cheiroso. O barulho não acordou Marlene.
Perto de meio dia, a faxineira da rodoviária resolveu chamar o PM pra tirar Marlene dali. Mas foi preciso mais que um pé de bota sonolento pra levar o corpo inerte ao necrotério.
Os estudantes de medicina da universidade de Brasília, com certeza se divertiram analisando os órgãos internos de Marlene. E eles nem sabiam que seu nome era Marlene.
Não faz mal. Marlene não estava mais lá mesmo, ela virou bolha de seiva de alfazema numa dimensão muito, extremamente, longe daqui