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Contos-->Retrato de Mulher -- 22/10/2002 - 20:11 (JANE DE PAULA CARVALHO SANTOS) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Sempre achou que seu nome era prenúncio de vida doméstica. Maria. Maria da Silva. Nenhuma Maria da Silva vira milionária, não trabalha em grandes cargos, não recebe muito dinheiro. Nenhuma Maria da Silva tem vida própria.

As Marias da Silva do mundo viram esposas de Josés da Silva, ou domésticas em casa de gente granfa. Maria não queria ser doméstica, mas também não tinha atrativos para um bom casamento... Ultimamente, nem para um mau casamento, visto que os homens de Padre Bernardo ou já se amarraram ou foram embora.

Maria arrumou as trouxas e seguiu pra capital. Secretariou alguns lares, sabendo que seu destino não era aquele – queria a sua casa, o seu teto, o seu porto seguro. Foi quando conheceu o Daniel. Homem bronco e esquisito, cheio de tiques; evangélico, não bebia nem fumava, e não sabia conversar. Não falava da noite nem das estrelas, não olhava seu rosto de frente, não beijava em público, não andava de mão dada, nunca lhe deu uma flor. Namoraram seis meses e Daniel propôs casamento, assim, de pé, coçando o queixo, como quem regateia preço na quitanda. Maria sorriu, tentou falar alguma coisa, e Daniel a interrompeu. E a interromperia muitas vezes depois.

Daniel montou o lar de ambos: um quarto abafado na casa paterna – que mais parecia uma cabeça de porco, pois todos os filhos moravam no mesmo lote – com uma cama, uma cômoda, um fogão.

Maria engravidou logo, queria um motivo pra ser feliz e se o casamento não trouxera o motivo, a maternidade traria. Sim, traria.

Nove meses se passaram de uma gestação difícil. Não trabalhava nas casas alheias, claro, o marido não permitia, mas trabalhava para todos do lote – lavava, passava, limpava. Perdeu água, perdeu sangue, ficou anêmica, teve pressão alta, o bebê esteve em sofrimento fetal – mas não havia leito no hospital pra internar. Daniel pouco se importava, contanto que a mesa estivesse posta ao chegar, Maria que se virasse. Quando o rebento veio à luz, não tinha cara de anjo (nem viria a adquirir depois), tinhas as pernas tortinhas, a visão defeituosa, seria retardado mental. Seqüelas, e mais seqüelas.

Maria não se abateu. Deu ao bebê nome de anjo: Rafael. Buscou tratamento e pôs o rapazinho de pé – com dificuldade – mas caminhando e falando. Foi quando engravidou novamente, e, como havia aprendido a lição da primeira gestação, cuidou de si sozinha. Recusou os trabalhos da pretensa comunidade da casa do seu sogro, trancou a porta e os ouvidos às agressões, fechou-se em sua barriga. Este virá sadio. E ela veio. Uma menina linda e esperta: Ana Flávia. Quando Aninha veio para seus braços, Maria apalpou as perninhas, abriu bem seus olhinhos e agradeceu a Deus.

As crianças foram crescendo, o tempo foi passando. O tempo, senhor da razão e mentor da insatisfação, comia seus dias implacavelmente. Maria queria espaço, pra si e para os seus, não suportava mais aquela claustrofóbica pseudo moradia. Se engajou numa cooperativa de inquilinos, tentando conseguir um lote do governo do estado. Foram muitas reuniões, acampamentos, sofrimentos. E quando o tão sonhado lote veio, Maria mais uma vez agradeceu aos céus. Não havia dinheiro pra construir e ela voltou a trabalhar. Daniel protestou o quanto pôde, mas não conseguiu impedir – estava desempregado, havia desfeito uma sociedade com os irmãos, para montar sozinho uma fábrica de vassouras e, com a sua evidente falta de tino para os negócios, quebrou.

E Maria trabalhou e trabalhou. Mandou vir a irmã mais nova de Padre Bernardo pra ajudar na casa enquanto ela cuidava das casas alheias, mas a irmã não se entendia com Daniel e as brigas foram muitas. Daniel pôs a cunhada pra fora de casa uma, duas, cinco, tantas vezes. E em todas as vezes um escândalo novo. E Maria não desistiu.

Então, num rompante de inteligência, Daniel usou seu último trunfo pra fazer a mulher parar de trabalhar: vendeu o tal do lote. E o mundo de Maria caiu. Sem objetivos, sem esperanças, Maria se voltou à igreja e orou e orou. O Pastor disse que ela jejuasse, e Maria obedeceu. Jejuou a pão e água – um pão e uma água por dia, pela manhã. Esqueceu a casa, esqueceu os filhos, esqueceu as brigas. Passava as tardes em pé na soleira da porta, com as mãos postas em oração. Vez por outra erguia a mão direita, fechava os olhos e balbuciava orações ininteligíveis. Daniel não gostava daquilo, a casa estava uma zona, as crianças não iam pra escola, não havia comida pronta. O Pastor disse que Maria estava em êxtase espiritual.

E sempre existe uma alma caridosa no mundo, de postura isenta e realmente a fim de ajudar. E essa alma caridosa raptou Maria e a levou ao pronto socorro e o médico recomendou internação no hospital especializado em doenças psiquiátricas. O marido ofendido mobilizou toda a família e até mandou chamar o pastor para tentar impedir aquela tragédia – a mulher num hospício!

E Maria foi serena. Agradeceu a alma caridosa, pediu perdão a todos, sofreu a separação dos filhos, vestiu o camisolão branco e entrou no corredor do HPAP.

Num átimo de segundo, todos vislumbraram o interior do hospital: outros tantos loucos de camisolões brancos, outras tantas pessoas que não conseguiram impor a si ante a vontade alheia, ante os desmandos do mundo.

O tempo, senhor da razão, trará Maria de volta – eu acredito – mais forte, com mais defesas. Esse mesmo tempo será aquele que fará os algozes de Maria repensarem suas vidas tortas, suas idéias moucas de fraternidade, seus porcos preconceitos.

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