ERA UMA VEZ um velho que tinha três filhas muito bonitas, mas um velho muito pobre, que vivia de fazer gamelas. Uma vez passou pela sua casa um lindo moço a cavalo; parou e declarou que comprar uma das moças. O velho se ofendeu; disse que por ser pobre não era nenhum malvado que andasse vendendo as filhas; mas diante das ameaças do moço teve que aceitar o negócio. Lá se foi a sua primeira filha na garupa do cavaleiro, e o velho ficou olhando para o ouro recebido.
No dia seguinte apareceu outro moço, ainda mais lindo, montado num cavalo ainda mais bonito e propôs-se a comprar a filha do meio. O velho, bastante aborrecido, contou o que se tinha passado com a primeira, e não quis aceitar o negócio. O moço ameaçou matá-lo, e também lá se foi com a segunda moça na garupa, deixando com o velho dois sacos de dinheiro.
No dia imediato apareceu terceiro moço e depois da mesma discussão lá se foi com a derradeira moça na garupa, deixando em troca três sacos de dinheiro.
O velho ficou muito rico, mas sem as filhas, e começou a criar com grandes mimos um filhinho que havia nascido fora de tempo. Quando já estava na escola esse menino teve uma briga com um companheiro, o qual lhe disse: "Você está prosa por ter pai rico, mas saiba que ele já foi um pobre diabo que vivia de fazer gamelas. Está rico porque vendeu as filhas."
O menino voltou pensativo para casa, mas nada disse. Só quando ficou moço é que pediu ao pai que lhe contasse a história das três irmãs vendidas. O pai contou tudo e ele resolveu sair pelo mundo em procura das irmãs.
No meio do caminho encontrou três irmãos brigando por causa duma bota, duma carapuça e duma chave. Indagando o valor daquilo, soube que eram uma bota, uma carapuça e uma chave mágicas. Quando alguém dizia à bota: "Bota, bote-me em tal parte!" a bota botava. E se diziam à carapuça: "Carapuça, encarapuce-me!" a carapuça encarapuçava, isto é, escondia a pessoa. E se diziam à chave: "Chave, abre!" a chave abria qualquer porta.
O moço ofereceu pelos três objetos o dinheiro que trazia e lá se foi com eles.
Logo adiante parou e disse: "Bota, bote-me em casa de minha primeira irmã." Mal acabou de pronunciar tais palavras, já se achou na porta de uma palácio maravilhoso. Falou com o porteiro. Pediu para entrar, dizendo que a dona do palácio era sua irmã. A irmã soube de sua chegada, acreditou em suas palavras e o recebeu muito bem.
- Mas como conseguiu chegar até aqui, meu irmão?
- Por meio da bota mágica - respondeu ele.
E contou toda a história de sua partida e do encontro dos três objetos mágicos.
Tudo correu muito bem, mas assim que começou a entardecer a irmã pôs-se a chorar.
- Por que chora, minha irmã?
-Ah - respondeu ela - choro porque sou casada com o rei dos Peixes, um príncipe muito bravo que não quer que eu receba ninguém neste palácio. Ele não tarda a chegar, e mata você, se enxergar você aqui...
O moço deu uma risadinha, dizendo:
- Não tenha medo de nada. Com a carapuça mágica saberei esconder-me.
O rei chegou e logo levantou o nariz para o ar, farejando: - "Sinto cheiro de gente de fora!" mas a rainha mostrou que não havia por ali ninguém e ele sossegou. Tomou um banho e se desencantou num lindo moço.
Durante o jantar a rainha fez esta pergunta:
- Se aparecesse por cá um irmão meu, que faria vossa Majestade?
- Recebia-o muito bem - disse o rei - porque o irmão da rainha, cunhado do rei é. E se ele está por aqui, que apareça.
O irmão encarapuçado apresentou-se, sendo muito bem recebido. Contou toda a sua história, mas não aceitou o convite de ficar morando ali por ter de continuar pelo mundo em procura das outras irmãs. O rei olhou com inveja para as botas mágicas, dizendo: "Se eu as pilhasse, iria ver a rainha de Castela."
Na hora da partida o rei deu-lhe uma escama. "Quando estiver em apuros, pegue nesta escama e diga: Valha-me, rei dos Peixes!"
O moço agradeceu o presente e lá se foi depois de dizer à bota: "Bota, bote-me na casa de minha segunda irmã", e imediatamente se achou defronte de outro palácio, onde foi recebido pela segunda irmã, que era a esposa do rei dos Carneiros. "Meu marido logo chega por aí, a dar marradas a torto e a direito, e você não escapa."
- Com a minha carapuça escapo - respondeu o rapaz, rindo-se. E contou a virtude da carapuça encantada. E de fato foi assim, correndo tudo direitinho como lá no palácio do reis dos Peixes. Na hora da partida o rei dos Carneiros disse: "Tome este fio de lã. Quando estiver em apuros, basta que pegue nele e diga: "Valha-me, rei dos Carneiros!" Em seguida, olhou com inveja para as botas mágicas. "Se as pilhasse, iria ver a rainha de Castela."
Logo que o moço se viu na estrada, parou e disse à bota. "Bota, bote-me em casa da minha terceira irmã", e a bota botou-o no portão dum terceiro palácio ainda mais belo que os outros. Era ali o reino do rei dos Pombos, onde tudo aconteceu como no reino do rei dos Peixes e no reino do rei dos Carneiros. Foi muito bem recebido e festejado, até que na hora da partida o rei do Pombos suspirou olhando para as botas, e disse: "Se eu pilhasse essas botas, iria ver a rainha de Castela." Em seguida deu ao moço uma pena, dizendo: "Quando estiver em apuros, pegue nesta pena e diga: "Valha-me, rei dos Pombos!"
Logo que o moço se viu na estrada, pôs-se a pensar na tal rainha de Castela que os três príncipes queriam visitar, e disse à bota mágica: "Bota, bote-me no reino da rainha de Castela!" e num instante a bota o botou lá.
Soube que era uma princesa solteira, tão linda que ninguém passava pela frente de seu palácio sem erguer os olhos, na esperança de vê-la à janela - mas a princesa tinha jurado só se casar com quem passasse pelo palácio sem erguer os olhos.
O moço então passou pela frente do palácio sem erguer os olhos e a princesa imediatamente casou com ele. Depois do casamento a princesa quis saber para que serviam aqueles objetos que ele sempre trazia consigo - e o que mais a interessou foi a chave de abrir todas as portas.
A razão disso era haver no palácio uma sala sempre fechada, onde o rei não permitia que ninguém entrasse. Nela morava o Manjaléu - um bicho feroz, que por mais que o matassem revivia sempre. A princesa andava ardendo de curiosidade de ver o bicho Manjaléu, e certa vez, em que o rei e o marido foram à caça, pegou a chave e abriu a porta da sala do mistério. Mas o bicho feroz pulou e agarrou-a, dizendo: "Era você mesma que eu queria!" E lá se foi para a floresta com a pobre moça ao ombro.
Quando o rei e o marido da princesa voltaram da caça e souberam do acontecido, ficaram desesperados. Mas o dono das botas mágicas prometeu consertar tudo. Agarrou-as e disse: "Bota, bote-me onde está minha esposa." E a bota botou-o.
O moço encontrou a princesa sozinha, pois que o Manjaléu andava pelo mato caçando.
- Minha querida esposa - disse ele - precisamos dar cabo desse monstro feroz, mas para isso é necessário que eu saiba onde é que ele tem a vida. A vida do Manjaléu está tão bem oculta que todas as tentativas para matá-lo têm falhado. Trate de saber onde ele tem a vida.
A princesa prometeu que assim faria, e quando o Manjaléu voltou deu jeito da conversa recair naquele ponto. Manjaléu desconfiou.
- Ahn! Quer saber onde eu tenho a vida para me matar, não é? Não conto, não.
Mas a princesa, teimosa, tanto insistiu durante dias que o bicho Manjaléu resolveu contar tudo. Antes disso ele amolou, bem amolado, um alfanje, dizendo: "Vou contar onde está minha vida mas se perceber que alguém quer dar cabo de mim corto sua cabeça com esse alfanje, está ouvindo?"
A princesa aceitou a proposta. Ele que contasse tudo que ela ficaria com pescoço às ordens do alfanje, no caso de alguém atentar contra a vida do monstro. E o bicho Manjaléu então contou: "Minha vida está no mar. Lá no fundo há um caixão; nesse caixão há uma pedra; dentro da pedra há uma pomba; dentro da pomba há um ovo; dentro do ovo há uma velinha, que é a minha vida. Quando essa vela se apagar, eu morrerei."
No dia seguinte, quando o bicho Manjaléu saiu novamente a caçar, o marido da princesa, que estivera escondido pela carapuça, apresentou-se. "E então?" - perguntou. A princesa contou-lhe direitinho tudo que ouvira ao monstro.
O moço dirigiu-se à praia do mar e pegou na escama, dizendo: "Valha-me, rei dos Peixes!" E imediatamente o mar se coalhou de peixes que indagavam do que ele queria.
- Quero saber em que ponto do fundo do mar há um caixão assim e assim.
- Eu sei - respondeu um enorme baiacu. - Ainda há pouquinho esbarrei nele. Esse caixão está em tal e tal parte.
- Pois quero que me tragam aqui esse caixão.
Os peixes saíram na volada; logo depois apareceram empurrando um caixão para a praia. O príncipe abriu-o e encontrou a pedra. Como quebrá-la? Lembrou-se do fio de lã. Pegou no fio de lã e disse: "Valha-me, rei dos Carneiros!" Imediatamente apareceram inúmeros carneiros, que deram tantas marradas na pedra que a partiram.
Enquanto isso, lá longe, o Manjaléu, com a cabeça no colo da princesa e o alfanje na mão, ia sentindo coisas esquisitas.
- Minha princesa - disse ele - estou me sentindo doente. Alguém está mexendo na minha vida.
E sua mão apertou o cabo do alfanje.
A princesa engambelou-o como pôde, para ganhar tempo. Ela saiba que seu marido, estava em procura da vida do monstro.
Assim que os carneiros quebraram a pedra, uma pombinha voou de dentro e lá se foi pelos ares. O moço lembrou-se da pena, pegou-a e disse: "Valha-me, rei dos Pombos!" Imediatamente o ar se encheu de pombos, que o moço mandou voarem em perseguição da pombinha. Os pombos foram atrás dela e a pegaram. O moço tomou-a, espremeu-a e fez sair um ovo.
Lá longe o Manjaléu se sentia cada vez mais pior. Começava a desfalecer; e como não tivesse dúvidas sobre o que era aquilo, foi levantando o alfanje para degolar a princesa. Mas não teve tempo. O moço havia quebrado o ovo e assoprado a velinha. A mão do Manjaléu moleou - e seus olhos fecharam-se para sempre.
Estava o reino de Castela livre daquele horrendo monstro. O moço levou a princesa para o palácio, onde o rei a recebeu com lágrimas nos olhos. E para comemorar o grande acontecimento decretou uma semana inteira de festas. E acabou-se a história.
Autor: Monteiro Lobato
Produção Visual: Carlos Cunha