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Contos-->- Eu mato esse comunista! -- 21/04/2003 - 18:13 (Athos Ronaldo Miralha da Cunha) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Eu mato esse comunista
Athos Ronaldo Miralha da Cunha

Duas semanas sem por o pé na rua, sem olhar pela janela, sem ver a luz do dia ou o luar das noites silenciosas. Portus estava na clandestinidade. Conforme orientações do comando, deveria permanecer oculto por tempo indeterminado. A sua identidade tinha caído no domínio da repressão no último assalto ao banco e os milicos estavam em seu encalço.

Portus passava os dias lendo jornais e livros, escrevia incessantemente e intensamente, gostava de colocar no papel suas idéias de revolucionário e o seu maior talento, a poesia. Gostava de fazer poesias que falavam das coisas belas da vida, de amor e liberdade, de chimarrão e rio. Nos infindáveis dias na solidão das tardes chimarreava tranqüilo ouvindo o som do silêncio nos momentos de introspecção.
O mate descia quente e amargo, quando resolveu prestar uma homenagem ao seu velho pai, falecido há poucos meses lá no fundo de um rincão. Lamentava-se constantemente por não ter ido dar o último adeus ao velho Pedro, pois estava impossibilitado naquele período em que a guerrilha pulsava em suas veias e estava em um momento de grande turbulência.

Quando a cuia roncou um derradeiro mate, no instante em que o crepúsculo enegrecia a tarde, na quietude das horas, escreveu em uma folha em branco como se tivesse copiando um poema da memória, tornando-se a primeira estrofe de uma payada.

O chimarrão que o maragato
Cevava na cuia morena
Descansando as chilenas
Prá sorver o verde regato
Que veio do tosco do mato
Mateando quieto e despacito
Com o olhar no infinito
Nos causos do seu silêncio
Manchou com erva o lenço
E chimarreou com seu piazito


Sobre o primeiro verso colocou o seguinte título: Última Payada. Dobrou a folha ao meio e colocou na página 72 do livro que estava lendo e que consumia suas horas naquele período de clandestinidade. – Eu não sei se esse 72 é o ano que estou vivendo ou a idade da morte de meu pai. – pensou. E concluiu. – Ou o ano da minha morte.
Tão logo fechou o livro, ouviu um ruído na porta, a fechadura estava sendo forçada. Embora sabendo que era Amanda, que estava chegando, sempre levava um susto, estava se tornando uma paranóia e o coração acelerava. Era um alívio quando o sorriso da mulher que amava iluminava a pequena sala de jantar. Trazia alguns mantimentos para o dia-a-dia e a janta, uma pizza calabreza e cerveja. Amanda era o seu contato externo era o leva-e-traz das notícias da organização do movimento que o mantinha vivo e com a esperança, pois os dias de clausura o estavam deixando cada vez mais irritado e perturbado.

-Portus, viste um fusca branco lá na esquina, tem dois caras dentro?
-Não! Desde que horas estão lá?
-Quando saí, no começo da tarde, o fusca já estava ali, mas apenas um no volante. Agora são dois. A mim parece muito estranho, temos que tomar cuidados redobrados de agora em diante.

Por uma fresta da janela semi-aberta Portus observa os dois homens dentro do carro. Fica em silêncio por alguns instantes, de repente exclama.

-Maldita repressão! Nos acharam!
Amanda tenta acalmá-lo, mas Portus está totalmente arrasado, caminha de um lado para outro na sala tentando colocar os pensamentos em ordem. Precisava traçar alguma estratégia para as próximas horas.
-Amanhã mesmo vamos nos mudar, aqui não está mais seguro. Não estou gostando nada disto. Hoje tu não dormes aqui, para não corrermos o risco de perdermos o teu anonimato e amanhã cedo eu abandono este aparelho.
-Não Portus, eu fico contigo. Não vou te deixar sozinho, depois fica difícil nos encontrarmos, e além do mais estamos juntos nesta parada.
-Eu não quero que tu corras risco, tu não és conhecida, temos que preservar a tua identidade.
-Se eles suspeitam que tem alguém aqui, suspeitam de mim também, pois eu entro e saio seguidamente deste prédio.
-Tudo bem, faremos um plantão, e quando não estiverem mais lá, mesmo que seja no meio da noite, damos o fora.

Portus não conseguiu dar prosseguimento a sua leitura do Capital naquela noite nebulosa de outono, mas alguns versos ainda arriscou colocar no papel, inspirados nos olhos verde-claros de Amanda. Sua eterna companheira, sua inspiração para versos tenros e cantilenas. Desde que a viu pela primeira vez numa festa dos bixos na universidade nunca mais outros olhos verdes chamaram sua atenção. Ainda hoje passados quase dez anos, nos momentos de intimidade, ainda a chama de a minha querida revolucionária do coração.
-O que tu estás escrevendo, mais um poema, ou suas memórias? Pergunta Amanda recostada no sofá.
-As minhas memórias? Eu escreverei no exílio, talvez no Chile de Allende ou nos restaurantes e cafés de Paris. Romântico, não?
-Que pessimismo com a revolução...
-Brincadeira! Estou escrevendo uma payada para o meu velho pai.
-Uma payada para Pedro...
-Excelente título.

Amanda sempre admirou Portus pelo seu lado espirituoso e brincalhão. Tinha um comportamento pouco convencional e sem preconceitos. E extremamente talentoso para poesia.
-Posso ler, adoro as milongas missioneiras.
-Só depois de pronta, prometo que te mostro.

Após o lanche, Portus baixou a cabeça sobre o papel e os versos brotaram na ponta do lápis. Quatro estrofes com dez versos cada, uma payada missioneira, a sua primeira e provavelmente sua Última Payada.
No lusco-fusco da sala, Amanda adormeceu no sofá. Portus levanta-se, faz alguns alongamentos para relaxar e caminha até a janela para uma espiada e constata que o fusca continua estacionado na esquina.
-Aqueles putos ainda estão lá. Temos que sair daqui hoje ou seremos mais dois desaparecidos. - pensou.
Arrumou seus pertences deixou sobre a mesa um pequeno manuscrito e foi dar uma averiguada nos fundos da casa. Só escuridão e latidos de cachorros, numa noite que prometia.


A porta se rompe e instantaneamente quatro soldados armados tomam conta da residência. Revistaram as dependências rapidamente, batendo coturnos no chão, coronhadas nas paredes e pontapés nos móveis. Uma avalanche casa à dentro.
-Ninguém sargento, tudo limpo.
O sargento entra calmamente no recinto, dá uma passada de olhos pela sala e senta-se sobre a mesa.
-Eu ainda pego estes vagabundos.
Neste instante, um pequeno papel sobre a mesa com alguns dizeres, chama sua atenção. Um curto manuscrito a lápis. “Tem cerveja e uns pedaços de pizza na geladeira. Bom apetite! Hasta la vista, sargento!”.
O sargento bate com os dois punhos sobre a mesa e da um pontapé em uma cadeira que estoura a vidraça da janela.
-Eu mato este corno comunista! Vamos embora daqui!




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