O mistério do homem da mala preta
Athos Ronaldo Miralha da Cunha
A estrada sinuosa da subida da serra estava com pouca visibilidade devido a forte cerração. Um carro varava a noite em alta velocidade. Assobiava os pneus nas curvas acentuadas. Os faróis iluminavam as placas de beira de estrada envoltas em neblina. Um homem angustiado corria contra o tempo naquele instante.
A pequena cidade serrana silenciava, apenas os postes com suas luminárias anunciavam a vida noturna. Passava das dez horas de uma noite fria. Uma brisa fina ao sabor do vento deixava o inverno mais rigoroso e uma sensação térmica abaixo de zero. No interior das casas o tilintar dos cálices de vinho e pessoas aquecidas com braseiros.
O silêncio reinava nas dependências do hotel. Apenas o ruído dos ventos nas janelas e o movimento das árvores no quintal davam algum movimento à natureza.
Os hóspedes já estavam recolhidos nos seus respectivos aposentos. E pouco a pouco as luzes dos quartos do hotel eram apagadas anunciando que a “Pousada Bom Sossego” adormecia.
Aderbal, o prestativo recepcionista da pousada, sonolento, folheava as páginas do jornal do dia anterior. No vaivém das folhas o tique-taque do relógio na parede.
O lusco-fusco do saguão tornava o ambiente com um quê de mistério e terror. Entretanto, o crepitar do nó de pinho na lareira deixava aconchegante a recepção do hotel.
A calmaria noturna foi quebrada com o barulho de um carro preto que estaciona abruptamente próximo a entrada da pousada. O motorista desliga o motor e apaga as luzes. Por alguns instantes não há vida no interior do veículo. As luzes do pátio proporcionavam a silhueta de um automóvel negro no estacionamento da pousada.
Um homem magro e alto, retira-se calmamente do carro e encaminha-se em direção a portaria, carrega uma enorme mala preta com rodinhas, que desliza tranqüila pelo avarandado. Sua fisionomia era de mistério e seriedade. Deixava transparecer, nos gestos e nas faces, um sofrimento crônico. E era uma pessoa de poucas palavras.
- Boa noite! Amigo, temos um quarto vago? – tossia e levava a mão à boca com um lenço ensangüentado.
- Sim, por favor, preencha essa ficha.
Aderbal notou que o homem sisudo e calmo com gestos lentos não tirou as luvas para preencher a ficha. Usava por sobre a luva preta um enorme anel de prata com duas pedras vermelhas que eram os olhos da face do demônio moldada na jóia.
Com letra de forma o misterioso cidadão preencheu os seu nome que Aderbal sentiu como o fio de uma navalha afiada. O recepcionista não conseguiu controlar o nervosismo e o um desconforto com o nome escrito na folha em sua frente.
Maurício Osvaldo Ribeiro Torquato Ercolácio.
Meu Deus! – pensou Aderbal. – o mesmo sobrenome do velho Ernesto. Será? – um arrepio correu-lhe pela cervical.
Após ter encaminhado o misterioso Maurício ao quarto e, devido o adiantado da hora, ter colocado a placa de “Toque a campainha” na porta de entrada, foi deitar-se em uma poltrona próximo a lareira. Seu plantão no hotel iria até às 6 horas da manhã seguinte.
Serviu-se um cálice de vinho tinto da colônia e ficou ali meditativo junto ao fogo da lareira. Ao sabor das chama as horas são mais lentas. Rodopiava o cálice para sentir a fragrância do tinto. Mas seu pensamento estava na fisionomia do último hóspede. E, principalmente, no sobrenome: Torquato Ercolácio. Aderbal não sabia quem era Maurício Osvaldo Ribeiro, mas conhecia muito bem o sobrenome Torquato Ercolácio.
- Muito estranho! Muito estranho mesmo. Pela manhã vou falar com a minha velha mãe... ela terá algumas respostas. Ela conhece toda a árvore genealógica da família Torquato Ercolácio. – comentou em voz baixa contemplando o tinto no cálice.
Naquela noite, Maurício permaneceu com a luz da escrivaninha acesa. Pela fachada do prédio percebia-se que o seu quarto era o único que continha uma certa luminosidade por detrás da cortina.
Sentou-se, e colocando em sua frente, uma folha de papel em branco e uma caneta esferográfica, começou a redigir uma carta. E pressentia como a derradeira carta.
Tinha o rosto pálido e cheio de desassossegos. Escreveu uma carta que preencheu dois terços da folha. Assinando-a apenas com suas inicias: M.O. R.T.E..
- Por que deram-me esse nome? Seria um crime premeditado? – ainda perguntou-se.
Nesse momento uma gota de sangue cai de seu rosto e mancha o pé da página manuscrita.
Abaixo da mancha de sangue uma pergunta sem resposta. - Meu Deus! Por quê?
Aderbal morava com a mãe e com a esposa em uma casinha, um chalé de madeira, no fundo do pátio da pousada. Era o faz-tudo do hotel e pessoa de confiança dos proprietários. Sua mãe, Dona Iolanda, também havia sido funcionária do hotel, hoje estava aposentada e por ter vivido toda sua vida envolvida com os patrões e com a, então, pequena pousada do Sossego, conhecia cada membro da família Torquato Ercolácio.
Quando Aderbal chegou em casa a neblina tinha tomado conta do arvoredo e o frio parecia mais intenso. Sua esposa já estava com o fogo aceso no fogão à lenha e a cozinha de sua modesta casa estava aconchegante. Logo estaria tomando um farto café da manhã junto com a mãe e a esposa.
- Mãe... Mãe... Mããããeeee! – Aderbal era meio impaciente com a surdez de dona Iolanda.
- Estou ouvindo meu filho. Fale.
- Quem é Maurício Osvaldo Ribeiro Torquato Ercolácio? – perguntou de supetão.
- Maurício! - Dona Iolanda leva um susto, tremendo, derruba o prato que estava enxugando. E não conseguiu controlar o nervosismo.
- É, mãe, um homem alto, um pouco mais velho do que eu. Misterioso! E trouxe uma enorme mala. Uma mala preta deste tamanho. – mostrou como os braços sobre a mesa o tamanho da mala.
- Onde tu o viste, meu filho? – ainda um pouco pálida e trêmula.
- Hospedou-se ontem por volta das dez horas.
- O Mauricio voltou... e saiu, pensativa, rumo ao seu aposento.
Aderbal deu de ombros e seguiu tomando seu café.
- Preciso falar com o Ernesto. O assunto merece uma certa urgência. – murmurou para si.
Em instantes estava pronta para sair.
- Filho! Estou indo à missa, hoje o padre vai fazer uma ação de graças.
- Hoje, mãe, não é dia de missa. O padre nem está na cidade.
- Filho, eu irei rezar um pouco, volto logo.
Dona Iolanda foi direto à casa de seu antigo patrão e dono do hotel “Pousada do Sossego”.
Ernesto Torquato Ercolácio também era uma pessoa aposentada. Um octogenário com uma saúde de ferro moldada no suco da vinha. Apenas orientava seu filho único, Marionaldo Ercolácio, que administrava a pousada que continuava sendo o sustento de toda sua família.
Espantou-se com a visita inesperada de Iolanda.
- O que você faz aqui?
- Quanto tempo... hein seu Ernesto...
- Trinta e cinco anos ... Iolanda... trinta e cinco longos anos.
- Ernesto... – Iolanda pigarreou, não sabia como se comportar diante de seu ex-patrão. A biblioteca em que estavam conversando era um ambiente muito luxuoso para a sua simplicidade.
- Ernesto...
- Fala mulher e não comece com rememorações. Deixe o passado em paz.
- É justamente isso Ernesto. O passado... ele voltou.
- O passado não volta.
- Você é que pensa...
- Você está precisando de dinheiro?
- Não! Ernesto... o Mauricio está de volta.!!!
- O que??
- O Mauricio hospedou-se no hotel ontem à noite.
- Não é possível... nos combinamos... ficou tudo acertado. Eu sabia que mais dia menos dia eu iria me incomodar com isso.
- Ernesto, ele está de volta e eu estou com muito medo.
- Deixa comigo. Eu resolverei esse infortúnio, hoje mesmo.
- E eu vou junto... eu também faço parte do problema.
Ernesto comodamente sentado em uma poltrona de sua suntuosa biblioteca estava intranqüilo. A notícia o transformou. Acendeu um cigarro e começou a exclamar.
- Não é possível! Não é possível! Não é possível! – serviu-se com uma dose de uísque.
Quando Ernesto e Iolanda chegaram o hotel estava em polvorosa. Havia uma pessoa agonizando no corredor do 2o andar. Logo ficaram sabendo que era o hóspede chamado Maurício. Subiram as escadarias, o mais rápido possível, a tempo de contemplar os olhos de súplica do filho que voltava para morrer nos braços dos pais.
- Meu filho! Eu te quero comigo! - Balbuciou Iolanda diante da prematura morte do filho.
Era tarde demais, Maurício morreu no corredor do hotel em que fora gerado.
Deixou um manuscrito manchado com sangue sobre a escrivaninha e uma enorme mala ao pé da cama.
Dona Iolanda abriu chorosa a mala preta do filho. Qual não foi a sua surpresa ao constatar que no seu interior havia centenas... milhares de cartas endereçadas “Aos meus queridos pais Iolanda e Ernesto”.
Nenhuma delas constava o endereço dos destinatários.
Contos selecionados.
O retorno
O músico e o engraxate
Os dois mosqueteiros
Picolé premiado
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